A reeleição do projeto liberal-fascista no Brasil prescinde do nome de quem o aplique, por Daniel Gorte-Dalmoro

Se é uma regra que segundo mandato empodera autocratas, não sei, mas o que se desenha para um segundo governo de extrema-direita é o recrudescimento do que foi feito até agora pelo governo Bolsonaro

A reeleição do projeto liberal-fascista no Brasil prescinde do nome de quem o aplique

por Daniel Gorte-Dalmoro

Oliver Stuenkel, professor da FGV, em artigo publicado há uns dias no El País, comenta que o autocrata precisaria da reeleição para ganhar força e pôr em xeque a democracia do país. A tese parece razoável: a primeira eleição do “outsider” seria um voto de protesto contra o sistema representativo liberal, já a reeleição seria o aval ao que foi rascunhado no primeiro mandato, dando força para o aprofundamento de mudanças que atentam contra democracia liberal burguesa e o estado democrático de direito.

A argumentação para corroboração da tese, contudo, pouco (ou nada) colabora para sua defesa: começa com um contraexemplo – Fujimori que deu o golpe em apenas dois anos – e no balaio de casos apresentados, há uma mistura desconexa e sem qualquer contextualização, sem qualquer menção às oposições a esses pretensos autocratas, bem ao gosto de argumentações rasas e ideológicas, em que a conclusão não decorre das premissas, mas dá um verniz de seriedade e pode servir para alguma mobilização, mesmo que virtual [https://bit.ly/30T9yX6].

(Parênteses: essa tese é o argumento usado por cinco eleições federais contra o PT, de que se vencessem o próximo pleito implementariam uma ditadura – aprovando, inclusive, a “PEC da Bengala” para evitar o “aparelhamento” do STF (por petistas como Fux, Barroso, Cármen Lúcia, etc). Ao cabo, Lula e Dilma foram de um republicanismo de almanaque (no sentido de ignorar as condições reais, fora da teoria) e nunca passaram nem perto desse roteiro, enquanto FHC não precisou do segundo mandato para mudar a constituição para atender aos seus anseios pessoais, ou melhor, aos anseios de uma classe que se via encarnado nele e seu governo. Fecha parênteses)

Como eu disse, apesar de mal defendida, a tese de Stuenkel parece razoável – ao menos logicamente. Ainda assim, ele ignora algumas peculiaridades da Terra Brasilis, que poderiam nos ajudar a entender melhor nosso caminho para uma ditadura menos ou mais fechada (ou uma democracia mais ou menos aberta, se se quiser manter as aparências de normalidade que a grande imprensa tupiniquim adora).

O elemento mais significativo ausente do texto do acadêmico talvez seja o poder que as classes dominantes tem sobre as instituições brasileiras, a ponto de apenas Vargas, entre 1930 e 1945, ter conseguido se sobrepôr ao seu controle estrito – mas era um contexto bem peculiar e um político também extraordinário. Tivemos 21 anos de ditadura militar em que houve revezamento de ditadores eleitos; e a ditadura caiu basicamente pela conjunção de fatores internacionais com um projeto de desenvolvimento mais autônomo por parte dos militares (o II PND), que fizeram com que essas mesmas elites os abandonassem e passassem tentar a balizar a democracia da Nova República – sendo atropeladas pelos movimentos sociais nascentes que confluíram para a finada Constituição Cidadã, de 1988.

Ao caso brasileiro atual. Se é uma regra que segundo mandato empodera autocratas, não sei, mas o que se desenha para um segundo governo de extrema-direita é o recrudescimento do que foi feito até agora pelo governo Bolsonaro, e o acabar de vez com o fiapo de democracia que resta no país – assim como fez Ortega na Nicarágua -, com implementação de um estado de exceção constitucional (como foi feito pelo Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, que nunca revogou a constituição de Weimar). Repare que falo em “segundo governo de extrema-direita” e não “segundo governo Bolsonaro”, justo porque, ao gosto da tradição das nossas elites, o que importa mesmo é que o projeto tocado pelo executivo seja do seu agrado (e dos seus financiadores internacionais).

Como disse Rosângela Moro sobre seu marido e o atual presidente: “Eu vejo uma coisa só”. E de fato são: o projeto de ambos, em seus detalhes, é o mesmo. A diferença é a forma de aplicá-lo – e nisso Moro parece ser mais bem assessorado para passar um verniz de pessoa menos tosca, o que agrada nossas elites e seus asseclas de classe média.

Por isso, uma eventual eleição do ex-juiz de camicie nere me parece mais perigosa do que a reeleição do atual presidente: seria, no fundo, a reeleição do projeto fascista-liberal posto em prática desde o golpe de estado de 2016, agora com aval cego das elites e da mídia corporativa nacionais (e internacionais), o que permitiria uma perseguição feroz a todo tipo de dissidência – dos famélicos que “roubam” comida vencida do lixo, aos movimentos sociais, passando pelas lideranças políticas de envergadura, de qualquer espectro político (ou seja, tirando esse último aspecto, basicamente o que ele fazia como juiz de primeira instância [https://bit.ly/30TvVLv], agora como presidente da república, comandante em chefe das forças armadas e com o poder de nomear os chefes dos órgãos de investigação e espionagem e ministros do STF e STJ).

O Partido Militar já está com ele (possível que indique o vice, dizem que seria outro egresso do governo Bolsonaro) e o PSDB deve aderir em breve (se é que o partido ainda tem alguma relevância política verdadeira, fora do interiorzão de São Paulo). Os partidos fisiológicos de direita, esses poderiam ser comprados a granel – apesar de toda a antipatia que nutrem pelo ex-juiz. A esquerda não deve fazer uma votação expressiva que lhe garanta poder de veto no congresso. Assim, a eleição de Moro desarticularia a (já enfraquecida) oposição efetiva que há contra Bolsonaro. A assinatura de dois tratados cosméticos na área do clima e da preservação da Amazônia faria ele bem quisto internacionalmente. Mais que Bolsonaro, Moro é fraco e precário, mas quem o sustenta, não.

Restam ainda duas questões essenciais: se Moro vai mesmo concorrer à presidência (ou preferirá um cargo mais garantido, como senado?) e se possui chances reais de vitória, com todo seu carisma e empatia.

Há muitos analistas cantando que Bolsonaro não disputará a reeleição: com isso a faixa da direita e extrema-direita fica aberta para ele, que passa a ser postulante ao segundo turno, caso haja – Ciro tentou entrar nela, mas tudo o que conseguiu foi perder boa parte do que tinha pela faixa de centro-esquerda e centro-direita. Lula é outro empecilho nesse projeto: além de estar muito à frente nas pesquisas e ter uma rejeição baixa, em um debate humilharia Moro de tal jeito, caso este tivesse coragem de participar, que seria difícil o marreco manter os votos – e não haveria edição do Jornal Nacional que o salvasse. Há a alternativa 2018: impedir o ex-presidente de disputar o pleito. Como judicialmente isso parece difícil (no máximo, provável que a campanha petista seja impedida de falar da Lava Jato ou da atuação de Moro como ministro do Bolsonaro), haveria a possibilidade repetir o atentado a Lula, feito em março de 2018, no interior do Paraná, mas dessa vez com profissionais: candidato morto não disputa eleição – o ponto seria só não ser muito próximo da data do sufrágio, de modo que houvesse briga entre seus sucessores a ponto de enfraquecer o PT e a esquerda (Ciro poderia surgir como opção nesse caso, mas se queimou suficiente para ter poucas chances mesmo nesse caso).

Faltando pouco menos de um ano da eleição de 2022, mesmo sem saber quem serão os concorrentes de Lula, já sabemos como correrá a disputa: imprensa corporativa agindo como braço publicitário do seu candidato, demonizando ou invisibilizando as esquerdas e toda fala que não entoe sua cartilha ultra-liberal, e a “terceira via” com as mesmas propostas que o PSDB apresenta desde 2010: anti-petismo raivoso e valores conservadores hipócritas. Deu certo em 2018, quando a terceira via do momento venceu, a despeito de todas as análises dizendo o contrário. Não creio que se repita em 2022, mas é de bom tom não subestimar o poder de nossas elites.

23 de novembro de 2021.

Daniel Gorte-Dalmoro é bacharel em filosofia e ciências sociais pela Unicamp e mestre em filosofia pela PUC-SP, escritor e psicanalista em formação.

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Redação

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