Arte, religião, direitos & outros desconfortos, por Pedro Augusto Pinho

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Arte, religião, direitos & outros desconfortos

por Pedro Augusto Pinho

A sociedade humana e cada uma das pessoas vivem, simultaneamente, diferentes épocas, vários tempos.

Há o tempo mais veloz e contemporâneo da técnica e da economia e o tempo mais lento, que está às vezes um século distante, da arte e do direito.

Procuraremos refletir sobre estes tempos e suas consequências na sociedade contemporânea.

Padre Fernando Bastos de Ávila S.J. (Introdução à Sociologia, Agir, RJ, 4ª edição, 1970) trata da cultura como um “patrimônio riquíssimo da humanidade, constituído dos mais variados elementos: idiomas, conhecimentos, crenças, ideologias, sistemas filosóficos, lendas, tradições, símbolos, formas de comportamentos, normas de conduta religiosa, normas morais, jurídicas, higiênicas, formas de organização social e política, sistemas jurídicos, organização econômica, obras de arte, construções, instrumentos, utensílios, máquinas, modas, cerimônia, ritos”.

Como é evidente, a evolução de cada elemento cultural não se dá com a mesma velocidade e, ainda mais, com a mesma compreensão e internalização pessoal e de grupos sociais.

Inicio pelo idioma, primeiro elemento da relação não exaustiva do Pe. Ávila. O português que falamos não é o mesmo da Carta de Pedro Álvares Cabral, dos romances de José de Alencar, nem mesmo do que aprendi nos anos 1940/1950 na escola. Há um certo? Um errado? Não, apenas um, que se convencionou  atual, em uso, e os mais antigos, em desuso.

Muito mais complexo é o entendimento de arte. Jorge Coli (O que é arte, Brasiliense, SP, 15ª edição, 10ª reimpressão, 2006), ao longo de cinco páginas, discorre sobre diversos entendimentos para concluir que arte é cultura. E, como tal, terá diversas compreensões e emoções pelo decorrer dos tempos.

Frequentei, por alguns anos, um grupo que se reunia para ouvir, ver e comentar a música que se chama clássica: sinfonias, concertos, óperas. Óbvio que havia um nível de conhecimento e formação intelectual que as fazia apreciar este conjunto de manifestações artísticas que eu diria ser bastante restrito. No entanto, quando se tratava dos compositores do século XX, havia um quase unânime repúdio. Seriam estes compositores menos representativos da arte musical? Ou suas formas melódicas ou harmônicas não eram compreendidas?

Qual a relação da arte, de difícil definição, com a política? Com as técnicas? Com a economia? Como envolver todas as relações naquele patrimônio que explicita Pe. Ávila?

Esta dificuldade fica suavizada ou acomodada pelo preconceito, pela rejeição do que não se explica facilmente ou pela compreensão descompassada daquele exemplo da experiência pessoal que tive.

Mas, se pode resolver uma questão pessoal, muitas vezes se exige resposta pública, posicionamento político, e aí surgem oportunismos, situações mais íntimas, pessoais que, freudianamente, diria não solucionadas ou mal resolvidas.

Sobre este tema há um complicador que nem é atual, mas ganha cada vez maior expressão na crise atual do capitalismo globalizado: o uso econômico ou mais precisamente financeiro da cultura. Sobre esta e paralelas considerações passarei a refletir com suporte na estrutura do trabalho de George Yúdice, A Conveniência da Cultura (Editora ufmg, BH, 2ª edição, 2013).

Yúdice constata que o conceito de cultura expandiu-se para esferas políticas e econômicas, esvaziando noções sociológicas e antropológicas. E, crescentemente, é utilizada para conflitos sobre cidadania e para um capitalismo cultural.

Theodor Adorno (1903-1969) lamentava que o conceito de comunicação de massa tivesse levado a arte para o “caráter fetichista das mercadorias”.

É ilustrativo o Relatório de 1997 do National Endowment for Arts (Fundo Nacional das Artes), sobre o lugar das artes e da cultura nos Estados Unidos da América (EUA), com a inclusão de programas para prevenção ao crime, treinamento profissional e relações raciais.

Examinemos as considerações de Yúdice sobre o movimento funk na cidade do Rio de Janeiro. Ele distingue a música funk, experiência “apolítica” de negros e miscigenados do “ativismo AfroReggae”. A princípio reconhece que a música e dança funk são meios de “se obter prazer, algo que muitas vezes falta aos movimentos sociais”. Ora, já temos aí duas esferas das artes de tempos diferentes. A música ou a dança para o deleite da audição ou do corpo nos remetem, para ficar nos períodos musicais, ao romantismo e às escolas mais afastadas no tempo. A arte, como protesto, seja pelo realismo seja pela temática, surgem com o romantismo e a partir deste. Ninguém, em sã consciência, veria em um Minueto de Mozart qualquer denúncia ou contestação, mas está claramente disposta em todos os romances da série Les Rougon-Macquart de Émile Zola ou nas Sinfonias de Shostakovich.

Mas o que verificava Adorno e se constitui no “imperialismo cultural” são os usos políticos e econômicos da “indústria cultural”. O jornalista Milton Saldanha, editor do Jornal Dance, escreveu a respeito destas manifestações artísticas, tão virulentamente estigmatizadas, em Porto Alegre e São Paulo, e capitalizadas politicamente pelo Bispo prefeito do Rio de Janeiro: “essa turma moralista já foi alguma vez protestar na frente de alguma emissora de televisão? O que as novelas e certos filmes mostram, em cenas de sexo, é centenas de vezes mais apimentado do que um cara deitado, pelado e sozinho” (Nudismo e moralismo idiota, 08/10/2017).

Cabe outra referência temporal. Tradicionalmente ao tratar do mundo simbólico dos capitais transnacionais, das escalas planetárias de ação das multinacionais, as referências culturais eram bastantes pontuais e definidas nos âmbitos do consumo: roupas, bebidas, músicas, drogas etc. Os produtos culturais: séries televisivas, publicações tipo  Seleções do Reader’s Digest, filmes da MGM, Universal, eram vistos sobretudo como “invasão econômica”, deslocando a produção nacional brasileira.

A dominação para constituição de uma “nova ordem mundial” é recente e veio com a economia neoliberal e o domínio do capital financeiro. Seus objetivos vão muito além da mera economia e dos usos econômicos das próprias manifestações de protesto, como no movimento hippie dos anos 1960, das questões transversais e do multiculturalismo. Este novo colonialismo das finanças internacionais, que denomino banca, cuja importância para questões nacionais e culturais é, antes de tudo, pela possibilidade da ação desagregadora, dos esfacelamentos sociais e culturais, no sentido enunciado pelo Pe. Ávila.

E se torna fácil e exitoso quando verificamos, como nestes recentes casos artísticos, que a cidadania não confere contemporaneidade às manifestações artísticas, a confissão religiosa se intromete em temas jurídicos e administrativos, onde se misturam moral e propaganda, como se os universos sociais não existissem sem interseções, ainda que não coetâneas.

Mas, embora repetitivo, procuro mostrar uma sociedade de desigualdades múltiplas, que desejos dos mais paroquiais e mesquinhos se unem aos da dominação estrangeira de um capital apátrida, que a comunicação de massa, com seus interesses próprios, que não se conjugam com o desenvolvimento soberano do Brasil, usam sexo, droga, perversões, muito mais do que qualquer artista possa exibir, sem que as instituições nacionais se movam na defesa do País, que a construção de um povo apático e submisso deixa de ser uma preocupação para ser um objetivo. Triste Brasil entregue à traição, à corrupção e à ignorância destes golpistas de 2016.

Pedro Augusto Pinho, avô, administrador aposentado

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

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