Violência ou Martírio, de Valéria Camargo: um estudo sobre as fontes do Direito Islâmico

por Claudio Santana Pimentel

O controverso fenômeno dos atentados – geralmente adjetivados “terroristas” – que acontecem sobretudo na Europa, frequentemente é abordado de maneira superficial. O emprego irrefletido de expressões como “terrorismo islâmico”  pelo presidente ianque, Donald Trump, seu uso superficial do conceito de “choque de civilizações” desenvolvido por Samuel Huntington, apenas colabora para o aumento do preconceito e da discriminação. A incompreensão de setores reacionários da sociedade brasileira em relação à recente Lei de Migração, pode ser considerada exemplo próximo dessa mentalidade, que infelizmente parece hegemônica nos tempos atuais. 

O livro de Valéria Camargo, Violência ou Martírio?: uma análise da violência e do significado do martírio nas fontes e interpretações islâmicas, resultante de sua pesquisa de Doutorado em Ciência da Religião na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação de José J. Queiroz, discute a delicada problemática da legalidade e da legitimidade do suicídio no Islamismo.

Problema que tem ocupado a pesquisadora desde sua dissertação de Mestrado[1], o tema do “suicídio em nome de Deus” é agora abordado sob a perspectiva das fontes religiosas e legais primeiras do Islã, o Corão e a Charia. O questionamento principal levantado por Camargo: haveria, nas fontes islâmicas, base legal para legitimar a atitude de indivíduos que promovem a própria morte, e a de outros, em atentados? A noção de martírio, distinta nas duas principais correntes islâmicas, a sunita e a xiita, autorizaria incluir homens e mulheres bomba no rol dos mártires?

Nas palavras da autora:

 

[…] pretendemos contribuir para esclarecer esse espinhoso problema procedendo à análise da violência e do significado do martírio no Islamismo, a partir da leitura das fontes islâmicas, de declarações e interpretações de teóricos e organizações muçulmanas. Para termos uma leitura mais adequada do fenômeno são necessárias a ida às fontes, às interpretações do Islamismo e a busca de uma compreensão mais exata das suas matrizes religiosas e culturais. (p.13)

 

 

Metodologicamente, a opção da autora, advogada de formação, é a análise hermenêutica dos textos sagrados da tradição islâmica, em especial o Corão, fonte primeira da religião muçulmana, e os ahadith, coletânea dos ditos e preceitos do profeta Mohammad, considerados divinamente inspirados. Em que medida esses textos fundamentais autorizariam ou recusariam a condição de mártir aos autores de atentados suicidas, e, portanto, legitimariam ou não sua conduta, constitui o objeto de sua investigação.

Dessa maneira, o Capítulo I: As fontes do Islamismo: textos sagrados, constitui uma apresentação geral dessa literatura sagrada, explicitando seu processo de constituição, o capítulo revela-se, também, uma boa introdução ao Islamismo, a partir da consulta a uma sólida bibliografia, e um convite ao aprofundamento em sua lógica interna.

No capítulo seguinte, intitulado O conteúdo dos textos, a autora procede à seleção desses textos, enfatizando as suratas ou versos corânicos e os ahadith relacionados ao tema da pesquisa. Os textos relacionados à temática, que versam sobre o paraíso e o inferno, o martírio, a impermanência do mundo e os prazeres mundanos, a ressureição e as virtudes, o suicídio e o homicídio, são reunidos e examinados cuidadosamente.

Em seu terceiro e principal capítulo, Do conteúdo ao significado. Uma hermenêutica dos textos para analisar a ação das “bombas humanas”, a autora concentra-se na discussão do significado de jihad, recusando a tendência midiática e ocidental a reduzi-lo a uma ação violenta, explicitando a reação de autoridades islâmicas contemporâneas contra essa interpretação. A principal delas, a Apelação de Meca, divulgada em 2003, que expressa a rejeição do Conselho Supremo das Mesquitas no Mundo ao terrorismo.

Sobre o sentido de jihad, Camargo diz: “Jihad não é ‘guerra santa’ de conquista e opressão e por isso deve ser sempre colocada no contexto dos textos do Alcorão e/ou dos Ahadith.” (p. 79). 

Apoiando-se em autores muçulmanos e não-muçulmanos para interpretar as fontes religiosas e jurídicas islâmicas, Camargo procura apresentar ao leitor o pensamento muçulmano a partir de sua lógica interna, pontuando as principais diferenças entre as tradições sunita, xiita e a mística sufi. Ao mesmo tempo, promove uma crítica à tendência midiático-ocidental que, por não poucas vezes, identifica a violência religiosa com o Islamismo, esquecendo que práticas violentas que se pretendem religiosamente motivadas ou justificadas podem ser encontradas nas mais diversas tradições e sociedades.

Deixemos a palavra mais uma vez à autora:

 

A prática das virtudes exige que o muçulmano não se limite em cumprir cerimônias mas tenha uma profunda fé em Deus, e nas verdades reveladas, partilhe os bens, cumpra os compromissos e seja paciente nas situações adversas. Deve ser justo e misericordioso, bom e compassivo; não seja fraco e não ceda ao mal; busque o bem estar da família sem ser desonesto ou ganancioso, nem avarento ou mentiroso e descomedido nas palavras. (p. 120)

 

O que se espera do muçulmano, portanto, afasta-se muito de nossos preconceitos, frequentemente alimentados e ampliados pelas mídias e por interesses político-econômicos nem sempre manifestos. O livro de Valéria Camargo é uma contribuição significativa para a formação de uma visão menos preconceituosa e mais compreensiva e receptiva, sobretudo dialogal, do Islã e de seus adeptos.

 


[1] Valéria Camargo, Matar-se em nome de Deus? Uma análise do suicídio praticado pelos homens e mulheres bomba no Islamismo. Dissertação. Mestrado em Ciências da Religião. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2007. 

 

Redação

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