Jorge Alexandre Neves
Jorge Alexandre Barbosa Neves professor Titular de Sociologia da UFMG, Ph.D. pela Universidade de Wisconsin-Madison, nos EUA. Professor Visitante da Universidade do Texas-Austin, também nos EUA, e da Universidad del Norte, na Colômbia.
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Análise contrafactual, Moro e a taxa de homicídio, por Jorge Alexandre Neves

Foto Agência Brasil

Análise contrafactual, Moro e a taxa de homicídio

por Jorge Alexandre Neves 

Chama a atenção como no governo Bolsonaro até os quadros mais qualificados demonstram sérias limitações intelectuais. Assisti há pouco a reprise de parte de uma entrevista de Sérgio Moro na qual ele afirma que se o desarmamento tivesse tido algum efeito sobre a taxa de homicídio, o Brasil não teria uma taxa tão alta hoje. Logo após sua fala, a televisão mostrou um pesquisador afirmando que as evidências científicas têm demonstrado de forma consistente que o desarmamento tem um impacto significativo de redução das taxas de homicídio. Todavia, o Dr. Moro tentou desqualificar as pesquisas científicas sobre o assunto ao afirmar, segundo a Folha de São Paulo, que: “Essa questão de estatística, de causa de violência, sempre é um tema bastante controvertido” (1). Ele mostrou que não tem a menor ideia do que seja uma análise contrafactual (2).

Que um indivíduo como Onyx Lorenzoni fale bobagens como a de que um liquidificador é tão perigoso quanto uma arma (3), ainda vá lá. Mas, uma figura como Sérgio Moro, Professor Doutor de uma grande universidade federal, falando bobagens desse calibre é algo chocante. A análise contrafactual é algo básico, até instintivo, do método científico. Será que Sérgio Moro fez Bacharelado, Mestrado e Doutorado (além de um aperfeiçoamento em Harvard) e não conseguiu aprender nada do método científico? Como me dizia meu velho professor Heraldo Souto Maior, na UFPE: “há doutos que não são doutores e há doutores que não são doutos” (4). Definitivamente, credencialismo não é meritocracia.

Fernanda Mena, jornalista da Folha de São Paulo, parece entender mais do método científico (5). Em um artigo publicado na FSP em 09 de novembro último, ela mostra, usando um gráfico com base em dados puramente descritivos (a terceira figura do seu texto), uma análise contrafactual – simples, porém útil – que evidencia o impacto do Estatuto do Desarmamento sobre a taxa de homicídios, no Brasil. O gráfico dela é igual ao que apresento, abaixo (o leitor pode achar que o efeito visual da linha está mais suavizada no gráfico dela, mas isso se deve apenas ao fato de que o aplicativo de construção de gráfico que ela usou produz uma figura mais alargada do que o que utilizei).

 

O gráfico acima mostra que: a) a taxa de homicídio no Brasil despenca entre 2002 e 2004 e; b) a partir de 2005 ela retoma uma tendência de crescimento, porém a um ritmo menor do que antes. Lembrando que o Estatuto do Desarmamento é de 2003, o gráfico indica haver um efeito robusto deste sobre a taxa de homicídio. Para ter maior confiança de que o efeito é relevante, fiz uma análise econométrica básica conhecida como Teste de Chow (6). Este teste mostrou que: a) o valor esperado da queda da taxa de homicídio após o Estatuto do Desarmamento foi de 3,14 homicídios por 100 mil e; b) que a elevação esperada da taxa anual cai de 0,60 homicídio por 100 mil no período anterior ao Estatuto do Desarmamento para 0,35 homicídio por 100 mil no período posterior. O gráfico abaixo mostra de forma mais clara a diferença entre os valores esperados antes e depois do Estatuto do Desarmamento.

 

Observe-se que é possível identificar duas retas bem diferentes para o período de 1996 a 2003 e para os anos posteriores. Na linguagem técnica, dizemos que houve uma quebra estrutural da regressão (ou uma descontinuidade na regressão) a partir de 2004. Há tanto uma mudança no coeficiente linear (uma queda abrupta entre 2002 e 2004) quanto no coeficiente angular (a reta se torna menos inclinada a partir de 2004). O gráfico abaixo deixa ainda mais clara a mudança no coeficiente angular.

 

Pode-se ver que os dados posteriores a 2003 geram uma curva de regressão menos inclinada do que os dados do período anterior. Como era de se esperar, o coeficiente de determinação (R2) é menor para os dados do período mais recente.

Portanto, podemos concluir que a análise contrafactual apresentada acima deixa bastante claro que o Estatuto do Desarmamento teve, sim, um efeito bastante relevante de contenção das taxas de homicídio, no Brasil. Ou seja, as taxas de homicídio atualmente seriam bem maiores se o Estatuto do Desarmamento não tivesse existido. Sérgio Moro precisa melhorar muito sua capacidade de embromação para se tornar um político mais competente.

Jorge Alexandre Neves – Ph.D. em Sociologia pela Universidade de Wisconsin-Madison (EUA), Professor Titular do Departamento de Sociologia da UFMG, Professor Visitante da Universidade do Texas-Austin (EUA) e da Universidad del Norte (Baranquilla, Colômbia), pesquisador do CNPq. Especialista em desigualdades socioeconômicas, análise organizacional, políticas públicas e métodos quantitativos.

(1) Talvez ele estivesse pensando no uso ridículo, absolutamente equivocado, da estatística bayesiana feita pelo procurador Deltan Dallagnol na denúncia que preparou contra o ex-presidente Lula no vexatório processo do tríplex.

(2) A contrafactual é a situação ou evento que não aconteceu, mas poderia ter acontecido. Os experimentos usam grupos selecionados aleatoriamente para conseguir a contrafactual de um grupo exposto a um tratamento, que seria, portanto, um grupo idêntico não exposto ao tratamento. No caso das taxas anuais de homicídio, a análise contrafactual tenta simular taxas de homicídio que teriam sido observadas se o Estatuto do Desarmamento não tivesse existido.

(3) Aliás, um dos ministros generais (não lembro qual, são tantos) falou algo semelhante, em uma entrevista na televisão. Porém, no lugar do liquidificador, usou o carro. Embora a escolha seja menos ridícula do que a do liquidificador – até porque o carro se tornou uma recorrente “arma” usada por terroristas – ele se esquece de um ponto fundamental: o carro é algo extremamente útil para o transporte, enquanto que armas de fogo só servem para ferir ou matar.

(4) Sérgio Moro está longe de ser o único doutor a formar o alto escalão do governo de Bolsonaro a demonstrar claras limitações intelectuais. Aliás, não sei onde conseguiram encontrar tantos doutores que não são doutos. Inclusive, formados em Chicago (o que não é nenhuma novidade, Joseph Stiglitz – prêmio Nobel de Economia, professor de Columbia, tendo antes lecionado em Princeton e Stanford – relatou que, quando foi economista chefe do Banco Mundial, viu que o mercado financeiro está repleto dos piores egressos dos melhores programas de Ph.D. do mundo). Habilidade intelectual significa capacidade analítica, o que parece ser algo bem escasso neste governo.

(5) Tive a curiosidade de buscar seu CV. Além de jornalista, é Mestre em Sociologia pela LSE-Universidade de Londres e está cursando o doutorado em RI na USP. Seus estudos parecem ter lhe dado mais capacidade analítica do que a alcançada pelo esforço de formação acadêmica de Sérgio Moro.

(6) Há análises bem mais complexas do que essa, mas que me tomariam muito mais tempo e só caberiam em um trabalho para publicação em um periódico científico. Para uma aplicação mais acadêmica do Teste de Chow, ver um capítulo, do qual fui um dos autores, de um livro organizado por Ernesto Amaral, hoje professor da Universidade do Texas-A&M (http://www.ernestoamaral.com/docs/books/avaliacao11.pdf).

 

Jorge Alexandre Neves

Jorge Alexandre Barbosa Neves professor Titular de Sociologia da UFMG, Ph.D. pela Universidade de Wisconsin-Madison, nos EUA. Professor Visitante da Universidade do Texas-Austin, também nos EUA, e da Universidad del Norte, na Colômbia.

6 Comentários

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  1. #

    O abominável decreto que facilita o acesso a armas e munições, não obstante o fato de tratar apenas da posse e não do porte, inevitavelmente aumentará em muito os índices de mortes por arma de fogo.

    Acidentes com crianças, brigas de bar que certamente terminarão com uma das partes buscando a arma em casa, maridos que, em casa, costumam agredir suas esposas, brigas de vizinhos etc.

    Diante de todas essas inegáveis possibilidades, o sujeito que continuar dizendo que a violência não aumentará por conta do infame decreto, só pode ser um CÍNICO.

    Pergunta importante que cabe quanto ao perigoso decreto é: Quem, santodeus, precisa de 4 armas?

     

  2. Você é homem de bem?

    A rigor todas as estatísticas são inúteis: “Não existe sociedade, o que existe é indivíduo.” Não há, portanto, que se falar em coletividade.

    Assim, assumindo a individualidade como referência, faça o teste e verifique se você vai ser vítima de tiro disparado por direitista bolsonariano:

    – Você acredita que o estado pode encaminhar solução para suas questões? Tem tendências cidadãs, sindicalistas, socialistas, comunistas ou pior de tudo, mesmo o PT não sendo de “direita”, você é petista? Você é mulher, afro-descendente, homosexual, ateu ou pior, católico? De outra forma, é goi ou não evangélico? Você duvida de que os EUA são o país manifestamente destinado a orientar e, se orientar for insuficiente, impor um modo de ser aos outros países? Acredita num mundo plural, de poderes distribuidos? Acredita que cada país pode determinar o que é bom para si desde que não seja ruim para os outros? (Lembre-se: os outros não existe, só existe indivíduo, hein?) Você gosta de estudar sociologia, geografia, história, linguística ou, de forma mais simples, você gosta de estudar? De aprender? De questionar-se? Você duvida do que diz o Bonner? Fica desconfiado de que na vida real a propaganda não é exatamente o que diz que é?* É artista de verdade?

    Se sua resposta é “sim” a qualquer dessas questões, deixe a família de sobre-aviso, documentos, papelada, tudo em ordem, e não se exponha. Mas se não for nada disso, você é um homem-de-bem e não só está livre de se tornar vítima de bolsonarianos entusiasmados como tem o direito de atirar para matar ou aleijar qualquer pessoa que não seja como você acha que ela deveria ser. Entendeu?

     

    * – Para ver o que acontece com quem compara propaganda com vida real, assista a “Um dia de Fúria” (1993). E como se pode ver no filme, armas não adiantam para nada exceto para piorar a vida do questionador… Melhor se adequar, assumir a forma-padrão, se con-formar, melhor ja ir se acostumando, hein? Olha que esse negócio de liberdade é coisa de esquerdista, hein?

  3. Interpretação dos resultados
    O que entendi da explanação do Moro e os gráficos confirmam, é que o Estatuto do Desarmamento foi de ação pontual, ou impactante. Podemos concluir que serviu para um momento, porém não manteve a eficácia inicial. Os marginais não compram armas em lojas, e obviamente não fazem registro. E os demais interessados passaram a adquirir armas e munições ilegais. O que essa política fez foi juntar o joio com o trigo.

    1. Caro Cesário
      Tenho compreensão diversa da sua. Se não houvesse ocorrido a queda, hoje as taxas de mortalidade estariam maiores, uma vez que o crescimento é cumulativo. Então, talvez o decreto ilegal, por alterar uma lei, tenha jogado o trigo fora e ficado com o joio.

  4. Moro + Lattes = ? (impublicavel)

    Vale lembrar que o curriculo acadêmico do Sr. Moro já foi esmiuçado pelo Prof. Marcos Cesar Danhoni Neves, da UEM. Sem tergiversar, ele cozinhou o Latttes dele. Seu tempo de conclusão do seu mestrado e doutorado é relativístico enquanto o conteúdo é quântico (variaveis ocultas, indeterminação do observador e observado, universos paralelos, etc). Em resumo, o caráter do Sr. Moro é também espelhado na redação do Lattes dele. Só poderia dar no que deu.

  5. Lógico
    Se o juiz ministro de preto não tem capacidade moral cognitiva para respeitar nem as leis, porque teria condições de compreender análises estatístico-sociológicas?

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