A ovelha negra da família, e isso não é uma canção da Rita Lee, por Mariana Nassif

A ovelha negra da família, e isso não é uma canção da Rita Lee

por Mariana Nassif

“Essa sensação de destruição da dúvida e da experiência de viver o próprio corpo tem a sua origem na necessidade de agrupamento humano, que se desenvolve, em primeiro lugar, na família. Uma das lições preliminares aprendidas no decorrer do condicionamento familiar é que o indivíduo não é auto-suficiente para existir no mundo por si só. O indivíduo é cuidadosamente ensinado a negar seu self e a viver aglutinado aos outros, colando pedaços de outras pessoas a si mesmo, para, em seguida, ignorar a diferença entre o que é dos outros e o que é de si mesmo no seu self. Isto é alienação, no sentido de uma submissão passiva à invasão dos outros que, no começo, são sempre os outros da família. A passividade, todavia, é enganosa, uma vez que esconde a escolha de se submeter a esse tipo de invasão. As metáforas da “paranóia” são todas um protesto poético contra essa invasão. A sua poesia, porém, que naturalmente varia em qualidade, é sempre menosprezada pela sociedade e, quando fala demais e se exalta, acaba sob tratamento psiquiátrico. Depois das instituições de educação, a psiquiatria é o terceiro bastião de defesa da família conta a autonomia de seus membros – a psiquiatria, bem entendido, ao lado das escolas especiais, das prisões e de uma multiplicidade de situações, mais discretas, de rejeição.”

São as aspas que gostaria de ter lido lá atrás, antes de ter cravado em mim mesma a dúvida sobre a sanidade mental. O temperamento difícil, explosivo, quente como bem ferve minha mãe Iansã – que, claro, em evolução se faz inteligente para utilizar as lavas e raios praquilo que faz bem  si mesma, e não em troca das besteiras alheias, ah, se eu também soubesse disso antes… – bem, este temperamento rendeu o título de a louca da família que, por algum tempo, foi claro e específico, com direito a cuidados psiquiátricos e medicação e, hoje, acho eu, acabou impregnado e vem à tona especialmente em momentos de confrontos específicos. Muita terapia, auto-conhecimento e este livro, “A Morte da Família”, de David Cooper, de onde retirei as aspas que abrem o texto, além do encontro com uma turma com quem me identifico, inclusive dentro da própria instituição familiar, hoje o título não incomoda tanto (eu disse tanto, meus processos são intensos e os fantasmas se divertem na minha cabeça, como bem disse um amigo amado padrinho abençoado). É tamanha a vontade de não desistir de ser quem eu sou e de reformatar meus desejos pra essa estrutura que sim, me traz prazer – pelo menos no que eu acho que deveria compor uma família, que há de ser solo fértil para o desenvolvimento pessoal, amor, amparo e algum desafio, claro (escrevo e percebo a utopia, há infinitas vezes mais famílias disfuncionais do que esta que desejo, nossa senhora da realidade!) – que encasquetei que, daqui pra frente, da filha que tenho pra lá, a gente pode alterar a constituição histórica e conceitual do que aprendemos como família.

É evidente que cada um faz o melhor que pode e que cabe a cada indivíduo se fortalecer e correr atrás do que deseja para si, mesmo que isso signifique estar distante fisicamente e que este não seja o modelo ideal de vida – meu caso, propriamente falando, eu que adoro um grude, um chamego, uma turma boa reunida em volta de comida gostosa, filminho na tarde de chuva, passeio e risadas, hoje vivo fisicamente afastada em prol de viabilizar simplesmente o “ser eu”. Isso porque apesar de sermos indivíduos, esta pequena sociedade de alto impacto acaba tendo trocas e mais trocas e algumas delas são avassaladoras, de verdade – para todo mundo, não é só pra quem tem dificuldade em estabelecer contorno não. Portanto, resumindo bastante porque este texto não é um desabafo mesmo que sempre acabe servindo como, uma das preciosidades maiores que aprendi neste tempo todo em terapia e na corrida por ser boa para mim mesma foi a troca do conceito de culpa pela prática da responsabilidade.

Demorei muito, muito mesmo, mas não o suficiente para não desejar sempre e cada vez mais, aprender e praticar tudo o que posso sobre isso. Enquanto os olhos da culpa pairavam debaixo dos meus óculos, a depressão, a mágoa, a tristeza infinita e a impressão de que nada iria melhorar haja o que houvesse, faça o que se fizesse, a preguiça de sequer começar a pensar em algo pra vida, praquela vida de “a louca”, porque afinal de contas já que sou louca por que diabos me envolver em qualquer coisa que seja?, enfim, os olhos da culpa estagnaram meu desenvolvimento – que é uma palavra de semântica maravilhosa, digna de separação literal e mágica, que quer dizer “eu me distancio do que me faz mal” mesmo que seja deste grupo importante e forte que é a família, porque provê, cuida e nutre, não conheço um bebê sequer que tenha sobrevivido sem este tipo de cuidado, quer dizer, realmente sem a família a gente não existiria, e isso traz mais conflito ainda, porque a gente questiona e é questionado sobre gratidão, ingratidão e compromissos de amor e de egoísmo e, então, eis que se desenvolver perante o grupo da família há de ser um ato de coragem e responsabilidade, muito mais do que de mágoa, e acontecer justamente para promover o direito de cada um ser como é, desenvolvendo-se no seu próprio tempo e ritmo, ou não, mantendo-se estagnado mesmo, e então cabe a quem deseja o desenvolvimento também respeitar e assimilar aquele movimento e, ufa, partir (se cansa só de ler, imagina o que é viver isso e eu acho que pelo menos 80% dos leitores se identifica, ainda que prefira estar dentro do que é chamado de “ter uma família normal”, porque é assustador, ainda, em pleno 2018, que alguém questione normalidades como se elas não fossem suficientemente bizarras).

Nem sempre é uma partida literal, já ouvi alguns casos onde o emocional dá conta de amadurecer e cair por perto, mantendo limites e diferenças quase nada notáveis na forma-convivência. Mas, via de regra, são movimentos conturbados e doloridos, porque quase ninguém é ensinado ou orientado para crescer. Como bem disse o texto que abre este escrito, aqui livremente interpretado por mim, deu problema vai tomar remédio, que me é uma frase-conceito muito familiar e, então, ao invés de ampliar os horizontes desta pessoa porque ela não cabe naquela estrutura, como se não caber fosse inadequado, cerceamos e medicamos em busca do normal. Particularmente, tive a sorte de encontrar apenas uma psicóloga equivocadíssima em meu caminho e algumas outras excelentes, estas que me auxiliaram, e muito, na caminhada pelo “caiba em você e se responsabilize por quem você é”. Caminhada que parece não ter fim porque, inclusive, eu tenho uma filha de temperamento fuerte e a quero livre, que é ainda um desejo inserido num conceito familiar e então pairam dúvidas e exercícios rotineiros sobre controle e ensinamentos e, ai minha santa, haja livro e conversa e rede boa pra dar conta de viver bem, do jeito que eu quero e de forma que me responsabilize, e não mais culpe os outros, por ser quem eu sou.

Impossível que este renascimento programado pra Julho não seja literal e, então, que me torne a ovelha negra dos pelos mais macios e quentes para acolher a família que desejo espalhar por aqui e acolá. O próximo livro, aliás excelente indicação, é O drama da criança bem dotada, de Alice Miller. 

 

Mariana A. Nassif

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