Bhishma, Sanjaya, Krishna e as três facetas da crise brasileira, por Fábio de Oliveira Ribeiro

O equívoco cometido pela grande imprensa ao apoiar a iniciativa de Sérgio Moro isentando-o dos crimes que ele confessou ter cometido.

Bhishma, Sanjaya, Krishna e as três facetas da crise brasileira

Por Fábio de Oliveira Ribeiro

Em abril de 2015 empreguei o Mahabharata para comentar a adesão de FHC ao golpe “com o Supremo com tudo”, contra Dilma Rousseff. Em fevereiro de 2016 voltei ao poema épico indiano para dissertar sobre a luta fratricida entre petistas (Pandavas) e tucanos (Kauravas). Ontem publiquei no GGN um comentário sobre a seletividade do Procurador Geral da República. Hoje, utilizarei uma vez mais o Mahabharata para evidenciar o equívoco cometido pela grande imprensa ao apoiar a iniciativa de Sérgio Moro isentando-o dos crimes que ele confessou ter cometido.

No capítulo 5, da primeira parte do Mahabharata, é narrado o célebre jogo de dados em que Yudhishthira perde seu tesouro, sua cidade, seus rebanhos, seus irmãos e sua liberdade. Duryodhana, que se fez representar no jogo por Sakuni, quer continuar jogando. Depois de perder tudo, Yudhishthira aposta e perde Draupadi. O conflito entre os Pandavas e os Kauravas se torna inevitável, pois Draupadi não é esposa apenas de Yudhishthira.

Após ser molestada por Duhasasana a mando de Duryodhana, Draupadi recorre a Dhritarashtra e o rei cego permite a ela pedir o que quiser. A esposa dos Pandavas pede que o rei que liberte Bhima e os irmãos dele. Dhritarashtra atende o pedido de Draupadi, restaurando a liberdade e os bens dos Pandavas. Duryodhana aceita a decisão do rei, mas desafia uma última vez Yudhishthira e ambos disputam nos dados qual dos dois partidos será obrigado a abandonar a cidade e a viver na selva por 12 anos. Yudhishthira perde e os Pandavas abandonam Hastinapura.

No momento em que os dois partidos debatem se Yudhishthira poderia ou não apostar Draupadi após ele mesmo ter perdido a liberdade, Bhishma volta-se para a esposa dos Pandavas e diz o seguinte:

“- Estes Kurus, minha senhora, estão sob alguma maldição, como ouvi há muito tempo. Aquilo que os poderosos dizem ser certo acaba por adquirir o peso da sua força; e ainda que os fracos falem a verdade, quem lhes dará ouvidos? Assim, pois Yudhishthira diga o que deve ser feito.” (Mahabharata, recontado por William Buck, editora Cultrix, São Paulo, 1995, p. 107)

Após ouvir a descrição dos Pandavas deixando Hastinapura, o rei cego Dhritarashtra conversa com seu auriga e Sanjaya faz a seguinte ponderação:

“- Majestade, a loucura pode surpreender um homem e, sob uma estranha luz, o mal lhe parecerá o bem. Ele ansiará pela insensatez e pela insanidade, e desejará seguir esse caminho. Receberá com boas vindas a destruição e a calamidade, e por elas será esmagado. Quem senão seu filho ousaria desonrar Draupadi?”(Mahabharata, recontado por William Buck, editora Cultrix, São Paulo, 1995, p. 111)

Os Pandavas já estão na selva quando Arjuna resolve caçar e reencontra Krishna. Ambos levam um animal abatido para o acampamento. Draupadi lembra como foi maltratada por Duhasasana e Krishna a consola dizendo:

“- Princesa, permanecemos na roda da vida que gira e gira, e vagamos eternamente de um nascimento a outro. Agora somos reis, logo depois passamos toda uma existência na crista de uma folha de relva. Nada e ninguém jamais nos fará perder esta vida, haja o que houver. Draupadi, quando lhe sobrevém uma grande felicidade, você não estranha e hesita em aceitar que ela seja real?

– Freqüentemente penso assim.

Não aceite, portanto, este infortúnio sem pô-lo à prova. Nada sabemos; ele talvez desapareça, e talvez nem seja verdadeiro.” (Mahabharata, recontado por William Buck, editora Cultrix, São Paulo, 1995, p. 112)

Os três fragmentos citados evidenciam três maneiras de pensar sobre um problema político: a certeza esotérica de que o poder engendra a verdade (Bhishma); a crença de que o erro é inevitável e acarreta o infortúnio (Sanjaya); a disposição saudável de considerar tudo transitório, não se deixando dominar por hesitações diante da felicidade e por temores em razão das adversidades (Krishna).

Não há dúvida de que o Constitucionalismo (que garante a igualdade), Direito (que rejeita a seletividade) e a Justiça (que atribui a cada qual o que é devido sem fazer distinções) são os três grandes trunfos da nossa civilização. Todavia, desde 2016 a igualdade vem sendo sabotada pelo MPF, o Direito foi transformado num simulacro e a Justiça se tornou capaz de premiar criminosos e perseguir inocentes.

Todas as representações fundamentadas feitas contra Jair Bolsonaro por líderes da esquerda foram arquivadas por Augusto Aras. Ele somente requereu o início de Inquérito contra o presidente após ele ser acusado por Sérgio Moro. Portanto, a atitude seletiva do Procurador Geral da República reflete as palavras de Bhishma “Aquilo que os poderosos dizem ser certo acaba por adquirir o peso da sua força; e ainda que os fracos falem a verdade, quem lhes dará ouvidos?”

A verdade do Direito, entretanto, não pode ser a seletividade. Sempre que uma autoridade interpreta nossa Constituição Cidadã de maneira a transformá-la num simulacro que reforça a desigualdade entre a esquerda e a direita, ela “…ansiará pela insensatez e pela insanidade, e desejará seguir esse caminho. Receberá com boas vindas a destruição e a calamidade, e por elas será esmagado.” colocando-se sob influência das observações de Sanjaya.

De maneira geral, os líderes de esquerda tem permitido ao MPF e à Justiça se conduzir dentro dos limites estreitos delimitados pela certeza esotérica de que o poder engendra a verdade e pela crença de que valorizar a igualdade seria um erro é inevitável que acarretaria grande infortúnio. Adiar nosso conflito civilizatório nunca será capaz de solucioná-lo.

Portanto, a esquerda precisa começar a cultivar a saudável disposição de considerar tudo transitório, de não se deixando dominar por hesitações e temores. A República já caiu. A democracia já deixou de existir. Chegou a hora de parar de fazer de conta que não existe um conflito grave que terá que ser resolvido de maneira dramática.

 

Fábio de Oliveira Ribeiro

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