Brasil em Transe: execução de sentença, por Arkx

Brasil em Transe: execução de sentença, por Arkx

calor infernal no Rio de Janeiro. um calor muito estranho, parece sair do interior das paredes, dos objetos, do solo, das pessoas. como se estivéssemos confinados dentro de um forno de micro-ondas, cozinhando lentamente a todos nós e a tudo ao redor.

mergulhamos outra vez nos porões de chumbo de uma ditadura que nunca acabou: “tortura, assassinato, não acabou 64!”.

choque e pavor. a lei do abate em ação. nunca houve nenhuma Comissão da Verdade. Fleury, Ustra e a Operação Condor se auto-anistiaram e ainda habitam entre nós.

jovens consternados se abraçam aos prantos. suas lágrimas copiosas se misturam ao suor espesso. agora sabem como é uma ditadura: matam na cara-dura, na frente de todo mundo, e ainda passam recibo assinado.

como sempre fizeram com o povo pobre, com os negros e índios, com as favelas e as periferias: “arregaçaram a cabeça da neguinha”.

todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. esta é a mais terrível de nossas heranças.

em manifestações deste tipo é preciso estar junto com as pessoas, embrenhar-se no aglomerado, tomar parte da multidão para sentir na pele o clima atravessando o ar e impregnando os corpos.

durante a caminhada após o velório na Cinelândia em direção ao o ato na ALERJ, seguindo depois até a Candelária, tomando toda a extensão da Av. Rio Branco até desaguar em frente a Câmara Municipal, outra vez na Cinelândia, muitas pessoas associaram aquela gigantesca manifestação aos atos de Junho de 2013.

mais uma vez a convocação foi feita não por partidos e organizações, e sim pela própria vida, unindo corações e mentes na certeza de atender ao compromisso irrecusável com um momento histórico.

uma professora que leciona no Complexo da Maré, de onde Marielle pertence, passa a informação da favela ter sido praticamente cercada, com dois helicópteros sobrevoando durante o dia.

curiosamente não havia policiamento na manifestação, em momento algum. como não havia polícia, não aconteceu qualquer tumulto. quem ordenou que a PM se abstivesse de suas habituais truculências? por acaso assassinos psicopatas respeitam luto?

“que coincidência! não tem polícia, não tem violência!”

enquanto recuaram a polícia no Centro, fizeram a contenção na favela para impedir a adesão dos moradores: “sem hipocrisia, essa polícia mata pobre todo dia!”

se a execução política é consensual, ninguém ainda sabia expor com exatidão os motivos e os mandantes, apesar das diversas linhas de raciocínio.

concordam que foi trabalho de profissionais, não de PM e milicianos. mas teria sido? o que exibem as imagens dos vídeos das câmeras de segurança?

Marielle não era considerada um alvo. não fez denúncias específicas ou sobre nenhum assunto inédito. sua atuação na fiscalização da intervenção ainda era inicial.

afinal, a quem serve? quais os usos políticos do fato? quais narrativa irão de consolidar?

como reagirão os generais da intervenção militar no Rio de Janeiro? afinal, o generalato nem sequer ainda assumiu tratar-se de uma operação militar, muito embora dela estejam no comando.

algum dia as FFAA serão capazes de fazer sua própria Comissão da Verdade e reconhecerem que sempre foram a milícia privada do grande capital? o braço armado da lumpenburguesia. uma força de ocupação a serviço dos mega interesses globalizados.

as vozes ecoam num coro: “não acabou, tem que acabar! eu quero o fim da polícia militar”. seria um gancho para a intervenção se legitimar, ao operar um relativo expurgo na polícia para mostrar serviço e angariar apoio popular?

após as ocupações militares anteriores, nas favelas a população aprendeu na opressão cotidiana não haver diferença entre as fardas da PM ou das FFAA, pois ambas estão ali para matar o morador, e não para protegê-lo.

quem tem experiência de viver em periferia sabe muito bem que a visão de uma carro da polícia inspira terror e ameaça de vida: “carne negra à venda. vendo barato. disque 190”

para os moradores das favelas, a intervenção militar vem de antes, desde os megaeventos, mesmo desde ainda mais distante no tempo. a ditadura sempre perdurou, o entulho autoritário ficou por toda a parte. tortura nunca mais?

a execução de Marielle, junto com o trabalhador motorista Anderson como o sempre inevitável “dano colateral”, aponta para similaridades com Edson Luís em 1968, Manoel Fiel Filho em 1976 e o Atentado do Riocentro, em 1981.

1968 já chegou novamente para nós, já temos um novo Edson Luís. enquanto avança o estado de exceção permanente, persiste a negação em se dar adeus às ilusões. nenhum processo eleitoral pode recompor a fissura institucional causada por um golpe de estado.

em 1976, Manoel Fiel Filho foi assassinado no DOI-CODI em SP. consta que por causa deste crime Geisel enquadrou a indústria da tortura e do extermínio, mais tarde chegando a exonerar o comandante do II Exército, para consolidar sua ascendência sobre as FFAA.

como Geisel usou o fato político a seu favor, a quem agora interessa capitalizar a morte de Marielle? aos interventores?

afinal o que aconteceu no Riocentro em 1981? a bomba explodiu acidentalmente, ou foi detonada pela contra-inteligência?

existe de fato uma divisão nas FFAA? de um lado os aliados do general sionista, verdadeiro comandante em chefe do governo usurpador, e de outro os supostos “legalistas” liderados pelo atual Comandante do Exército?

há mesmo um clima de revolta na base da PM carioca, fartos de serem não apenas a polícia que mais mata mas também a que mais morre?

é verdade que a intervenção está no momento mais preocupada em operar para conter os grupos autonomamente atuando dentro da polícia?

a execução de Marielle será a fagulha a por pelos ares o barril de pólvora do Rio de Janeiro?

são inúmeras as perguntas. mas podemos também ter algumas certezas.

TODOS NÓS JÁ ESTAMOS MORTOS. isto tudo já aconteceu. déjà-vu.

nossa luta não é para alterar o futuro, e sim para mudar o presente.

just about live.

apenas sobre viver.

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Redação

18 Comentários

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    1. Brasil em Transe: execução de sentença

      Darci Ribeiro! presente!

      como descendentes de escravos e de senhores de escravos, todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. esta é a mais terrível de nossas heranças. mas nossa crescente indignação contra esta herança maldita nos dará forças para conter os possessos e criar aqui, neste país, uma sociedade solidária.

      “O Povo Brasileiro”, Darci Ribeiro

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  1. Na Paulista
    Na Paulista…

    https://youtu.be/noEvFVQj3KI

    Aqui em São Paulo, na Paulista, o mesmo perfil de manifestantes descrito no post. Muitas mulheres, negras, e muita juventude. Geração diretas já, muito poucos, eu inclusive.

    Mas notei que, diferentemente de outras manifestações, muitos jovens que só estavam de passagem pela calçada, voltando do trabalho, paravam para assistir, como espectadores de um desfile, e aplaudiram.

    Nenhum policiamento também. Nem da CET para organizar o trânsito. Acho que subestimaram a adesão. Acharam que só ia ter gente embaixo do vão livre do MASP. Os organizadores também não imaginavam tanta gente. Estavam com uma caixa de som de 20cm x 40cm e quem ouvia os discursos eram só as pessoas bem mais próximas. Os discursos na maioria eram de representantes do PSOL Paulista. Quando a manifestação cresceu, e resolveu caminhar pela Paulista, já era uma multidão, por volta das 19:30.

    Acrescento outras perguntas ao post.

    Manifestação pacífica, sem alvejar alguns símbolos prediais, vai realmente atingir seus objetivos ?

    Não estou fazendo apologia a violência. Abaixo segue link do que ocorreu em Madri, por um motivo muito menor comparado com o ocorreu com Mariele e o que ela representa, e também tem ocorrido com o poder desproporcional do estado brasileiro sobre a população mais pobre.

    https://brasil.elpais.com/brasil/2018/03/16/internacional/1521183632_844094.html

    1. Brasil em Transe: execução de sentença

      -> Manifestação pacífica, sem alvejar alguns símbolos prediais, vai realmente atingir seus objetivos ?

      não considero que seria uma tática correta “alvejar” seja lá o que for. aí sim seria exatamente o que a repressão deseja que se faça.

      neste momento o melhor é prosseguir com os atos e vigílias, articulando-os com a luta geral conta o Golpe de 2016.

      o que estas manifestações com sua convocações quase espontâneas mais uma vez deixam claro é: afirmar que o povo não sai às ruas sempre foi nada além do que desculpa para as lideranças justificarem sua inação.

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  2. Caro arkx, o próximo governo

    Caro arkx, o próximo governo progressista, se um dia existir, deverá tomar as favelas e periferias e transformá-las em espaços revolucionários, investindo em educação em tempo integral, hospitais, renda mínima, saneamento  e tudo o mais necessário a uma existência digna. . A cidadania virá como consequência natural e o cidadão saberá indentificar seus amigos e inimigos. Mais perguntas: teremos um governo progressista de verdade ?; Se tivermos, terá essa iniciativa ? Se tiver, terá forças para impor esse tipo de governo ? Se houver resistência, enfrentará ?  

    1. Brasil em Transe: execução de sentença

      -> tomar as favelas e periferias e transformá-las em espaços revolucionários,

      reformatação do programa “Minha Casa, Minha Vida”, transformando-o em “Nosso Bairro, Nossas Vidas”:

      – construção de bairros e cidadania, e não de alojamento barato para mão-de-obra descartável. indo muito além da infra estrutura básica de posto de saúde, escolas, segurança e transporte;

      – foco na produção local de energia, água e alimentos: sistema coletivo de captação pluvial e geração de energia solar, eólica e hidráulica, hortas e pomar coletivos, reciclagem de resíduos;

      – centros comunitários, associação de moradores e grêmios estudantis, atividades culturais, wi-fi, rádio e TV locais com produção própria de conteúdo;

      – ao não se limitar ao equipamento e sim priorizar as relações sociais, constrói pólos geradores de transformação social por se constituírem em si mesmos numa nova forma de se viver.

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  3. arkx………………que tristeza companheiro

    que sigam, o PSOL, cobrando geral para se manterem bem informados como a mídia está sendo

    e o acesso às filmagens, estão liberando também para o PSOL ou só para mída?

    1. Brasil em Transe: execução de sentença

      -> e o acesso às filmagens, estão liberando também para o PSOL ou só para mída?

      não tenho idéia. não sou do PSOL. e no Rio o PT tornou-se uma legenda em extinção. inclusive teve Deputado notoriamente ligado à milícia.

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        1. Brasil em Transe: execução de sentença

          -> e no Rio o PT tornou-se uma legenda em extinção. inclusive teve Deputado notoriamente ligado à milícia.

          Deputado acusado de chefiar milícia é expulso do PT

          26 JAN2009

          A Executiva Nacional do PT decidiu, nesta segunda-feira, pela expulsão do deputado estadual do Rio de Janeiro Jorge Babu (PT), acusado de chefiar uma milícia que atua na zona oeste da capital fluminense.

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  4. Muitos morreram enxergando o futuro

    Fazendo Escola

    (Face da Morte)

     

    A chama da liberdade se renova
    Face da Morte, MPB um som à toda prova
    Traz passo á passo, data a data, a necessidade
    De se conhecer e amar o Brasil de verdade
    Crimes contra a humanidade, crimes de guerra
    Cabeças expostas nas praças, o povo acoitado nas janelas
    Choques, saques, torturas
    Levando ao caixão lacrado ou à loucura
    Muitos morreram enxergando o futuro
    Mesmo trancafiados em solitárias cercados pelos mais altos muros
    É a chama da liberdade que está acesa, não no pavio
    E sim no coração de cada camarada revolucionário do Brasil
    Não só em Lampião, Mariguelo, Leomar, Oswaldão, Antonio Conselheiro
    Inspirações de GOG sim rapper guerrilheiro
    A chama da liberdade está acesa em você moleque
    É você que aí de esquina carrega a PT
    Está na hora de ir ao banheiro
    E dar descarga nos maus pensamentos parceiro
    O barraco é a trincheira, a inveja é a besteira
    Olhe ao seu lado, a senhora chega ensangüentada
    O médico diz não tem mais jeito, não tem mais leito
    Olhar a criança catando lixo
    Olha o abismo que separa o pobre e o rico
    A liberdade não pode ser algemada
    Deve sempre estar de mãos dadas com os homens de bem
    Veja as fotos da felicidade que está estampada na Passeata dos Cem Ml;
    Sinta a força do rap nacional invadindo o Brasil
    GOG, Aliado G, Mano Ed, Viola
    Face da Morte idéia forte fazendo escola.

  5. Povo? não vi nada se
    Povo? não vi nada se assustador a quem está no comando deste botequim que se transformou o Brasil (escusas aos botequins e “comando” sem ironia). MT segue desdizendo hoje o que disse ontem. A moça sendo difamada sem maiores consequências e pintada como algoz de si própria – “mulher que se mete em assunto de homem, quem mandou brincar com assunto sério? Ah essas mulheres que acham que podem…”

    O povo ainda não apareceu. Para um país continental e majoritariamente pobre, a “revolta” com esse tapa na cara não apareceu. Assim como não apareceu com as afrontas diárias…

    Não há lideranças. A turma se acostumou aos gabinetes. Às sinecuras. À segurança. O povo está à deriva e segue sem representação. Recolhido em casa, fazendo biscates para sobreviver e sem reclamar muito – depois de perder tanto não reclama para não correr o risco de perder tudo. Melhor seguir repetindo o discurso da madame – contra os “corruptos” e esquerdistas “defensores de bandido” – que pelo menos contrata pra faxina e servicinhos. Única fonte de renda segura. Alguém tem que lavar as panelas, né messsmmm?

    1. Brasil em Transe: execução de sentença

      -> O povo ainda não apareceu. Para um país continental e majoritariamente pobre, a “revolta” com esse tapa na cara não apareceu.

      -> Não há lideranças. A turma se acostumou aos gabinetes. Às sinecuras. À segurança. O povo está à deriva e segue sem representação.

      “povo” é um conceito suficientemente impreciso para nele caber quaisquer camadas sociais. “povo” acaba sendo só um jeito de falar, uma expressão sem rigor conceitual e válida apenas para se comunicar coloquialmente.

      penso que há muito “povo” nas ruas, desde o início da luta contra o Golpe de 2016, e mesmo agora nos protestos contra a execução de Marielle.

      o ato da última quinta-feira no Rio foi comparável ao dia 18, no contexto de Junho de 2013, quando o “Rio de Janeiro sensacional, tomou a ALERJ com pedra e pau”.

      só não há mais “povo” nas ruas porque as lideranças, principalmente Lula, continuam operando para que jamais ocorra a “revolta”.

      o problema não está, e nunca esteve, no “povo”: a crise da Esquerda é a crise de suas lideranças.

      e quanto a “representação”, é justamente ela que precisa ser superada. não há mais nenhum caminho que passe pela “representação”, ainda mais a de tipo parlamentar.

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      1. Junho/2013?Ata.É…
        Junho/2013?

        Ata.

        É… Definitivamente tô sem paciência. Certa de que você entende, né?

        Ter que ensinar pode ser cansativo. Bela aula.

        Lamento, mesmo, por Marielle! E por mim mesma por ter acreditado. Saber que não estou sozinha não conforta nem consola.

        PS.: não me referi à representação parlamentar. Nem pensei nela…

        1. Brasil em Transe: execução de sentença

          a comunicação por escrito via web enseja muitos mal entendidos. pode ter certeza que: compreendo perfeitamente sua pinião e seus sentimentos.

          -> Junho/2013?

          sem entender Junho de 2013, sem se libertar das narrativas forjadas sobre Junho de 2013, nenhum de nós, muito menos o Brasil, chegaremos a lugar algum.

          Junho de 2013 no Rio de Janeiro foi muito diferente de SP.

          para compreender Junho de 2013 é preciso rejuvenescer, sem abrir mão da experiência de vida.

          estou lhe respondendo ouvindo um áudio absolutamente sintetizador de tudo que está em curso no Brasil. um áudio que me emocionou.

          uma jovem dando um depoimento belíssimo, ela esteve no ato de quinta no Rio, chorou muito no meio da multidão. e expõe seus sentimentos e perplexidades, que são também compartilhados por todos nós:

          “eu sinto no meu peito, nos meus sentimentos, a vida me convocando, a fazer algo. porque afinal é neste tempo de ruína, quando tudo está em decomposição, que estou vivendo.”

          Junho de 2013 começou novamente.

          .

          1. Putz! Me faça sentir raiva, não chorar…
            Pode ter certeza de que há respeito sempre em minhas palavras, por pior que sejam. Sim, a comunicação por escrito na web… Estou fugindo dela.

            Perdoem a cara amarrada, Perdoem a falta de abraço Perdoem a falta de espaço, Os dias eram assim Perdoem por tantos perigos, Perdoem a falta de abrigo Perdoem a falta de amigos, Os dias eram assim Perdoem a falta de folhas, Perdoem a falta de ar Perdoem a falta de escolha, Os dias eram assim E quando passarem à limpo, E quando cortarem os laços E quando soltarem os cintos, Façam a festa por mim Quando largarem a mágoa, Quando lavarem a alma Quando lavarem a água, Lavem os olhos por mim Quando brotarem as flores, Quando crescerem as matas Quando colherem os frutos Digam o gosto para mim

          2. Brasil em Transe: execução de sentença

            não existe nenhum outro caminho, para nenhum de nós: ir às ruas. romper o círculo estreito de todas as bolhas, nenhum laço é autêntico se não foi nascido da luta.

            .

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