EUA: Um estranho no ninho, por Sebastião Velasco e Cruz

O pré-candidato democrata, Bernie Sanders, no jovem radical, o velho conservador

O pré-candidato democrata, Bernie Sanders, durante um comício no final de 2019

do Observatório Político dos Estados Unidos – OPEU

Um estranho no ninho

por Sebastião Velasco e Cruz*

Bernard Sanders é um desmentido cabal do adágio que anuncia, no jovem radical, o velho conservador. Nascido em uma família de trabalhadores judeus, de origem polonesa, moradores do Brooklin, Sanders — ou melhor Bernie, como então era chamado — ingressou na idade adulta em um período dramático da história dos Estados Unidos, e viveu intensamente as lutas que marcaram sua geração. Tendo estudado no College de Brooklin e depois na Universidade de Chicago, onde se graduou em Ciência Política, Bernie Sanders – como hoje o conhecemos – participou ativamente dos movimentos dos direitos civis e contra a guerra do Vietnã. Desprovido de dotes excepcionais de orador, destacava-se, porém, por seu grande talento em congregar pessoas diferentes em torno de si e de com elas construir consensos. Membro da Young People’s Socialist League (seção juvenil do Partido Socialista da América), presidiu o capítulo do CORE (Congress for Racial Equality) na Universidade e integrou o SNCC (Students Non Violent Coordinating Committee), organização que esteve à frente de grandes mobilizações e foi liderada por jovens cujos nomes se tornaram famosos, nacional e internacionalmente. Objetor de consciência, mas tendo escapado do alistamento compulsório por idade, Bernie Sanders incluiu em seu currículo nessa época uma detenção, com multa, por resistência à prisão durante um protesto contra o racismo.

Concluídos, sem brilho, os estudos em 1964 (‘aprendi muito mais no campus do que em sala de aula’, diria mais tarde), volta a Nova Iorque, onde trabalha em diferentes ocupações, entre os quais as de professor de escola, auxiliar de psiquiatria e carpinteiro. Em 1968, inspirado no ideal comunitário de volta à terra, instala-se em pequena aldeia no interior de Vermont. No período em que viveu nessa localidade, trabalhou como carpinteiro, jornalista e diretor de cinema. Em meados da década de 1970, muda-se para Burlington, maior cidade de Vermont, onde dá início à sua carreira política.

Com a experiência prévia de várias campanhas frustradas – para o Senado estadual e mesmo para o governo de Vermont – Bernie Sanders derrota a máquina democrata e se elege prefeito de Burlington, em 1980. Reeleito três vezes, nos oito anos em que se mantem no cargo, realiza uma gestão inovadora, cuja marca distintiva é o combate à especulação imobiliária e a renovação dos equipamentos públicos. Mas não apenas isso. Identificando-se publicamente como socialista-democrático, Bernie Sanders dá à sua gestão um nítido colorido político: nas atividades culturais que promove e no embate à política de Reagan para a América Latina, cujo ponto alto é sua viagem à Nicarágua e seu encontro com Daniel Ortega, então chefe do governo Sandinista.

Os primeiros passos de Bernie Sanders na política eleitoral foram dados como membro do Liberty Union Party, organização de esquerda com raízes no movimento anti-belicista, da qual se desvinculou em 1977. Foi como candidato independente que ele conquistou a prefeitura de Burlington.  E foi nessa condição que conquistou, em 1990, seu assento na Câmara dos Representantes dos Estados Unidos – o primeiro independente a realizar tal proeza em quarenta anos.

Deputado de primeiro mandato, inexperiente, sem partido, Sanders abre espaço para sua atuação parlamentar ao criar já em 1991, com cinco deputados do Partido Democrata, o Congress Progressive Caucus, do qual foi o primeiro presidente. Em expansão contínua, o CPC é integrado hoje por 97 deputados, sendo o terceiro maior Caucus na Câmara de Representantes.

Com os meios à sua disposição, Sanders revelou-se um congressista atuante e hábil, chegando a ser classificado como o “rei das emendas”, pela facilidade que tinha para negociar acordos pontuais cruzando linhas partidárias. Entre as atitudes polêmicas que assumiu em seus múltiplos mandatos na Câmara destacam-se sua oposição à reforma bancária de 1999, que eliminou as barreiras até então existentes entre bancos comerciais e bancos de investimento, seu voto persistente contra o Ato Patriótico (lei de exceção para o combate ao terrorismo) em suas diversas edições, e sua oposição à autorização legislativa ao uso da força no Iraque – em 1991, e em 2002.

Eleito Senador pelo estado de Vermont em 2006, participou de inúmeros comitês importantes e manteve sua linha de conduta, atraindo a atenção do público pela disposição de sustentar pontos de vista minoritários e pela intensidade com que os defendia. Como ilustrado pelo discurso de mais de oito horas feito em dezembro de 2010 contra uma lei que estendia incentivos fiscais da gestão Bush, favorecendo injustificadamente os mais ricos. Transformado em livro, esse discurso ajuda a construir a imagem que ele projetará poucos anos depois como desafiante de Hillary Clinton, na disputa pelo lugar de candidato Democrata à Presidência dos Estados Unidos.

Lançado em 2015, o desafio de Bernie Sanders foi finalmente vencido. Mas deu origem a uma campanha sui generis, que teria forte impacto político. Suas características mais salientes repetem-se agora, em 2020: radicalidade de propostas, embaladas em um discurso que viola o tabu ao se identificar como socialista; ampla mobilização de jovens, com emprego maciço de ferramentas de comunicação eletrônica; grande capacidade de captação de recursos financeiros sob a forma de  contribuições pulverizadas, rejeitando – uma singularidade na história eleitoral americana – o apelo a grandes doadores.

E tem mais, longe de se desmobilizar depois da vitória inesperada de Trump, essa base de apoio transmutou-se em movimento político vigoroso, de grande capilaridade, que desde o início tem feito o diferencial da campanha de Sanders nas primárias democráticas, assegurando-lhe enorme vantagem frente a seus concorrentes. Peça decisiva nesse processo foi a publicação de seu livro programático Our Revolution, e a criação de uma organização social com o mesmo nome.

A plataforma eleitoral de Bernie Sanders está exposta em um longo documento, dividido em trinta e três itens, que cobrem os mais diferentes temas. Um rápido passar de olhos sobre ele basta para dar ao leitor uma ideia do radicalismo subsistente em sua política. Registre-se, apenas a título de ilustração, os seguintes compromissos:

– criar um sistema público e universal de saúde;

– garantir acesso gratuito ao ensino superior (colleges e universidades), cancelar a dívida estudantil e tabelar os juros cobrados em crédito educativo;

– duplicar o número de sindicalizados, mediante dispositivos legais vários, entre os quais mecanismo de proteção federal contra demissões sem justa causa;

– criar um imposto anual sobre grandes fortunas;

– democratizar a vida política através de medidas como:  transformação do Election Day em feriado nacional;  garantia de registro eleitoral automático; fim do financiamento empresarial de campanhas e sua substituição por um fundo público;

– reformar o sistema financeiro, com o desmembramento dos maiores bancos (‘grandes demais para falir’); a reintrodução do Glass Steagal Act  —  lei rooseveltiana  em vigor até fins década de 1990 — que separava bancos comerciais e bancos de investimento; o tabelamento dos juros cobrados em cartões de crédito e das taxas bancárias; a realização de uma auditoria no Banco Central; a criação de uma taxa sobre transações financeiras.

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Discute-se muito, dentro e fora dos Estados Unidos, as credenciais socialistas de Bernie Sanders. E comentaristas conservadores já começam — agora que seu nome desponta como franco favorito nas primárias — a denunciar a operação esboçada na mídia liberal no sentido de apresenta-lo como representante da tradição reformista do Partido Democrata, a fim de torná-lo mais palatável ao eleitor médio americano. O próprio Sanders joga com a ambiguidade do termo para afirmar que o socialismo já existe nos Estados Unidos, com a peculiaridade de se tratar aí de um ‘socialismo para os ricos’…

O observador externo não deve dar muita atenção aos argumentos terçados nesse debate, que obedece estritamente à lógica do conflito. De sua perspectiva – i.é, da nossa – importa é observar que – seja qual for o desfecho da competição pela candidatura democrática e, para além dela, da eleição de novembro — o fato de um personagem com semelhante perfil ter conseguido se alçar ao lugar ocupado por Bernie Sanders hoje em dia é um grande revelador da transformação política profunda ora em curso nos Estados Unidos.

Professor Titular do Departamento de Ciência Política da Unicamp e do Programa San Tiago Dantas de Pós-Graduação em Relações Internacionais, UNESP/UNICAMP/PUC-SP. Diretor do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-Ineu).

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