Žižek: Uma comédia grega do absurdo

O triste destino do Syriza é emblemático da nova situação da esquerda europeia

Alexis Tsipras (Syriza) deixa a Mansão Maximos, em Atenas, após reunião com Kyriakos Mitsotakis (Nova Democracia), recém-eleito Primeiro Ministro grego. 8 jul. 2019.

do Blog da Boitempo 

Uma comédia grega do absurdo

por Slavoj Žižek

* TEXTO ENVIADO DIRETAMENTE PELO AUTOR PARA SUA COLUNA NO BLOG DA BOITEMPO. A TRADUÇÃO É DE ARTUR RENZO.

No capitalismo, tal como o conhecíamos, quando uma crise econômica severa impossibilitava a reprodução normal do sistema, algum tipo de domínio autoritário (geralmente uma ditadura militar) era imposto por cerca de uma década até que a situação econômica fosse re-normalizada o bastante para que um retorno à democracia pudesse novamente ser tolerado – lembre dos casos do Chile, da Argentina, da Coreia do Sul… O papel único do Syriza é que lhe foi permitido desempenhar esse papel geralmente reservado à ditadura de direita: ele assumiu o poder em um momento de profundo descontentamento social e crise, cumpriu sua tarefa de implementar medidas duras de austeridade, e agora deixa o palco para ser substituído por um partido chamado Nova Democracia – o mesmo que conduziu a Grécia à crise em primeiro lugar.

Os feitos do governo do Syriza são mistos: ele fez algumas coisas boas (que também poderiam ter sido feitas por um governo racional de centro, como o acordo com a Macedônia sobre a mudança de seu nome), mas no geral o resultado é uma dupla catástrofe. Não apenas porque as medidas de austeridade foram implementadas – exatamente aquilo ao qual toda a campanha e o programa do partido haviam se oposto. O gênio perverso dos burocratas da União Europeia foi permitir que justamente o Syriza o fizesse. Para eles, foi muito melhor que essa tarefa fosse realizada por um partido radical de esquerda porque assim os protestos contra a austeridade foram minimizados – dá para imaginar os protestos públicos organizados pelo Syriza se fosse um governo de direita impondo medidas de austeridade? Pior, ao implementar as medidas de austeridade, o Syriza de fato destruiu sua própria base social, a rica textura de grupos da sociedade civil da qual ele surgiu como partido político – agora o Syriza não passa de um partido político como qualquer outro…

Caro leitor do GGN, estamos em campanha solidária para financiar um documentário sobre as consequências da capitalização da Previdência na vida do povo, tomando o Chile como exemplo. Com apenas R$ 10, você ajuda a tirar esse projeto de jornalismo independente do papel. Participe: www.catarse.me/oexemplodochile

Quando o Syriza assumiu e passou a participar de negociações com a União Europeia, ficou claro que a partir do momento em que a única escolha era entre austeridade ou “Grexit” [saída da Grécia da zona do Euro], a batalha já estava perdida. Aceitar implementar medidas de austeridade significava trair o princípio básico de seu programa, e a saída da zona do Euro teria feito com que o padrão de vida dos gregos despencasse mais 30% e provocado um colapso da vida social (falta de remédios, de alimentos…), levando a um estado de emergência. Agora sabemos que o “Grexit” era algo bastante aceitável para a elite financeira europeia: Yanis Varoufakis relata que quando ele mencionou a saída da zona do Euro como uma ameaça a Wolfgang Schauble (o então ministro das finanças alemão), este imediatamente ofereceu bilhões para ajudar a Grécia a fazê-la. O que era intolerável para a elite da UE não era o “Grexit” mas sim a permanência da Grécia na UE e a construção de uma contraofensiva no seu interior. A ideia era clara: o colapso causado pela saída da zona do Euro teria servido como uma boa lição a todos os esquerdistas para que sequer ousassem brincar com medidas econômicas radicais. O establishment gosta que uma esquerda mais radical assuma o poder a cada duas ou três décadas só para alertar o povo do tipo de perigo que esse tipo de caminho guarda.

Então tudo dependia de se evitar essa escolha binária e encontrar uma terceira alternativa. Ingenuamente, nós que apoiamos o Syriza pensávamos que eles tinham um plano para esse terceiro caminho. Em todos os debates que participei com eles, me foi garantido que eles sabiam o que estavam fazendo e que não era preciso se preocupar, pois o Syriza tinha uma equipe dos sonhos e eles vão ganhar. Até eu caí nessa por algum tempo porque, apesar de todas as críticas de esquerda à brutalidade da pressão exercida pela UE sobre a Grécia, não se pode dizer que a UE fez qualquer coisa de inesperado: os gestores de Bruxelas agiram precisamente conforme o esperado, não houve surpresas nesse sentido.

Então como dar conta do duplo cavalo de pau dado pela crise grega em julho de 2015? O que se sucedeu foi uma passagem não apenas da tragédia à comédia, mas de uma tragédia repleta de reversões cômicas, diretamente a um teatro do absurdo – há outra forma de caracterizar a extraordinária reversão de um extremo em seu oposto que deixaria espantado até mesmo o filósofo hegeliano mais especulativo? Cansado das intermináveis negociações com os executivos da União Europeia, marcadas por humilhação atrás de humilhação, o Syriza decidiu convocar um referendo no domingo, dia 5 de julho, perguntando ao povo grego se eles apoiavam ou rejeitavam a proposta da UE de novas medidas de austeridade. Embora o partido claramente afirmou que apoiava o “NÃO”, o resultado foi uma surpresa para o próprio governo: a esmagadora maioria de mais de 61% dos eleitores disseram “NÃO” à chantagem europeia. Começaram a circular boatos de que o resultado – vitória para o governo – era uma má notícia para o próprio Aléxis Tsipras, que secretamente esperava que o governo perdesse o referendo, para que uma derrota permitisse que ele resguardasse sua dignidade ao se render às demandas da UE (“respeitamos a voz dos eleitores…”). Contudo, literalmente na manhã seguinte, Tsipras anunciou que a Grécia estava pronta para retomar as negociações, e dias depois o país negociou uma proposta da UE que é basicamente idêntica à que os eleitores rejeitaram (até mais dura em alguns quesitos). Em suma, ele agiu como se o governo tivesse perdido, e não ganho, o referendo. Aqui chegamos à verdade do populismo: seu fracasso de confrontar o Real do capital. O momento populista supremo (vitória do referendo) imediatamente reverteu-se em capitulação, em confissão de impotência no que diz respeito à ordem capitalista – não se trata de uma simples traição, mas da revelação de uma necessidade mais profunda. Esse para mim foi o momento de verdade daquele processo todo. É fácil demais falar em “traição” aqui – estamos diante de uma crise muito mais profunda da esquerda.

Lembro-me de como, nos debates de 2015, alertei contra o perigo do fascínio diante de grandes acontecimentos públicos – todo aquele falatório sobre “um milhão de nós reunidos na praça Sintagma, batendo palmas e cantando juntos…” O que realmente importa é o que ocorre na manhã seguinte, quando passa o transe coletivo inicial e o entusiasmo precisa ser traduzido em medidas concretas. Eu frequentemente evoquei a imagem de um grupo de participantes que, uma vez ao ano, se encontram em um café no aniversário das manifestações do passado e relembram de forma sentimental aqueles momentos de unidade sublime… mas em seguida o celular de um deles toca e eles precisam correr de volta a seus empregos enfadonhos. Podemos facilmente imaginar uma cena dessas hoje: membros do Syriza se encontram em um café para relembrar, afetuosamente, o espírito único dos protestos de massa dos quais participaram em 2015, e em seguida um celular toca, e eles precisam voltar correndo ao escritório para continuar implementando a austeridade…

Esse é o nosso mundo hoje, um mundo em que populistas de direita levam a cabo medidas de estado de bem-estar social e a esquerda radical cumpre o papel autoritário de impor austeridade. Será que uma nova esquerda conseguirá encontrar uma saída para esse impasse?

* * *

Em entrevista exclusiva ao Blog da Boitempo, feita logo após a eleição de Bolsonaro, Slavoj Žižek comentou a capitulação do Syriza e refletiu que uma novidade potencialmente interessante do Brasil é que aqui o populismo de direita que está no poder não abriu mão da imposição da austeridade. Leia aqui.

* * *

*Slavoj Žižek nasceu na cidade de Liubliana, Eslovênia, em 1949. É filósofo, psicanalista e um dos principais teóricos contemporâneos. Transita por diversas áreas do conhecimento e, sob influência principalmente de Karl Marx e Jacques Lacan, efetua uma inovadora crítica cultural e política da pós-modernidade. Professor da European Graduate School e do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, Žižek preside a Society for Theoretical Psychoanalysis, de Liubliana, e é um dos diretores do centro de humanidades da University of London. Dele, a Boitempo publicou Bem-vindo ao deserto do Real! (2003), Às portas da revolução (escritos de Lenin de 1917) (2005), A visão em paralaxe (2008), Lacrimae rerum (2009), Em defesa das causas perdidasPrimeiro como tragédia, depois como farsa (ambos de 2011), Vivendo no fim dos tempos (2012), O ano em que sonhamos perigosamente (2012), Menos que nada (2013), Violência (2014),  O absoluto frágil (2015) e O sujeito incômodo: o centro ausente da ontologia política (2016). Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.

*Artur Renzo é editor do Blog da Boitempo, da TV Boitempo e da revista Margem Esquerda. Formado em Filosofia e em Comunicação Social com habilitação em Cinema, traduziu, entre outros, A loucura da razão econômica: Marx e o capital no século XXI (Boitempo, 2018), de David Harvey.

Redação

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador