Tucanos boicotam PNRS – senadores retaliaram votação

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10 junho, 2010

Uma democracia nas brumas do tempo

Sérgio Abranches

O Programa Nacional de Resíduos Sólidos ia finalmente ser votado nas comissões do Senado. Penúltima etapa de uma jornada de 20 anos. Era a reunião conjunta das comissões de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), Assuntos Econômicos (CAE), Assuntos Sociais (CAS), e Meio Ambiente, Defesa do Consumidor e Fiscalização e Controle (CMA). Mas ela foi derrubada por três senadores, com o apoio de um quarto, todos do PSDB.
O projeto acaba de vez com os lixões. Institui o princípio de que o produtor é responsável por todo o ciclo do produto, resolvendo de vez o problema do chamado lixo eletrônico. Regulamenta de forma muito mais precisa, no campo dos resíduos sólidos, o princípio do “poluidor paga”. Entre vários outros avanços. É contemporâneo ao que está em vigor no EUA e na Europa. É civilizado e civilizatório. E está atrasado. E daí?
O senador Cícero Lucena (PSDB-PB), magoado com o fato de ter sido preterido como relator do projeto, resolveu bloquear a sessão. Não se limitou a protestar, ou pedir para submeter um relatório alternativo, ou um voto em separado, todas possibilidades reais e politicamente irrecusáveis. Preferiu denunciar a legitimidade e a propriedade da reunião das comissões em que havia sido aprovada a votação conjunta da proposta. Ou seja, denunciar todo o procedimento decisório até então. Difícil não ver que a ação do senador tinha por objetivo inviabilizar a tramitação do projeto, com a urgência necessária, dada a circunstância pré-eleitoral. Vale lembrar, uma tramitação que já se estende por vinte anos.
O líder do PSDB, senador Arthur Virgílio (PSDB-AM), solidarizou-se com seu correligionário, como se essa fosse uma obrigação inarredável da liderança, contribuindo para o impasse. Depois de criado o problema, é verdade que procurou ajudar o presidente da mesa, senador Demóstenes Torres (DEM-GO), a encontrar uma solução. Mas o fez de forma bastante parcimoniosa e pouco eficaz. Já o vi agir com mais vigor na liderança. O senador Demóstenes Torres fez de tudo para contemplar o pleito pessoal do senador magoado. Ofereceu-lhe a oportunidade de co-relatar a matéria por duas das quatro comissões. Mas em vão.
Entra em cena o senador Flexa Ribeiro (PSDB-PA), segundo ele a pedido do senador Cícero Lucena, para ajudá-lo em seu pleito. Provoca um bate-boca insípido com o presidente da mesa e, cheio de brios regimentais, derruba a sessão, com a ajuda da senadora Lúcia Vânia (PSDB-GO). Conseguiu o que buscava: procrastinar, impedir a votação do projeto.
Qual a importância desse episódio? Definitivamente não é só o fato de atrasar a aprovação de um projeto importante para o Brasil. Ele pode ainda ser votado, embora a janela de tempo esteja se fechando, por causa do esvaziamento costumeiro do Congresso no período eleitoral. É a atitude dos senadores que tem importância.
Não houve nenhuma defesa substantiva, de tese alguma relativa ao objeto da proposta a ser votada. Nem se fez uma questão de ordem que dissesse respeito a princípios democráticos inarredáveis. Tampouco se levantou qualquer questão constitucional. Nem mesmo se contestou a qualificação do relator indicado a pedido do próprio, o senador César Borges (DEM-BA).
Não. Era só uma questão pessoal prevalecendo sobre um tema relevante e urgente de política pública. Repetindo, com o agravante de que o projeto tramita no Congresso há vinte anos.
Uma atitude pouco democrática. Muito ilustrativa da incivilidade que domina o Congresso brasileiro. Incivilidade no sentido técnico: desprezo, negação da civilidade, da cidadania. Um senador exerce dupla função de cidadania. Uma lhe é inerente por ser membro da sociedade civil brasileira e lhe dá todos os direitos e prerrogativas civis consagrados em uma constituição democrática. Igual a todos nós. Outra, como representante eleito de seu estado, um cidadão eleito, não mais apenas eleitor. Esse papel lhe confere alguns direitos, uma série de prerrogativas, algumas atribuídas em excesso e que alimentam a impunidade e a responsabilidade. Mas fundamentalmente, esse cidadão eleito está subordinado a um conjunto amplo de obrigações constitucionais, morais e políticas.
O senador típico, contudo, exerce esse papel como se ele fosse outra coisa: detentor de conjunto amplo de prerrogativas, que o põe acima e além da sociedade civil e lhe dá o direito de promover autocraticamente seus interesses particulares e pessoais e de atuar como advogado de partes específicas, de um recorte particular da sociedade. Esse senador típico não representa seu estado, nem seus eleitores, mas a si mesmo e a seus consorciados. O mesmo ocorre com o deputado típico: não representa seu eleitorado, nem correntes amplas de opinião. Há exceções? Há. Mas estão se tornando minoritárias.
Assisti, sem surpresa, a toda a sessão da CCJ. Não prestigia, nem respalda os princípios da democracia. É quase uma pantomima. Os textos são lidos às pressas. Uma recitação quase sem palavras perceptíveis e significado preciso. Os rituais são cumpridos à revelia. Tudo sob o manto das palavras mágicas: acordo, consenso. Flui, segundo a conveniência. De repente, a conveniência de um é desatendida e toda a armação cai. Aí o regimento tem que valer. A lei se aplica ao reverso, não para o interesse público, mas para a conveniência privada.
Podia ter tomado vários outros exemplos recentes. Poderia falar da sessão em que o deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP) apresentou um relatório que, se aprovado, promoveria um atraso imperdoável na política florestal e ambiental. Condenaria a agricultura brasileira à baixa qualidade permanente, à ilegalidade persistentemente anistiada. Exporia a Amazônia ao desmatamento e à grilagem mais desabridas ainda. Relatório cheio de erros conceituais e factuais, que amontoa diatribes ideológicas e citações históricas de duvidoso conhecimento. Poderia ter escolhido outras sessões, de comissões ou do plenário, da Câmara ou do Senado. A maioria delas mostraria a mesma coisa.
O que uma sessão dessas revela é que o exercício da política parlamentar no Brasil perdeu perigosamente a noção da importância para a democracia de certos formalismos. A noção de propriedade. De bons modos democráticos. De boa e completa cidadania. De relação entre a forma e o conteúdo do exercício da representação democrática.
É uma atitude perigosa não apenas porque atrasa ou impede que boas políticas públicas sejam implementadas. É perigosa por que gera na cidadania desprezo e desrespeito pela representação e pela democracia, pelo Parlamento, e pelos parlamentares. Inibe o uso da principal arma de restauração política e moral que o cidadão tem: o voto. Inibe porque o desvaloriza tanto, que o cidadão, por desencanto, vota em qualquer um, ou vende o voto, ou o anula.
Foi um exemplo de pedagogia anti-democrática. Era o que deveriam fazer os senadores se queriam instaurar nos cidadãos a suspeita de que a democracia não funciona, ou de que é preferível um déspota esclarecido a um parlamento despreocupado com a cidadania e a democracia.
Tenho anos de assistir sessões do Congresso brasileiro. Vi cenas emocionantes de grandeza democrática. Confesso ter chorado em algumas delas. Vi momentos heróicos e históricos de resistência democrática, na Câmara e no Senado. Às vezes nascidos de episódios de pequena monta, transformados em História por cidadãos no exercício do mandato, cheios de dignidade, princípios e bravura.
Foi assim, em setembro de 1968, quando meu saudoso amigo Márcio Moreira Alves fez um discurso, bem a seu jeito, cheio de pesadas ironias, de cujas consequências ele mesmo não parecia ter completa noção. Eu era estudante secundarista. Só viria a conhecer o Márcio muitos anos depois. Foi quando pude ver que Marcito era assim. Quantas vezes o vi se surpreender com a reação a suas inteligentes tiradas. Naquele dia, propiciou um momento ímpar de altiva e brava resistência parlamentar. Custou o mandato de vários. O pretexto para fechar o Congresso e editar o AI-5. O exílio de muitos. Mas plantou uma das sementes das quais surgiu a democracia brasileira, após a noite escura do mando militar. Um grão de semente de mostarda, diria ele, de forma quase bíblica.
Poderia relembrar várias outros momentos que presenciei ou que a história registrou, que justificam a democracia representativa brasileira e legitimam o nosso Congresso. Poderia lembrar inúmeros outros parlamentares de enorme dignidade e inquebrantável compromisso democrático. Mas estão todos ficando perigosamente envoltos pelas brumas do tempo, pelo véu da história. Perigosamente ausentes de nosso presente.
Ouça também meu comentário na CBN:

Tags:democracia, lixo, PNRS, Senado

Redação

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