As explicações para a bestialidade das nossas elites estão a caminho, por Gustavo Conde

As explicações para a bestialidade das nossas elites estão a caminho

Por Gustavo Conde

O episódio do funcionário que homenageou Dilma com a escrita confeiteira afetuosa em uma singelo prato de sobremesa no restaurante ‘A Favorita’ – e recebeu uma ‘retratação institucional’ de seu patrão – é emblemático demais. É a elite do atraso em sua plenitude didática. O fato de o proprietário se achar no direito de se manifestar a respeito e declarar que a homenagem ‘não traduz a posição do restaurante’ é o ó do borogodó da elite escravocrata e da mediocridade colonial que encrustam os donos do poder no Brasil.

O pior é que tem gente que acha que ‘é isso mesmo’, os analfabetos espirituais que habitam os interiores semi abastados do país, sobretudo os interiores de São Paulo. Conheço muitos pessoalmente. É a velha profundidade humana de um pires de café raso.

O Sr. Arecco (esse é o nome dele) dono do restaurante, não tem absolutamente nada a ver com o que pensa seu funcionário, nem com o fato de este funcionário manifestar seu pensamento dentro da ‘sua propriedade’.

Esse pensamento escravagista explícito da nossa elite, gesto escandaloso de ingerência cidadã, será em um futuro próximo tipificado como crime, tal como o crime de racismo e o crime de homofobia (é, na verdade, um desdobramento desses dois).

A ideia de que ‘propriedade física’ se desdobra em ‘propriedade intelectual’ é uma monstruosidade. É a mesma lógica que impera no Grupo Globo.

O dono da Rede Globo é absolutamente igual ao dono do restaurante: ambos não querem que seus funcionários tenham liberdade de expressão. Calcule, portanto, a indigência do nosso sistema de comunicação: o dono de um conglomerado de R$ 70 bilhões age como um dono de restaurante (com todo o respeito aos donos de restaurante).

O Chico Pinheiro também não pode ‘escrever na sobremesa’. O William Bonner não pode ‘escrever na sobremesa’ (esse nem saberia). A Renata Vasconcelos não pode ‘escrever na sobremesa’. O caboman ‘José da Silva’ não pode ‘escrever na sobremesa’. O iluminador ‘João de Deus’ não pode escrever na sobremesa.

Essa é a lógica da nossa elite. É por isso que eles detestaram os governos do PT. Não é porque o trabalhador começou a frequentar o aeroporto ou porque a filha da empregada é melhor em matemática aplicada que o filho da ‘patroa’. É porque essas pessoas começaram a ‘falar’ e a se ‘expressar’.

É muito mais insultuoso para a nossa elite obtusa e destituída de conteúdo ter que lidar com pessoas reais, que falam e pensam com ‘qualidade’ e profundidade, do que ter que lidar com a comodidade daquela ‘falsa qualidade’ de discurso que o dinheiro pode pagar (a revista Veja, por exemplo).

Donos de ‘Globos’ e de ‘restaurantes’ são o vetor que faltava para a compreensão da tese que explica em definitivo o Brasil. Eles não suportam o sentido. Como são rarefeitos, são intolerantes à densidade. Mas querem controlar isso, querem multiplicar a própria mediocridade como elemento de controle da força de trabalho.

O problema é que o sentido é forte demais.

Eu posso explicar o que significa ‘o sentido ser forte demais’ com o auxílio de um ditado popular. É praxe nos estudos linguísticos do discurso, os ditados populares explicarem de maneira metafórica os protocolos de produção de sentido das sociedades.

Não é, portanto, o ‘bem que sempre vence o mal’. É o ‘sentido que sempre vence a falta de sentido’. O sentido, meus caros, vai prevalecer, não se preocupem. A falta de sentido não aguenta muito tempo ‘sozinha’, até porque a condição simbólica da nossa espécie é produzir e consumir sentido. Se esse regime fracassar, a espécie fracassa (ou se torna insuportável).

Recobremos o sentido das nossas vidas e do nosso país para que assim possamos escrever em muitas sobremesas que ainda virão pela frente. Uma vez experimentada a liberdade de pensar, ela jamais deixa de provocar o comichão de sua emergência nos sujeitos e na história.

A ferida profunda, causada pela adaga do golpe, infeccionou o tecido e a carne e quase matou o país-sujeito. Mas o sistema autoimune não se entregou. Agora, o sentido ‘coça’.

 

Redação

18 Comentários

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  1. A ascenção da classe do andar

    A ascenção da classe do andar de baixo fez o andar de cima ver o quanto essa gente tem potencial. E aí eles ficaram com medo. Imaginaram – se esse povo consegue, tendo o mínimo de apoio do governo como fez o período Lula, chegar até aqui,então em pouco tempo eles irão ameaçar meu lugar que até então achavam que era intocável.Viram que o que impede o andar de baixo progredir não é culpa deles (a maldita meritocracia ) mas sim duma elite miserável.  Por isso grande parte de nossa elite, ajudada por um classe média mediocre em sua grande parte, destroi a possibilidade do andar de baixo se mudar de vez pro de cima – mesmo que essa estupidez custe destruir a elas mesmas, o próprio país . 

    Por isso cada dia é mais atual o livro Dom Casmurro. Bentinho é a nossa elite encarnada de hoje. Quando ele percebe que Capitu, de origem pobre, lhe é superior tanto em termos de coragem como intelectual, ele não suporta isso e se convence de que ela não passa de uma traidora vil  – a ponto de ter um filho com o seu melhor amigo. A diferença é que Bentinho chega a pensar em matar Capitu e o seu filho, mas não o faz. A nossa elite o faz e ainda conta com uma justiça que condena suas vítimas. 

  2. Sentido e significado

    Olá Gustavo,

    Muito pertinente a sua análise.

    Precisamos fortalecer o sentido de nós mesmos e entender o nosso significado para o mundo.

    Tudo tem que ter sentido e significado

  3. Elegante.
    Excelente. É bem isso: insuportável independência, autonomia, cidadania “para todos”. Essa voz que “o outro acha que tem” enlouquece quem acredita que a detém com exclusividade. Que petulância, que abuso, que atrevimento essa “manifestação de opinião e vontade”. Não se precipite achando que você pode. “Só quem pode sou eu…”

    É tão atávico que não escapa nem quem combate essa postura diuturnamente. E por dever de ofício.

    Muito elegante.

  4. Para mim, o nome disso é

    Para mim, o nome disso é patrulhamento ideológico. A mesma coisa que ocorreria numa barzinho frequentado pela esquerda festiva na qual entrasse o Bolsonaro e um dos garçons prestasse homenagem a ele. Não apenas o dono do bar iria reclamar, como  a maior parte da freguesia iria se sentir insultada…

    1. Tem um item importante aí, a
      Tem um item importante aí, a relação de poder….

      O dono pode demitir o funcionário caso esse não aceite o cabresto. Muito diferente em um embate entre iguais…………..

      1. Vai negar que aconteceria

        Vai negar que aconteceria isso, é?…

        Outra coisa, em ambiente de trabalho, plural, laico, que atende a todas as correntes, não tem essa de funcionário paparicar “a” ou “b”. Toda a clientela deve ser tratada de forma similar, com urbanidade e respeito. Quer fazer mimo com alguém? Faça-o em sua casa. 

        1. O Hitler

          ve-se que você nunca trabalhou com serviços.

          é a coisa mais banal, dar um mimo a qualquer consumidor, principalmente ao final da refeição, na sobremesa

          qualquer motivo serve. Principalmente para uma ex PresidentA.

           

          1. Serviços
             

            Não é que a pessoa nunca tenha trabalhado com serviços.

            Na verdade pode ser que ela nunca tenha frequentado um lugar decente.

            Veja se um ambiente de alto padrão não faz o possível para agradar um cliente, seja lá quem for.

            Desde que possa pagar, não importa quem seja, o mimo faz parte.

    2. “A mesma coisa que ocorreria
      “A mesma coisa que ocorreria numa barzinho frequentado pela esquerda”
      Sua hipótese só teria um pouco de sentido se o restaurante ao qual a Dilma foi for reconhecidamente frequentado pela direita. Não parece ser o caso.

  5. Grande sacada! É isso mesmo.

    Lendo o artigo, recordei-me de imediato de uma passagem do livro “Baú de Ossos” do Pedro Nava:

    ” (…) essa era menina. Iria pelos seus sete anos e regulava com meu irmão José. Não se chamava Catita, não. Respondia pela graça de Evangelina Berta e logo minha avó pulou. O que ? Berta ? Como minha filha? Absolutamente ! Isso não é nome de negra. Nome de negra é Balbina, Clemência, Eufrosina, Porcina, Oportuna, Zerbina ou Catita. Vai ser Catita.” 

    Qualquer expressão de individualidade, de senhorio de sí mesmo, precisava ser cortada na raíz. Até hoje é assim, os capitalistas brasileiros (só os brasileiros?) veem os trabalhadores como propriedade sua. 

  6. Excelente análise

    O Brasil Escravocrata profundo vem emergindo lentamente desde a primeira eleição de Lula e as CPIs do Mensalão para desembocar na barbárie do Golpe de 2016 e na prisão política de Lula em 2018.

    O passado escravocrata da elite brasileira é uma ferida aberta e nunca curada. É disso que se trata a crise atual.

    O governo da Senzala (os anos Lula e Dilma) foram infinitamente superiores ao 500 anos de Casa Grande. Os senhores de engenho sabem disso. Mais um ciclo democrático e entrarão em extinção. Daí o Golpe e a Lava Jato.

    O Brasil precisa URGENTE de uma nova elite.

  7. 33% de eleitores a favor de Lula
    Esses 33% estão atravessados na goela dos escravocratas. Tanto que Sir FHC acusou imediatamente após a reeleição de Dilma que o nordeste “vota mal “. Quem vota mal “cara pálida “?

  8. Ver tambem os manuais de

    Ver tambem os manuais de gigolagem de mediums no youtube, Gustavo.

    Entre varias barbaridades mengelianas, recomenda se explicitamente a nunca oferecer a um medium qualquer coisa que VOCE considera um bem ou valor pois isso PREJUDICA SUA gigolagem futura – foda se a necessidade do medium.

    E os manuais tambem deixam claro que eh mais interessante PRA VOCE gigolar um medium o mais “eternamente” possivel ate ele explodir, pois o maximo que ele vai fazer eh “queimar a ponte” com voce.

    Nunca ouviu falar dos manuais de gigolagem do yourube, diretos das mais mengelianas escolas de pensamento?

    Procure no youtube “personalidades raras”.

    Ta tudo la.

    Agora, gente, vai enterrar seus mortos, ta?  Eles nao me interessam.

  9. As bestialidades das nossas elites.
    Parabéns pela maravilhosa análise sobre o episódio do patrão autoritário e do empregado/artista delicado e gentil. Vou salvar, imprimir e levar para minhas aulas de Sociologia com os alunos do Ensino Médio, para discutirmos Relações de poder, autoritarismo e a herança escravocrata brasileira.

  10. Singelo

    Um troglodita explorador da força de trabalho alheia não possui criatividade, sensibilidade, nem capacidade intelectual para fazer uma homenagem singela como a que o garçom fez… Parabéns pela doçura desse garçom. Esse representa o povo brasileiro, muito mais que aquele filé de borboleta com cara de japonês do Paraguai que tem cento e tantos processos nas costas e ta chorando por causa de Facebook. Lula livre!!!

  11. O mundo se …

    O mundo se tornou um hospício , um episódio de Além da Imaginação (sou antigo) , coisas banais ganham proporções enormes.

     

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