A estreia de Guilherme Boulos na Folha, por Gustavo Conde

Sua estreia como colunista no jornal Folha de S. Paulo permite um olhar mais acurado sobre essas sutilezas subscritas na arte da emulação.

Deutsche Welle

A estreia de Guilherme Boulos na Folha, por Gustavo Conde

Não é de hoje que as semelhanças formais entre o discurso de Guilherme Boulos e de Lula irrompem na disputa político-narrativa de turno. Sua estreia como colunista no jornal Folha de S. Paulo permite um olhar mais acurado sobre essas sutilezas subscritas na arte da emulação.

Há inúmeras marcas textuais que atestam essa similitude. Boulos apresenta algumas nuances de singularidade autoral – como enunciados vinculados a ocupações urbanas e a desagregações sociais – mas é transversal: seu discurso está estruturado sob a fortaleza semântica edificada por Lula ao longo de 40 anos.

Vale observar trechos de sua coluna de estreia no jornal da família Frias. Vamos ao primeiro:

“Há, porém, uma outra epidemia, não menos devastadora, que ameaça o Brasil em 2021: a da miséria.”

Esta construção sintática é característica do discurso de Lula. Trata-se do dispositivo técnico da catáfora (o oposto de anáfora): constrói-se a significação do referente antes de enunciá-lo para, então, apresentá-lo sob a própria tensão significante. A palavra “miséria” é esta pulsão catafórica – em relação referencial direta com “outra epidemia”.

Não se trata meramente de uma característica “universal” da linguagem, mas de um traço idiossincrático, constitutivo de discursos e de subjetividade, ainda mais se associado ao campo semântico da pobreza e da fome. E, do ponto de vista formal, Lula sempre “preparou” a significação de termos-chave de seu discurso, sempre instaurou uma nova relação metafórica didática para chegar ao coração leitor de seu público.

Boulos aprendeu, copiou e desapropriou o processo. Sem dúvida, é algo inteligente, mas tanto melhor seria se os devidos créditos formais estivessem subscritos, ao menos na reverência ética de quem pretende conquistar o próprio espaço político.

Vamos a outro trecho:

“O auxílio atendeu a 67% dos desempregados brasileiros e a mais de 40% das mulheres chefes de família. O valor representa mais da metade da renda familiar para 23 milhões de pessoas e a única fonte para outros 9 milhões. Ou seja, estamos falando da fronteira entre ter ou não comida na mesa.”

Aqui, o clássico dispositivo de apresentar dados e percentuais dialoga com o ethos de Lula, este nem tão exclusivo assim, é bom que se diga. Mas o arremate é quase uma evocação: “comida na mesa”. Quantas vezes Lula enunciou este sintagma?

Claro que todos podemos falar “comida na mesa”. Mas em um discurso político, dentro do campo “progressista”, cujo co-enunciador é alguém com pretensões de liderança nacional, fica difícil não associar.

Mais Boulos:

“Estamos falando de gente com fome. De mais gente morando na rua, já que o benefício é utilizado por muitos para pagar o aluguel de algum cômodo nos fundões urbanos. Estamos falando de desespero. Se isso se traduzirá em saques e convulsão social, como em outras crises, é algo imponderável.”

Esse trecho é curiosíssimo, porque aqui, pela primeira vez, aparece o autor Boulos. Expressões como “fundões urbanos”, “saques”, “convulsão social” contribuem para, efetivamente, formar uma “voz”, uma “dicção”. Associa o autor a sua condição de líder do MTST, de líder de um movimento social identificável no tempo e no espaço.

Fosse eu um consultor de comunicação de Boulos, diria a ele: insista nesse formato. Construa um “molde” de significação dentro das fronteiras de sua identidade histórica. A emulação de Lula pode render frutos a curto prazo, mas compromete a consolidação de uma linguagem mais densa que, de fato, possa mexer com as paixões políticas do brasileiro. A “escuta”, o leitor, o militante, o povo – seja lá qual for a designação – sabe (sente) a autenticidade histórica de um discurso.

Mais um trecho:

“Serão R$ 32 bilhões a menos na economia por mês. Quem recebe o auxílio gasta no consumo, frequentemente no comércio local: no mercado, no açougue, na padaria do bairro. Sem esse dinheiro em circulação, poderemos ter uma nova onda de falências nos pequenos negócios e mais desemprego. É notório que os programas de transferência de renda têm efeito econômico multiplicador, ampliando o consumo popular, estimulando a geração de emprego e gerando impacto positivo na arrecadação tributária.”

Mais Lula, impossível. O trecho é puro DNA de Lula. A desapropriação discursiva gritante dispensa maiores comentários. Trata-se, a rigor, de uma composição argumentativa, inclusive, que não está no horizonte do Psol, partido de Boulos: a revolução econômico-social realizada pelo PT que mudou a face do Brasil e tirou 38 milhões de pessoas da miséria.

Dizer isso como se fosse formulação “autoral” soa oportunista. Uma opção técnica simples seria uma citação a Lula, que atenuaria em muito o efeito “copia-e-cola”.

Pode ser falta de orientação? Pode. Mas, a rigor, a ideia de copiar o discurso de Lula na forma e no conteúdo é péssima em termos de construção de identidade política – a não ser que a intenção seja deliberadamente tomar o lugar discursivo de “outro”, numa espécie de operação “O Talentoso Ripley”.

É sintomático que o jornal Folha de S. Paulo tenha recontratado um Boulos turbinado pelas eleições municipais e pela confusão generalizada que impera nos bastidores da esquerda brasileira. Ao emular Lula, Boulos não lhe reverencia, mas extrai sua identidade – processo caro ao jornal dos Frias e intento buscado pelas elites brasileiras há mais de 30 anos.

De Ciro a Globo, passando por Bolsonaro, todos querem enfraquecer Lula.

Também não é surpresa que parte do eleitorado de São Paulo tenha acreditado piamente que Guilherme Boulos era o “candidato do Lula” – com incentivos explícitos da campanha do candidato do Psol, diga-se de passagem. O processo de inter identificação passa primordialmente pelo discurso e pela forma, não pela aparência ou pelas juras de amor.

É compreensível, ainda, que Boulos tenha “carinho” por Lula e que Lula tenha “carinho” por Boulos. Afinal, quando nos olhamos no espelho, a tendência é de autopreservação. Para quem tem autoestima, ainda, há também uma satisfação em ver-se no universo das replicações sociais político-discursivas.

Não há crime grave em se imitar ídolos que admiramos, é bom que se diga. Billie Holiday começou sua carreira imitando Louis Armstrong. É como que uma “autorização” para ingressar no universo social da escuta (do jazz). O caso é que, anos depois, Billie virou Billie.

No caso de Boulos e a despeito de todo o seu talento e singularidade, há um claro ruído transverso na construção da subjetividade política. Até pelo carinho que todos mais alinhados à esquerda temos por ele, valeria uma repaginada – e/ou uma ‘investigada’ de cunho psicanalítico nos protocolos de confecção de seu discurso.

Do jeito que está, o gesto enunciativo-político divide e confunde.

Redação

4 Comentários

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  1. Em seu discurso no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, momentos antes de se entregar à polícia federal, Lula declara que sua prisão, nada significaria, pois ele havia se transmutado numa ideia. Reinventar a roda seria um grande atraso. Segue o jogo.

  2. Alguém precisa revisar os artigos do BOULOS. Olhem essa frase: ….”Os quase 70 milhões de famílias que deixarão de receber o auxílio a partir deste mês têm diante de si um mercado de trabalho sem oportunidades. Estarão jogadas à própria sorte.”
    – 70 milhões de famílias, ….se considerarmos que cada família tem 3 membros, .. total 210 milhões, população do Brasil.
    – Não é um erro isolado. Os números são importantes.
    O Boulos precisa ter alguém que faça a revisão de seus artigos.

  3. Vale lembrar que Boulos fez campanha contra a copa e contra Dilma antes do golpe. Tal qual Felipe Neto, “acordou”, muito embora este tenha feito a tal auto-critica enquanto aquele, não.

  4. Não é estreia, é a volta do funcionário padrão. Depois da campanha golpista do “Não Vai Ter Copa” ele também foi presenteado com uma coluna na Folha burguesa, agora ele retorna com a Frente Ampla para tentar fazer a esquerda eleger fascistas tipo Doria contra fascista Bolsonaro.

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