Um conto de duas cidades. Ou como transformar a ‘vitória’ num recomeço de verdade.

Um conto de duas cidades. Ou como transformar a ‘vitória’ num recomeço de verdade.

Mario Sergio Brum

(mestre e doutorando em História pela UFF, pesquisador do tema favela há mais de 10 anos)

 

            Perdoem o tom pessoal com que começo o artigo, mas é uma nota necessária. Nunca gostei muito da idéia de Cidade Partida que, a meu ver, mais reforça supostas divisões do que ajudam a construir uma cidadania mais abrangente.

Eu mesmo nasci no chamado subúrbio, fui criado em bairro de classe média próximo à praia, até vir morar no bairro da Penha há cerca de dois anos. Próximo à Vila Cruzeiro, onde já tinha amigos que moraram, moram e/ou trabalham lá, de modo que acompanho um pouco os medos, dúvidas, anseios e esperanças dos moradores.

Caberá ao futuro dizer se os dias recentes entrarão para a História como o dia de Refundação da cidade e, aí sim, podermos dividir a cidade do Rio em duas, não no espaço, que compartilhamos todos nós, da Urca à Santa Cruz, e que o pânico comum da semana passada mostrou bem, e sim no tempo.

Entre o tempo de uma cidade refém, assustada e desesperançosa, para os tempos de uma nova cidade: melhor, mais acolhedora, calma e feliz, que pode estar nascendo nesses dias.

Claro, são em tempos assim, em que o que é velho ainda não está morto, e o que é novo ainda não nasceu completamente, que nós, contemporâneos, olhamos com desconfiança se algo mudou de fato. Mas precisamos, merecemos e devemos ter esperanças.

É preciso ter em mente que hoje, o grande problema do Rio de Janeiro não é o tráfico de drogas! Pode já ter sido um dia, mas esta não é mais a questão que uma política de segurança pública estadual deva ter como viés principal. Sei que a afirmação é polêmica, mas vamos aos fatos:

O principal problema do Rio hoje são quadrilhas, fortemente armadas, que praticam uma série de crimes, e que se convencionou chamar de traficantes, mas que ao incendiarem carros, ônibus, praticar roubos e assaltos e assassinatos, não estão praticando o crime de tráfico, embora este seja uma das suas principais operações.

Os crimes destas quadrilhas são, diariamente, subverter (na pior acepção da palavra) a juventude das comunidades e impor um cotidiano de desrespeito aos Direito Humanos de milhares de moradores. Nas favelas, é muito comum um ditado: ‘Se alguém pisar no teu pé, peça desculpas’, pois nunca se sabe (ou bem se sabe) se a pessoa que lhe incomoda com o carro impedindo a passagem, com a música no tom ensurdecedor, ou mesmo com agressões maiores, é ligado ou é parente de alguém do ‘tráfico’. A figura do Charles Anjo 45, do bandido justiceiro que defendia a comunidade é de tempos passados. Hoje, o tráfico é cada vez mais composto por garotos sem apego às menores formas de solidariedade, sem perspectivas de futuro, sem respeito ao próximo. A ‘onda’ inclusive é ter o poder de se impor frente a tudo e a todos, escorado nas armas.

Os efeitos culturais disso são terríveis, refletindo-se na formação de mais jovens, também por causas ‘externas’ às favelas (no que os pitboys preconceituosos são exemplos), que se (dês)socializam com total desapego às formas de solidariedade que no passado constituíram a idéia de comunidade e até mesmo do espírito carioca. A cidadania, entendida como os moradores de uma mesma cidade partilharem de um destino comum, se vê ameaçada em garotos que, por 200 reais, incendeiam ônibus e carros, conforme noticiado na profusão de notícias da semana passada, que se não for verdade, é verossímil, negando a si mesmo as oportunidades que o futuro traz para sua cidade nos eventos esportivos dos próximos anos. 

Ninguém nesta cidade sofre mais com os efeitos deletérios do ‘tráfico de drogas’ do que os moradores das favelas por ele dominadas. Têm restrições às suas organizações, que devem se submeter ao controle ou ao menos enfrentar limites; têm que se expor constantemente em risco quando há eventuais incursões da polícia ou quadrilhas rivais; e que são confundidas por autoridades e por parte da sociedade com os mesmo bandidos que lhes humilham, potencializando ainda mais seu sofrimento diário.

Mães e pais de favelas sofrem pelo medo do filho seguir o apelo das armas e relativo dinheiro fácil; no dia em que fica sabendo que o filho ‘entrou para o caminho errado’, sabe que ali começou a perder o filho. Sofrem porque meninas sem perspectivas e que julgam a si próprias com menos valor do que possuem de fato, se encantam com os ‘que mandam no pedaço’ e passam com eles a partilharem das facilidades e do temor advindos da atividade do ‘tráfico’. 

Sofrem porque muitos (menos do que pensam os que olham as favelas com preconceito, mais do que todos nós gostaríamos) moradores que têm relação com traficantes, às vezes um mero parentesco distante, usam-na como chantagem para se impor perante os moradores que não tinham a quem recorrer, já que as forças de segurança, a justiça e as mínimas idéias elementares de direito não se faziam presentes de modo eficiente, mas apenas repressivo a todos, indiscriminadamente.

Sofrem porque viam um forte aparato nas mãos destas quadrilhas, revelado ao resto da cidade e ao mundo ao vivo. Onde a esperança de que isso acabasse era muito remota. Era melhor se conformar e aceitar as regras do jogo, torcendo para que um golpe do destino não o pusesse em rota de colisão com alguém com quem não se deve ter o pé pisado.

Tendo isso em mente, poderemos saber o que está em jogo hoje, na Vila Cruzeiro e no Alemão, e quais serão os parâmetros para podermos ver os erros e acertos das recentes operações e permanência das forças de segurança nos locais. E para que servem as UPPs.

Em primeiro lugar, a operação não foi reativa, pelo menos não no sentido que marcaram as operações policiais até pouco tempo, quando os moradores de favela não conseguiam compreender, com toda razão, porque a polícia entrou na comunidade naquele determinado dia se as quadrilhas estavam lá no dia anterior e no seguinte também, e naquele dia específico, foi feita uma ação em que a polícia matou, às vezes foi morta, inocentes foram mortos e feridos e nada mudou.

Além disso, a operação contou-se com uma articulação dos poderes inédita, seja vertical (nos três níveis de governo), seja horizontalmente (várias secretárias agindo conjuntamente), que servirá de aprendizado valioso para o futuro.

Concorde-se com ela ou não, a política de segurança do atual governo estadual possui metas e planejamento, o que nunca fora visto antes. Distingüe-se das anteriores, que só corriam atrás do prejuízo, numa ‘agenda’ pautada pelos traficantes, e que só geraram falsas impressões de paz. E quando passava-se o susto, a vida voltava ao ‘normal’.

A implantação das UPPs tem seguido um cronograma. A política atual para enfrentar a questão da violência no Rio de Janeiro se baseia muito mais num jogo de xadrez do que de damas. E aí as UPPs têm se demonstrado eficazes no que elas se propõe: pacificar territórios, os da favelas e seu entorno imediato, até todo o bairro no qual se inserem!

Neste ponto, uma crítica muito comum tem sido de que o crime ‘saiu da favela e foi para o asfalto’. Nada mais falso!

Ao desalojar os traficantes destes locais, fazendo com que percam pontos de apoio importantes, contribui-se para enfraquecê-los nas práticas de outros crimes, ainda que num primeiro momento, seja justamente para estes que eles têm ‘migrado’, conforme as alterações nos índices de criminalidade têm demonstrado. Mas a curto e médio prazo, não mais poderão contar com as bases de operação, esconderijos seguros e as ‘reserva’ de capital para tempos difíceis. 

Elimina-se o uso de um território que servia de base para as mais diversas ações das quadrilhas, no que as UPPs têm sido acompanhadas tanto de operações de inteligência, com ações que desarticulam os ramos externos destas quadrilhas, como vimos os parentes e namoradas de traficantes sendo presos nos últimos dias, ou a mesma coisa há cerca de uma ano atrás, quando foi instalada a UPP no Borel.

Uma prova da diferença marcante na gestão atual da segurança pública do Rio foi na ocasião em que traficantes invadiram o hotel em São Conrado, em que o secretário (que possui uma sinceridade até cruel às vezes), disse que não era o momento de se instalar a UPP na Rocinha, que o plano seguia um cronograma. Ou seja, não se corria atrás dos fatos, apesar das repercussões da mídia e subseqüentes pressões, mas mantinha-se o planejado. 

No caso das operações da Vila Cruzeiro e do Alemão, o volume de terror que, suspeita-se, uma facção espalhou pela cidade como reação às UPPS, a operação (aí sim) reativa, não deve se limitar a isso, mas transformar-se numa resposta duradoura.

Até aqui não usei os termos ocupação ou invasão, pois eles devem ser descartados do nosso vocabulário ao se referirem às partes da cidade que abrigam centenas de milhares de cariocas de nascimento ou coração. As forças de Segurança devem ser vistas, e principalmente se verem, não como forças invasoras ou ocupantes, mas como agentes que reconquistaram para o Estado um território dominado militarmente, politicamente e culturalmente por bandos militar-empresariais, opressores de uma imensa população honesta, trabalhadora, alegre e esperançosa de um futuro melhor.

Há um mito de que falha destas operações mais recentes é que elas não atingem os grandes chefões do tráfico, que não estão nas favelas, mas são poderosos ‘barões’ internacionais.

Isto também é falso! Não há esta hierarquia, pois as relações que as quadrilhas têm com o grande tráfico internacional não é de subordinação, mas de cliente. Assim, o combate a cada tipo deve se dar em escalas diferentes.

Para o grande tráfico sim: vigilância nas fronteiras, ações contra a corrupção nos três poderes, em escalões mais altos; somado ao combate contra o tráfico de armas. Isto deve ser feito por parte do Governo Federal.

Mas se estas ações impedem a chegada das drogas e de parte das armas às favelas, não vão retirar das mãos dos bandidos as que eles já possuem, suficiente para se pensar durante anos que uma área da cidade era um território ‘dominado’. Qualquer governo que se proponha a levar um mínimo de qualidade de vida a sua população, tem que se defrontar com esse problema mais cedo ou mais tarde.

Por outro lado, foram justamente as ações de sufoco a essas quadrilhas que geraram os dias de medo da semana passada e a necessidade da resposta reativa. Isto, longe de nos amedrontar, deve servir para mostrar parecemos estar no caminho certo.

Outra crítica tem sido quanto à ‘heroicização’ da polícia. A busca do modelo ‘Capitão Nascimento’, policial duro, violento, à margem da lei, mas do lado do ‘bem’, como se os fins justificassem os meio.

As forças de segurança não podem nunca ser as primeiras a descumprirem a lei. Ao falarmos em Direitos Humanos, não se propõe dar abraços no bandido, mas que ele arque com seu crime e cumpra sua pena nos moldes exclusivos da lei. Qualquer coisa fora disso é a barbárie, que tem jogado a cidade no caos. Qual é a diferença para o Nazismo ou o Apartheid sul-africano se escolhermos quem tem direitos a ter direitos?

A heroicização da polícia na ação de semana passada deve ser estendida a toda sociedade, às populações das comunidades inclusive, porque as forças de segurança, ao agirem como representantes da lei, e com o comportamento que delas se espera, com inteligência, com valentia, mas com respeito aos direitos elementares do cidadão, declarado no discurso das autoridades, reconquistou não só territórios, mas o respeito e a confiança dos moradores. E só por isso pôde ter êxito.

Possíveis excessos realmente não devem ofuscar a operação que, ao se divulgar que ia ocorrer (e televisionada), poupou muitas vidas inocentes. Por outro lado, devem deixar essas mesmas autoridades alertas de o quanto é possível avançar a um futuro melhor com uma corporação com grande número de membros acostumados a agir à margem da lei, conforme os boatos da fuga dos principais líderes demonstram? Uma política séria tem que enfrentar essa questão, e rápido.

A operação falhará clamorosamente, e perderemos todos uma grande chance, se a opressão que a população sofria  por parte das quadrilhas for meramente substituída pela opressão de policiais e soldados. O Estado deve ser assumir seu papel de ‘protetor’, no mesmo sentido que ao resto da população, e o promotor da lei nestas comunidades.

Ter a confiança e o respeito de toda a sociedade passa por valorizar sim o policial, principalmente como um servidor público. Que deve ter orgulho de sua profissão, e inspirar respeito, não descrença ou medo. Isto passa por melhores condições de trabalho e salário. Como as UPPs, devemos encarar isto como um investimento a médio e longo prazo, pagar mais aos policias, e que ajam com correção, para que possamos  precisar cada vez menos deles.

A mudança de paradigma do ‘tráfico’ de não agir mais como protetor, mas como opressor, foi fundamental para o sucesso da operação. A contribuição de moradores através do Disque Denúncia e de contatos diretos deve servir de inspiração para um novo momento das forças de segurança pública e do Estado (em todos os seus níveis) no Rio: a chance dessas reconquistarem o respeito e a confiança da sociedade. A operação terá sucesso se conquistar, principalmente, corações e mentes dos jovens moradores das comunidades, A fuga dos traficantes, deixando para trás os subordinados, fez revelar que naquela vida não existem virtudes a serem admiradas, mesmo as que pensava-se existir, tais como valentia, força e lealdade.

A presença das forças de seguranças deve ser duradoura, ou corre-se risco de ser apenas mais uma, com custos altos, que acaba e a vida volta ao cotidiano anormal/normal de sempre. A entrada (ou reentrada) de serviços do estado e prefeitura são passos importantes para a percepção de que algo vai diferente.

Os moradores, que majoritariamente apóiam a operação, como pude constatar em conversas, não estão dando um cheque em branco para as autoridades. Nelas depositam a esperança de viverem em paz. Que elas, e todos nós, estejamos a altura deste momento.

Rio, 30 de novembro de 2010

 

 

 

Redação

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