Até a última gota, por Fábio de Oliveira Ribeiro

O mundo em que eu vivo - bem...  como eu posso dizer isso - é muito diferente daquele que meu avô conheceu e que eu conheço apenas através das histórias que ele conta. 

Até a última gota

por Fábio de Oliveira Ribeiro

No início do século XXI, as pessoas começaram a perceber que o petróleo estava no fim e a imaginar como seria um mundo sem gasolina. Bem… eu não preciso fazer isso. Eu vivo nasci nesse mundo filho de um homem que nasceu nesse mundo também, neto de um famoso ladrão de carros que foi colocado em liberdade uma década depois que a gasolina acabou. Meu avô tem 90 anos e está vivo; hoje eu o acompanharei na convenção dos ex-ladrões de carros.

O mundo em que eu vivo – bem…  como eu posso dizer isso – é muito diferente daquele que meu avô conheceu e que eu conheço apenas através das histórias que ele conta. 

Naquele mundo roubar carros, especialmente os carros muito caros, era uma arte perigosa e lucrativa. Mas quem fosse pego roubando, possuindo ou receptando carros roubados ganhava um endereço certo: a prisão de…

Quando eu nasci a Lei já havia mudado há décadas. Não fazia mais sentido punir quem rouba carros, pois eles estavam todos abandonados nas ruas e nas garagens das casas e dos prédios. Objetos inúteis, imóveis, cujo valor havia deixado de existir. Esse foi o efeito do fim do petróleo e da produção e do comércio da gasolina.

A nova Lei pune com severidade apenas uma coisa: o roubo, uso ou receptação de mulas, cavalos e camelos. O mundo agora é transportado de um lado para outro no lombo desses animais como havia sido durante milhares de anos antes da invenção do motor a combustão.

O mundo do meu avô, ele conta, era vibrante, brilhante e rápido. O meu mundo é lento e tedioso. Mas pelo menos eu posso ver as estrelas no céu a noite, coisa que meu avô não podia fazer quando era jovem por causa da fumaça dos carros e dos caminhões. 

– Tome cuidado, meu neto. A polícia a vapor está por perto.

Essas foram as palavras do meu avô quando deixei ele na convenção de ex-ladrões de carros. E ele tinha razão. Há duas quadras dali em cruzei com a polícia a vapor. 

No mundo do meu avô todo mundo temia a polícia, pois ela usava carros velozes e armas extremamente letais. No meu mundo todo mundo ri da polícia, pois ela usa trens a vapor antigos, lentos e que quebram constantemente.

Quando os ladrões de carro presos foram libertados, a polícia a vapor estava começando a operar. Os tiras sentiam muito ódio dos ladrões e vigiavam eles de perto, acreditando que eles seriam os novos ladrões de mulas, cavalos e camelos. Bem… alguns deles até que tentaram se adaptar à nova realidade. Mas a verdade é que um ladrão de carro nunca consegue ser um ladrão de mula, cavalo e camelo, pois ele aprendeu a lidar com objetos inanimados e não com animais vivos. Artes diferentes requerem habilidades diferentes, eu suponho.

Agora eu tenho que decidir o que fazer. E eu não sei se vou ao poço ou ao banco. Ok, acho que eu vou ao banco ver se acontece algo diferente.

O banco é o lugar mais fortificado da cidade de S, no noroeste da Inglaterra. Lá está guardada a coisa mais valiosa que existe. Um tanque subterrâneo de metal cercado por muros de concreto de 4 metros de grossura por todos os lados que contêm alguns milhares de litros de gasolina. As pessoas realmente ricas conseguem comprar um galão de gasolina inteiro para matar a saudades de passear de carro por alguns minutos. Qualquer carro pode ser utilizado para esse fim, pois a Lei do Ladrão de Carros Livre permite o uso de carros abandonados.

Pessoas como eu só podem comprar frasquinhos contendo uma solução de gasolina e água para usar como perfume. Eu não gosto muito do cheiro, mas às vezes junto dinheiro para comprar um frasquinho para meu avô. Os olhos dele brilham de alegria quando ele sente o cheiro daquilo e consegue assim lembrar o tempo em que era um jovem impetuoso ladrão de carros. Hoje ele foi à convenção usando esse perfume, o único que ele realmente gosta de usar. As pessoas jovens como eu usam perfume feito com urina de mula, cavalo e camelo. Mas eu não posso fazer isso, pois sou alérgico.

Nenhum movimento perto do banco hoje. Então acho que vou ao poço. 

O poço é o prédio mais alto da cidade de S, no noroeste da Inglaterra. Ele foi levantado por uma milionária excêntrica idosa quando meu avô era jovem e a gasolina começou a acabar. O poço é uma torre cônica de concreto de cem metros de altura, com 10 metros de diâmetro na base e 1 metro de diâmetro no ponto mais alto. 

Algumas pessoas dizem que a velha milionária mandou construir aquilo por causa de um sonho. Outros dizem que ela praticava magia negra dentro do poço. Ninguém sabe exatamente a razão pela qual o poço foi levantado. Quando a velha morreu, os descendentes dela abandonaram a cidade de S e o poço virou uma espécie de atração. Os jovens entediados se esgueiram até lá ao anoitecer para observar o céu. Quando não há nuvens, é possível ver claramente uma pequena porção do céu acima do poço. O movimento da Terra é então lentamente percebido à medida que a paisagem celeste se modifica no alto do poço. Uau… como é enfadonho esse mundo em que eu vivo.

Meu avô diz que a velha senhora construiu o poço de superfície para provar que a Terra era plana. Talvez a velha estivesse apenas louca querendo gastar o dinheiro dela de alguma maneira excêntrica. Parece que isso era comum naquele tempo pelas histórias que eu ouvi serem contadas. Colonizar Marte era o sonho de um desses milionários. Que coisa mais estúpida, todo mundo sabe que não existem mulas, cavalos e camelos em Marte. Como alguém poderia ter uma vida melhor do que aquela que nós temos aqui?

No meu mundo, as guerras não deixaram de existir, obviamente. Mas elas são menores e mais interessantes, pois os soldados lutam corpo a corpo e às vezes eles se recusam a fazer isso com medo. Uma vez eu fui ver a batalha entre a cidade de S e a cidade de D. Bem… a verdade é que os dois exércitos recusaram a batalha por causa da nevasca. Foi engraçado ver as duas massas de soldados com escudos, lanças e espadas caminhando uma em direção da outra para, no último instante, marcharem cada qual em uma direção oposta voltando às respectivas cidades.

Mas agora eu vou parar de escrever essa história. Eu tenho muito o que fazer amanhã. Meu pai está voltando com uma tropa de mulas carregadas com alimentos e eu preciso ajudá-lo a descarregar tudo e preparar a loja para receber o povo da cidade. Alguns deles já estão ficando famintos.

Obs: A versão em inglês deste conto foi publicada na primeira edição da The Threepenny Bit Magazine, revista publicada na Inglaterra. A versão impressa da revista está sendo produzida e ficará pronta em breve. O projeto começou em setembro de 2020 e foi interrompido pela pandemia. A versão online da The Threepenny Bit Magazine ganhou vida a alguns dias.

https://www.thethreepennybit.com/

Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Fábio de Oliveira Ribeiro

2 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Prezado Fábio
    Acompanho assiduamente seus artigos no GGN.
    Acredito que tenhamos uma forma de ver as coisas parecidas.
    Eu nasci em Osasco mas vivo a 40 anos em Campinas.
    Tenho interesse em conversar contigo por e mail, se possível.
    Seria um grande prazer compartilhar ideias contigo.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador