151 pessoas presas em Goiás, abuso sexual e o Setembro Amarelo: tudo a ver, por Mariana Nassif

Porque se os ciclos de abuso e traumas resistem e persistem emudecidos, a coragem transforma minha dor pessoal em batalha coletiva: pedofilia é uma epidemia que sim, contribui imensamente para os altos números de suicídio.

151 pessoas presas em Goiás, abuso sexual e o Setembro Amarelo: tudo a ver

por Mariana Nassif

Padrastos, maridos e avôs estão entre os 151 presos em operação contra crimes sexuais em Goiás. 

Hoje acordei com essa notícia.

Abuso sexual é um criminoso hediondo, como bem sancionou a então presidente Dilma Roussef em 2014.

Um ano antes, escrevi o texto abaixo para um blog que insistia em alimentar enquanto lidava com as bizarrices que compõe o quadro de quem decide organizar uma história de vida que conta com capítulos de terror logo nos seis minutos do primeiro frame. Escrever tem salvado minha vida há anos. O invisível também. Insistir-hey, em ambos.

 

“Com cinco ou sete anos, não sei direito (você vai perceber que não sei direito muitas coisas dessa história toda – é a continuação de toda a sorte que a vida me deu), havia um homem, um cuidador, enfermeiro do meu avô. Mas é claro que ele não é o personagem principal desta história – a história é minha, a personagem principal sou eu.

Bem, num resumo e apresentação bem rápida dos fatos, este homem vivia no apartamento dos meus avós. Isso, aquele lugar confortável e recheado de boas lembranças: o almoço familiar, a reunião dos primos e primas, as músicas, os doces proibidos pelos pais. Eu também vivia no apartamento dos meus avós.

Em algum momento, meus avós dormiam – ou é assim que me lembro, pois não sei direito. E este homem, com suas mãos muito maiores do que as minhas, olhos maiores do que qualquer um que já vi no mundo, este homem de alguma maneira que não me lembro, me colocava em seu colo e me mexia. Mexia contra seu colo. E, não sei direito como, a vida se apagava daquele momento em diante.

Também não sei ao certo como era a cronologia destes fatos, não tenho memórias de sentir qualquer coisa, de fazer escândalos ou impedir que meus pais me deixassem por mais uma tarde na casa de meus avós – porque o tamanho do que este homem apagou da minha vida não é mensurável, ainda não é – mas não vai, ah, não vai mesmo, ser maior do que a minha história, do que eu sinto e vivo. E não vai ser maior do que meus sonhos, do que minha missão.

Sei que é um buraco. Um buraco vazio, que durante algum ou muito tempo foi preenchido com suposições acerca do “porquê eu sou assim”. Com muita terapia e alguns sonhos, puxei o fio da meada: olhando para os vidros desenhados da cristaleira símbolo da minha infância, fui abusada.

Acontece que, abusada que sou, decidi: esta vida, esta história, esta experiência – ela é minha. E a personagem principal sou eu. E eu, ah… eu ouso. Ouso buscar, ouso viver, ouso não permitir que um abuso me defina. Ouso escrever sobre isso e, assim, preencher este buraco com o há de mais valioso pra mim, nesta vida: tudo é estrada pro crescimento, depende de cada um como vai caminhar.”

Este não saber direito se movimenta muito mais lentamente do que eu gostaria em direção a um encaixe e a grande responsável sou eu, por sempre desistir de enfrentar profundamente essa ferida. Agora, iniciada para Oyá e sentindo a força de uma natureza de amor, sem dúvida nenhuma – de amor – pela existência, me recoloco à disposição daquilo que vem me salvando a vida desde aquele tempo: o invisível e a escrita. Meus sonhos, minha missão.

Porque se os ciclos de abuso e traumas resistem e persistem emudecidos, a coragem transforma minha dor pessoal em batalha coletiva: pedofilia é uma epidemia que sim, contribui imensamente para os altos números de suicídio. Por isso, me exponho e escrevo: não se mate. Mesmo que o ciclo de horror e machucados deste tamanho todo ainda sejam praticados dentro de uma bolha de silêncio onde deveria haver amor, cuidado e acolhimento, é possível reordenar-se. Cultive aquilo e aqueles que te compõe em suas melhores fases. Mesmo quando ficar exausto de ter que correr atrás da lacuna de realidade que descolou de ti entre uma mancada e outra que o mundo dá – mesmo assim, em exaustão, você ainda pulsa.

Pulse. Experimente desconectar-se com lucidez, conduzindo as fugas para lugares e afazeres produtivos, que desencadeiam pilares fortes e estruturados. Estude. Leia sobre habilidades emocionais. Faça como for possível, o que for possível. Pulse.

Setembro amarelo e tudo o que eu puder fazer para salvar uma vida, farei.

Eles serão presos. Mesmo que em celas mentais de pobreza constituinte.

Nós seremos livres. Mesmo e de fato: livres.

Axé, laroyê e uma semana de continuidade pra você.

 

 

Mariana A. Nassif

1 Comentário
  1. Tenho vindo muito pouco aqui. A cada vez que venho, seja pela indignação, informação, visão diferente, recorro ao “Esqueci a minha senha”. Acredito que esta seja a segunda vez que comento um post seu…que toca o meu coração de forma tão profunda e nos aproxima, que ainda não descobri o porquê , mas já esboço o como. Admiro tanto sua entrega nas palavras, porque sempre acreditei no poder delas. Suas combinações funcionam para mim como notas musicais. Vim aqui, novamente, refazendo a senha (acho que consegui, novamente, como um ciclo, chegar na primeira cadastrada), motivada pelas suas palavras e te dizer: Grata Mariana Nassif, mais uma vez, você tocou a minha alma.

Comentários fechados.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador