As questões militar e indígena estão entrelaçadas, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Os índios reagiram ao programa de destruição de suas culturas, implementado pela Ditadura Militar, criando entidades para defender seus interesses.

As questões militar e indígena estão entrelaçadas

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Ao longo de mais de uma década comprei centenas de livros escritos durante a Ditadura Militar e sobre aquele regime infame. O genocídio Yanomami patrocinado pelo governo Bolsonaro me obrigou a rever alguns daqueles livros, mas não encontrei o que eu realmente queria consultar: A Farsa Yanomami, do coronel Carlos Alberto Lima Menna Barreto.

Na verdade não consigo lembrar se vi esse livro num sebo e o comprei ou se deixei de comprá-lo por algum motivo. De qualquer maneira o livro encontra-se disponível na internet https://archive.org/details/barreto-c.-a.-l.-m.-a-farsa-ianomami/page/12/mode/2up .

Publicado pela Blibiex (Biblioteca do Exército), o livro Menna Barreto pode ser descrito como um exemplo típico de uma “teoria da conspiração” mais ou menos oficial. Portanto, o extermínio recente dos Yanomamis não foi acidental ou não intencional: ele é o resultado de uma ideologia genocida vomitada há décadas nos Quartéis para justificar a brutalização e o extermínio dos indígenas.

Segundo a obra, os Yanomamis foram inventados pelos norte-americano para justificar a fragmentação territorial do Brasil e/ou a desnacionalização da Amazônia. Isso justificaria a restauração do domínio territorial brasileiro na região com o uso de todos os meios necessários (ocupação por garimpeiros e pistoleiros, incluída).

Suponho que ele livro é importante para refletir sobre o que ocorreu nos últimos 4 anos, pois ele continua a ser lido, divulgado e comentado por aqueles que cobiçam o território indígena e o ouro que pode ser dele extraído https://www.ecoamazonia.org.br/2013/08/farsa-ianomami-cobica-internacional-amazonia/ . A tese de  Menna Barreto pode ter sido a justificação oficiosa para o governo Bolsonaro mentir na ONU quando disse que estava cuidando do bem-estar dos indígenas enquanto eles morriam de inanição ou eram mortos por bolsonaristas.

Criada em 5 de dezembro de 1967, a FUNAI desempenhou um papel essencial para garantir o bem-estar dos indígenas durante os governos do PT (2002 a 2014). Todavia, no período anterior e principalmente durante a Ditadura Militar eles desconfiam das autoridades. Em decorrência do “programa mais invasões e mais mortes” implementado pelo governo Bolsonaro, podemos voltar a dizer que na atualidade os “… índios, precavidos por anteriores experiências, têm confiança limitada na FUNAI” (O futuro dos índios no Brasil, Hubert Lepargneur, Livraria Hachette do Brasil S/A, Rio de Janeiro, 1975). 

Os índios reagiram ao programa de destruição de suas culturas, implementado pela Ditadura Militar, criando entidades para defender seus interesses. Isso não deixou de irritar os militares:

“… uma organização como a que os índios montaram estava muito longe de não correr riscos. No mesmo Dia do Índio da reunião de Campo Grande [abril de 1980], por exemplo, agentes do Departamento de Ordem Político e Social (Dops) paulista prenderam dezessete pessoas ligadas ao movimento grevista dos metalúrgicos da região do ABC Paulista.

Os documentos sigilosos produzidos pela ditadura mostram que os militares procuraram controlar e esvaziar a UNI. O presidente da Funai na ocasião era o coronel da reserva do Exército João Carlos Nobre da Veiga, que tomara posse em outubro de 1979, após um curto mandato de Adhemar Ribeiro da Silva, sucessor do general Ismarth. Veiga era assistente de segurança da Cocego, subsidiária da estatal Companhia do Vale do Rio Doce. Ao ser confirmado para o cargo, ele se disse surpreso com a escolha de seu próprio nome e admitiu que de índio só conhecia ‘a história do índio gaúcho Sepé Tiaraju, líder guarani que viveu no século XVIII. Veiga traria tantos militares da mesma patente para dentro da Funai que sua gestão ficaria conhecida pelos indigenistas como ‘o tempo dos coronéis’. (Os fuzis e as flechas – História de sangue e resistência indígena na ditadura, Rubens Valente, Companhia das Letras, São Paulo, 2017, p. 325/326)

Durante o governo Jair Bolsonaro, ‘o tempo dos coronéis’ retornou à FUNAI e a instituição passou a ajudar os garimpeiros e pistoleiros a ocupar e explorar territórios indígenas Yanomamis, exterminando-os de uma maneira ou de outra. Agentes da instituição que tentaram cuidar dos interesses dos índios foram demitidos. Restaurar a confiança dos índios na FUNAI não será fácil, nem deixará de exigir a alocação de recursos para desfazer o mal banal perpetrado em escala industrial por Bolsonaro com ajuda dos generais Heleno, Braga Neto, Mourão, etc…

“Queiroz Campos, autor do estudo histórico aqui utilizado, depois de ter sido presidente da FUNAI de 1968 a 1970, conclui que ‘a única experiência válida em relação ao índio foi a dos irmãos Villas Boas, no Parque do Xingu, a qual infelizmente, só beneficiou um número reduzido de índios…” (O futuro dos índios no Brasil, Hubert Lepargneur, Livraria Hachette do Brasil S/A, Rio de Janeiro, 1975, p. 31)

Se quiser realmente frear o desmatamento e proteger os índios de novos genocídios, o governo Lula deve usar a experiência do Xingu em todos as áreas indígenas demarcadas e imediatamente demarcar as áreas que faltam. Os índios devem receber assistência e proteção, mas precisam cuidar de suas próprias vidas com o menor contato possível com aqueles que cobiçam os territórios deles.

Confrontado pelo comandante do Exército que tentou proteger um militar que ligou seu destino integralmente ao de Jair Bolsonaro ao operar o “caixa paralelo” criado com dinheiro sacado com uso de cartões corporativos, Lula imediatamente o substituiu por outro general. O novo comandante do Exército se notabilizou após fazer um discursou em favor da legalidade. Ele foi muito elogiado no Jornal GGN, mas gato escaldado deveria ter medo de água fria.

Em razão de sem particularmente vítimas do messianismo, os militares brasileiros não são confiáveis.

“Nem mesmo as Forças Armadas estiveram imunes ao ‘complexo messiânico’ da sociedade civil. Aí o messianismo criou, ou tentou criar, em regime de urgência, homens providenciais: Juarez Távora, Eduardo Gomes, Osvino, Aragão e Teixeira Lott. E é tal a urgência do ‘complexo messiânico’ que nem mesmo recuou em ungir de homem providencial a cada presidente militar após 1964. Esperou-se milagres do liberalismo de Castelo Branco, do ‘humanismo’ de Costa e Silva, da feição popular de Médici. E quantas virtudes já não se tem louvado na personalidade do Presidente Geisel? E não se espera delas, agora, o milagre da ‘descompressão’ redentora?

É oportuno recordar aqui o impacto do complexo messiânico, da politica de personalidades, na transformação de crises políticas em crises político-militares. Foi sempre prática o repartir as Forças Armadas, como a um bolo, pela multidão messiânica e contabilizar, nas crises, a fatia que cada personalidade presumivelmente controlava: a fatia dos sargentos, a dos coronéis, a dos ‘generais do povo’. Nem eram senão expressão da mesma prática os famosos ‘dispositivos militares’ que cada Presidente esmerava-se em motar à base de lealdades pessoais.” (Em Busca de Identidade: o Exército e a Política na Sociedade Brasileira, Edmundo Campos Coelho, Forense-Universitária, Rio de Janeiro, 1976, p. 159/160)

O genocídio Yanomami foi uma consequência tanto da ideologia de Menna Barreto quanto do messianismo militar em torno do qual Bolsonaro estruturou o culto à sua personalidade. O fato dele ter atraído evangélicos para o seu lado deve ser visto com atenção. Seria um erro Lula tentar compensar o messianismo militar-evangélico bolsonarista apoiando-se apenas em alguns generais que agora se declaram legalistas. Eles não fizeram nada em defesa da legalidade e do direito á vida dos Yanomamis enquanto Jair Bolsonaro facilitava o extermínio dos índios e mentia para a ONU.

Durante os 4 anos de seu desgoverno, Bolsonaro tentou restaurar o AI-5. A intentona militar do dia 08 de janeiro de 2023 parece ter sido concebida para criar as condições políticas indispensáveis ao restabelecimento do neoliberalismo autoritário sob o comando do capitão genocida (ou eventualmente de um dos generais que o apoiou). A minuta de um documento vagamente inspirado naquele Ato Institucional apreendida na casa do ex-Ministro da Justiça é importante. Ela nos faz refletir sobre as palavras de Eliézer R. de Oliveira sobre o contexto em que o próprio AI-5 foi promulgado:

“Dois fatores advindos das etapas anteriores encontram solução no final do governo Costa e Silva e contribuem decididamente para a composição do Sistema: as tensões entre escalões diversos (especialmente no Exército) e a sucessão presidencial.

O primeiro fator pode ser enunciado como uma luta ‘estamental’ entre altos escalões e setores intermediários, no qual sobressai a atuação política da Vila Militar (Rio) e da ESAO – Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais. Talvez mais do que uma luta estamental, estejamos perante a definição de uma tensão política que perdurou nas Forças Armadas especialmente no período do pós-guerra: chefia e liderança. De fato, a chefia deriva de um estatuto que coloca o oficial no exercício de um cargo que lhe garantirá a obediência dos subordinados em razão dos pontos básicos da organiza~~ao militar: disciplina e hierarquia. Ainda que a disciplina seja impositiva, que não envolva qualquer caráter de adesão individual às normas tais como são interpretadas, e levadas à prática pela chefia, resta sempre um espaço a ser preenchido por uma liderança: em certos casos, liderança e chefia podem ser desempenhadas pela mesma pessoa, o que talvez se configura menos frequente e pouco provável. A história recente tem conhecido casos de líderes desprovidos de chefia, embora seja bem menos expressivo o número de chefes que conseguiram estabelecer uma liderança que resistisse ao não-exercício de funções de chefia: Estillac Leal, lott e – na época que estamos examinando – Albuquerque Lima tipificam os fenômenos a que nos referimos rapidamente nesta seção.” (As Forças Armadas: política e ideologia no Brasil (1964-1969), Eliézer R. de Oliveira, Vozes, Petrópolis, 1976, p. 100/101)

Jair Bolsonaro tem uma patente inferior à dos generais Heleno, Braga Neto, Mourão, etc… mas acabou se tornando o líder inconteste da facção genocida do Exército brasileiro durante seu mandato. Todavia, ele não conseguiu unanimidade nos Quartéis. Isso ficou claro quando Bolsonaro proferiu aquele famoso discurso sobre o lado dele ser mais forte que o outro lado. Obviamente, o então presidente não estava se referindo à oposição no Congresso Nacional e sim aos oficiais militares que silenciosamente se recusaram a aderir ao golpe de estado antes e durante a eleição presidencial de 2022. Esses militares parecem ter desempenhado um papel importante para impedir que o 8 de janeiro de 2023 resultasse numa ruptura da legalidade.

A questão militar, entretanto, não será resolvida enquanto os genocidas de farda que ajudaram Bolsonaro a exterminar Yanomamis não forem responsabilizados por seus atos. Isso obviamente inclui o general Mourão, pois ele foi essencial à militarização da gestão da questão indígena https://noticias.uol.com.br/colunas/rubens-valente/2020/04/18/conselho-amazonia-mourao.htm . O mesmo se aplica a Sérgio Moro, que embora seja civil, aderiu de maneira apaixonada ao militarismo ao começar a esvaziar a competência FUNAI para que ela pudesse voltar a ser ocupada por militares https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/09/20/moro-nomeia-na-funai-diretor-que-disse-ser-absurdo-atribuir-ao-orgao-demarcacao-de-terras.ghtml.

Não será possível restaurar a confiança dos indígenas sem punir aqueles que agiram como seus inimigos mortais. Cada qual deve responder pelos seus atos, mas ninguém deve ser esquecido. Nem mesmo Elon Musk. O festejado bilionário norte-americano que queria introduzir a Tesla no Brasil tem as mãos sujas de sangue, pois ele comprou o ouro bolsonarista extraído ilegalmente dos territórios indígenas enquanto os próprios índios eram assassinados ou deliberadamente exterminados pela fome.

O “messianismo militar” não deve dar lugar apenas ao legalismo. Na verdade o Exército pode e deve ser constrangido a apoiar um novo tipo de punitivismo: aquele em que a vítima da perseguição estatal mediante o devido processo legal não é o inocente de esquerda e sim culpado de direita poderoso que odeia os índios e durante 4 anos transformou seu ódio num instrumento político para exterminá-los. Livros como A Farsa Yanomami, do coronel Carlos Alberto Lima Menna Barreto, devem parar de ser recomendados, lidos e estudados por aspirantes ao oficialato nas escolas das Forças Armadas.

Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador