A boataria como fenômeno do estado de guerra, por Rogério Mattos

A boataria como fenômeno do estado de guerra, por Rogério Mattos

O fenômeno atual de boataria é um sintoma da quadra histórica em que vivemos, ou seja, numa espécie de mundo submetida a lei natural hobbesiana, pré-contratualista, que seria real se não fosse algo fabricado. Não por acaso, o medo e o autoritarismo, a solução do Leviatã, hoje encontra tamanha repercussão. As chamadas “fake news” são a espuma das ondas da história. Não devemos ser dramáticos nem apressados ao tirar conclusões sobre esse fenômeno, assim como ter em mente que um boato pode durar por séculos, como o do famoso poder taumatúrgico dos reis, como relatado em um livro clássico do historiador Marc Bloch depois de vivenciar a experiência da multiplicação dos boatos nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial.

As acusações frequentes sobre as fake news nas eleições atuais no Brasil, como se fossem uma repetição do que ocorreu em 2016 nos EUA, não é adequada. Deve ser lembrado que o fato político da campanha foi um vazamento dos arquivos de campanha do Partido Democrata, onde se mostrou a interferência da candidatura de Hillary Clinton para prejudicar a campanha de Bernie Sanders. Indignada, Hillary acusou Donald Trump de conluio com os russos, que supostamente teriam hackeado os arquivos de seu partido. As fake news, nos EUA, estão diretamente associadas ao neomacartismo, ao “perigo vermelho”, russo, fato este que, até agora, procuram explorar para levar Trump ao impeachment.  É exatamente nesse sentido que deve ser entendidas as palavras de Luiz Fux meses atrás sobre a interferência das redes sociais nas eleições. O Partido dos Trabalhadores, e o “perigo vermelho” que ele representa, poderia usar dessas “forças ocultas” para se beneficiar durante a campanha eleitoral. Nada nem próximo ao que ocorreu com o “caixa 2” de Bozo.

O fato é que o Facebook foi o instrumento de vigilância e mineração massiva de dados desde sua origem. Assim, exerceu papel fundamental nas “revoluções de cor” que ocorreram, simultaneamente, em diversas partes do mundo no biênio 2013-14. O que está em jogo agora é que esse modelo bem sucedido montado pelas agências de inteligência virou um pacote comercial. Não é só a Cambridge Analytica, mas inumeráveis empresas que usam desses dados, agora numa chave que liga os dados pessoais coletados no Facebook com o que é feito através do Whatsapp. A recente denúncia contra a campanha de Jair Bolsonaro mostra como o modelo dos órgãos de inteligência, deslanchado em 2013, se tornou um “case de sucesso”. O sistema de vigilância e mineração de dados foi terceirizado para empresas privadas.

O historiador Marc Bloch escreveu um de seus mais importantes trabalhos antes de ser assassinado na Resistência francesa pelo facínora Klaus Barbie, chamado Os reis taumaturgos. Por detrás da fachada de uma história narrada quase como conto de fadas, apesar de todo o aporte científico que empregou em suas pesquisas, sobre o suposto poder taumatúrgico, curador, dos reis medievais, havia toda a questão da experiência de guerra. Antes de se engajar na Resistência ao nazismo, Bloch lutou na Primeira Guerra Mundial e escreveu esse livro para contar à sua maneira a experiência nas trincheiras. Nelas, a multiplicação de boatos, a convivência com notícias confusas, trocadas, com meias-verdades e mentiras ao lado da ameaça real de um ataque iminente, num lugar onde não se tem acesso a jornais, rádio ou revistas, fez o historiador contar a história de um grande boato que viveu por mais de um milênio, o do suposto poder curador dos reis. Nesse sentido, seu livro pode ser lido quase como um romance, como uma ampla metáfora de sua experiência real, assim como também ilumina uma parcela considerável da sociedade, da mentalidade e do desenvolvimento histórico europeu. Se o que ocupa o historiador é o tempo presente, como sempre enfatizou Bloch, mais uma vez o tempo se torna presente, se atualiza, em relação a relevância de seu livro. Vivemos agora, mais do que nunca, na trincheira de uma guerra de escala mundial que ainda deverá ser compreendida adequadamente.

Para além das implicações jurídicas, como o uso indevido de financiamento empresarial em campanha política e a disseminação massiva de calúnias via redes sociais, o fenômeno atual de boataria é um sintoma da quadra histórica em que vivemos, ou seja, numa espécie de mundo submetida a lei natural hobbesiana, pré-contratualista, que seria real se não fosse algo fabricado. Não por acaso, o medo e o autoritarismo, a solução do Leviatã, hoje encontra tamanha repercussão. As chamadas “fake news” são a espuma das ondas da história. Não devemos ser dramáticos nem apressados ao tirar conclusões sobre esse fenômeno, assim como ter em mente que um boato pode durar por séculos, como o do famoso poder taumatúrgico dos reis.

Redação

3 Comentários

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  1. Crise final do capitalismo

    Por baixo dessa espuma está a disputa geopolítica entre EUA+Europa (capitlismo financeiro hegemônico) contra China+Rússia (capitalismo produtivo contra-hegemônico), sendo que o Brasil tem papel estratégico como grande fornecedor de matéria prima mundial (produtos agropecuários, minérios e principalmente petróleo). O Brasil estava se alinhando à Eurásia e, com o golpe híbrido de 2016, se alinha aos EUA (que, com o projeto Trumpiano, quer deixar de ser uma nação apenas fifnaceira e voltar a ser a fábrica do mundo).

    Mas esta disputa geopoítica ainda é uma camada grossa de espuma sobre a causa real do estado de guerra mundial. Esta causa é a crise final do capitalismo, que se aprofundou desde  2008. Crise do trabalho que está sendo subsitituído por máquinas e crise do valor, que se traduz como queda da taxa de lucro das empresas produtoras de mercadorias.

    Não é apenas o capitalismo financeiro que agoniza, mas o capitalismo em geral. Sintomas:

    1. Não há, em lugar nenhum do mundo, perspectivas para melhoria das condições de trabalho da massa de trabalhadores. Ao contrário, a tendência é que o chamado trabalho precário se torne o novo normal;

    2. Não há perspectivas que as dívidas dos estados, das empresas e das famílias diminuam. Isto significa que a economia real não produz valor (dinheiro real) suficiente para saldar a a enorme montanha de dinheiro fictício adiantada em forma de crédito;

    3. Estado nenhum tem condições nem faz planos de melhorar ou aumentar serviços públicos (educação, saúde, moradia) e redes de proteção social (como previdência, salário desemprego, renda mínima). O máximo que se sonha é manter o que se tem. Na maior parte das vezes, a proposta é a austeridade, pois a arrecadação estatal não dá mais conta dos gastos sociais. Traduzindo, o capitalismo não consegue mais manter a paz social com mecanismo democráticos.

    A causa destes três sintomas é uma apenas: a economia real não produz mais valor (renda) suficiente para manter o sistema, embora seja capaz de produzir riqueza material como nunca, por conta da automação da produção. Mas a riqueza no capitalismo é valor abstrato, fruto do trabalho abstrato. Na impossibilidade da produção de valor, o sistema entra em parafuso.

    1. Wilton, em minha opinião o

      Wilton, em minha opinião o diagnóstico é esse mesmo. Tanto como uma guerra entre as potências nucleares, o risco de uma crise financeira sem precedentes continua na agenda. 

      Penso só que toda essa atmosfera, no Brasil, não deve ser vista fora do que foi feito por aqui a partir de 2013. A crise financeira de 2008 não foi capaz de retirar a soberania da América do Sul ou comprometer de maneira incisiva nem a Rússia ou a China. Começaram as ameaças de guerra junto com as “revoluções coloridas”. O pano de fundo é mundo pós-1989.

      Contudo, e repito, 2013 é fundamental para tudo isso. Bolsonaro é quase que o “subproduto do subproduto” do lema “contra tudo o que está aí”. E é curioso tanto quanto esquisito que algo como isso tenha alguma chance, ainda que eleitoral. Um governo de fato tende a ser um caos, com toda a violência que lhe é inerente. De qualquer maneira, não se sabe como e até quando esse subproduto vai resistir. A resistência de uma força tão débil é algo que intriga alguém que use o mínimo de razão. De forma alguma tem a força do que ocorreu na década de 1960, ainda que em muitos aspectos possa parecer ainda mais pernicioso.

      1. O economista argentino Jorge

        O economista argentino Jorge Beinstein tem uma opiniao certeira sobre isso. Ele diz que Macri e Bolsonaro representam uma lupenburguesia mundial dos países periféricos, cujo objetivo é apenas a rapina imediata, sem nenhum projeto de país. O Paulo Guedes é exatamente o representante neoliberal dessa ave de rapina.

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