Capitalismo: o custo da ganância, por Marcio Valley

Capitalismo: o custo da ganância, por Marcio Valley

Existem muitas definições possíveis para a palavra trabalho. Certamente a mais primitiva, aquela que compartilhamos com os demais animais, é a que o conceitua como a atividade de natureza física voltada à obtenção, no ambiente natural, dos elementos necessários à sobrevivência. Os leões, por exemplo, “trabalham” em média quatro horas diárias, passando o resto do dia convivendo com os demais membros do bando ou simplesmente dormindo (1). Alguns animais necessitam “trabalhar” bem mais. Os pandas gigantes costumam passar doze horas diárias colhendo e comendo bambu (2).

No que toca ao ser humano pré-histórico, imaginando que possuía comportamento similar ao dos atuais primatas superiores, como o gorila, presume-se que deveria passar de 8 a 9 horas em atividades necessárias à alimentação (3), ou, mais precisamente, no exercício da caça e da coleta. Nesse tempo, não havia excedente de produção individual. Cada ser humano caçava e coletava apenas o necessário para a alimentação própria e do grupo. Pelo contrário, vingava a escassez e um estado permanente semi-famélico.

Com o advento da agricultura e da pecuária, duas novidades surgiram: (a) a necessidade de fixação em determinado ponto geográfico para o desenvolvimento da cultura agro-pecuária e (b) a produção excedente. Da primeira, e como consequência do instinto animal de proteção do território, surgiu a criação cultural humana da propriedade. Do desenvolvimento da segunda, resultado direto do instinto animal do egocentrismo e consequente necessidade de acumulação, surgiu a criação cultural humana da submissão de um ser por outro da mesma espécie, a exploração do homem pelo homem.

Abram-se parênteses para esclarecer que o único valor real, subjacente a toda a economia, é o trabalho. A matéria-prima extraída da Terra não possui valor em si, sendo seu valor medido pelo tempo e energia despendido em sua extração. O capital investido na empresa, nesse sentido, é apenas um outro nome para “trabalho acumulado”. Capital é, assim, uma espécie de bateria através da qual se armazena a energia do trabalho. Portanto, como ninguém consegue trabalhar mais do que uma pessoa, pois somos todos uma única pessoa, a riqueza somente é conseguida através da tomada de posse do trabalho alheio. Voltando ao exemplo do reino animal, se um leão for visto impondo sua propriedade sobre as carcaças de mil zebras abatidas, todos teremos certeza de que não foi ele que as caçou, mas que se apropriou da caça de outros animais. É claro que, no reino animal, dificilmente esse leão conseguirá manter essa posse. Os animais são menos inteligentes do que nós e, por isso, são incapazes de vislumbrar a enorme vantagem em permitir que um só tenha mais do que necessita, enquanto outros não tenham nada.

A partir do tempo histórico de criação da atividade agropastoril, o ser humano, plantando e criando animais em terras que passou a consideradar somente suas, iniciou uma era que poderia ser dourada: a obtenção da natureza de muito mais do que era necessário para a subsistência grupal. Todavia, utilizando sua imensa capacidade alquímica de transformar ouro em dejeto escatológico, o ser humano aproveitou-se disso para apresentar uma terceira novidade ao reino humano: a transformação do trabalho em fator de produção. Deixando de ser apenas a atividade estritamente destinada a manter-se vivo, o trabalho iniciou sua carreira de elemento a ser considerado para o aumento da produtividade em nome alheio. A partir daí, até a louca complexidade das relações sociais e econômicas que a atualidade presencia, foi um pulo histórico de quase quinze mil anos. Durante todo esse tempo, uma extrema minoria de seres humanos escravizou quase a totalidade dos demais seres humanos.

De fato, a palavra correta a ser utilizada é escravidão, que apenas variou de modo e condições. Desde a mais selvagem escravidão do chicote e pelourinho, até o que modernamente é denominado de emprego, no qual o salário de subsistência substituiu o pagamento em senzala e alimento. É claro que, em todos os tempos, sempre existiram os escravos privilegiados, que servem à Corte e andam de roupas finas e calçam sapatos bonitos, e quase nem se sentem escravos. Ao lado deles, entretanto, penam os escravos desfavorecidos, que sentem o peso da escravidão em toda a sua dimensão vil e degradante. Nos tempos modernos, a classe média representa os escravos privilegiados, enquanto os pobres e miseráveis suportam a vileza do capitalismo em sua integralidade. O chicote e o pelourinho foram substituídos, como tática de incutir o medo e a sensação de insegurança que resultam em obediência, pela quase completa omissão social, capaz de destruir a dignidade individual, tornando os desfavorecidos uma espécie de refugo desprezível do capitalismo moderno, como pontifica Bauman em “Vidas desperdiçadas” (4).

O desenvolvimento da inteligência parecia capaz de, progressivamente, conduzir o ser humano ao paraíso na Terra, a saber, diferenciar-se dos animais irracionais pela desnecessidade de trabalhar para obtenção da mera sobrevivência, o que possibilitaria o florescimento pessoal em suas dimensões artística, cultural, esportiva e humanitária ou, numa só palavra: espiritual. De fato, o desenvolvimento progressivo da técnica foi aumentando a produtividade do ser humano e, bem aplicada, poderia reduzir a jornada de trabalho humano para, quem sabe, algo similar a de animais considerados menos inteligentes do que os humanos, como os leões, quatro horas por dia. A união da ciência e da técnica conduziu à explosão tecnológica a partir de meados do século XIX, com precipitação abissal a partir de metade do século XX. Todavia, a carga média de trabalho diário do ser humano ainda é similar a dos Australopithecus, dos escravos de todas as épocas e lugares, dos servos do feudalismo e dos operários da Revolução Industrial. Não é raro, ainda hoje, a prática de jornadas de doze horas. Em termos de trabalho, portanto, à revelia das maravilhas tecnológicas, a imensa maioria dos seres humanos jamais saiu da pré-história.

O aumento de produtividade não gerou ganho significativo na renda do trabalhador e tampouco em seu tempo livre. Pelo contrário, o resultado mais imediato para o trabalhador é o conhecido desemprego estrutural, ou seja, a perda total de renda. Ora, se o incrível ganho de produtividade decorrente da tecnologia aplicada não implicou ganho proporcional no tempo livre do trabalhador e tampouco em seu salário, para onde ele se dirigiu? A resposta, óbvia, é que praticamente toda o incremento na produtividade foi convertido em aumento da mais-valia e, consequentemente, do lucro. Num exemplo grosseiro, se o trabalhador produz cinco produtos por hora e seu salário corresponde a um produto por hora, isso significa que ele recebe por apenas vinte por cento do que produz, de modo que trabalha de graça por oitenta por cento de sua jornada. Esse tempo extra, apropriado pelo capitalista, é a mais-valia, ou, para que fique bem claro, escravidão. Como tudo que é ruim pode piorar, se uma inovação tecnológica qualquer permite dobrar a produtividade – dez produtos por hora – com manutenção do salário, a exploração duplica, pois agora seu salário corresponde a apenas dez por cento do que produz, o que importa em escravidão por noventa por cento da jornada.

O que a elite escravocrata faz com esse dinheiro? Promove o bem-estar social? Impulsiona o crescimento cultural da humanidade? Pratica ações de recuperação ambiental do planeta? Desenvolve projetos de recuperação de espécies ameaçadas? Incrementa inovações em matrizes energéticas mais limpas? Claro que não. Óbvio que parte da riqueza é gasto em superfluidades, como propriedades elegantes, brinquedos caros (automóveis exclusivos, iates, aviões e outros) e outras ostentações, mas isso é muito pouco perto da riqueza gerada. Padecesse a elite somente do vício da futilidade e a humanidade estaria salva. O problema é que a elite acrescenta, à indecente frivolidade, a mesquinhez da insensibilidade social. Como o excedente de produção é muito grande e a riqueza, incalculável, há necessidade de articular gastos muito maiores para dar vazão ao resultado do trabalho acumulado que é sonegado à população mundial.

Basicamente, a maior parte do dinheiro é gasto no mercado especulativo, criando-se uma economia fictícia, sem base no mundo real da produção. O problema é que o mercado especulativo inevitavelmente produz as chamadas bolhas, que um dia estouram e dão azo às sucessivas crises da economia. As crises econômicas estão ficando mais próximas no tempo e, a cada aparição, geram um rombo maior. Os governos dos países centrais lidam com as crises cíclicas principalmente em duas frentes: (a) com o agigantamento do aparelho militar-repressivo que garante a manutenção da ordem capitalista e (b) com injeção de dinheiro público no caixa privado das empresas para salvar o capitalismo das mesmas crises cíclicas. Dito de um modo mais duro e cru: para alongar o tempo intercrises, produzem armas, promovem guerras e, depois, recuperam o que foi destruído; e, após a crise, sob a alegação de bem comum, colocam dinheiro público em cofres privados para garantir o retorno ao ponto de partida para a próxima crise.

Os EUA possuem quase dez mil ogivas nucleares e a Rússia mais de sete mil (5), sem contar os demais países. Uma estimativa otimista do orçamento militar dos EUA aponta mais de seiscentos bilhões de dólares anuais de gastos militares (6). A Segunda Guerra custou aos americanos cerca de cinco trilhões de dólares em valores atualizados. Somadas, as guerras do Iraque e do Afeganistão custaram aos governos do mundo seis trilhões de dólares e a manutenção de tropas americanas nestes países custa dezesseis bilhões de dólares por mês (7) ao povo dos EUA.

Cessada a 2ª Guerra, os EUA estiveram constantemente envolvidos em conflitos menores, mas custosos. Jamais estiveram um ano sequer sem bombardear outro país. Claro que não se trata de defesa da liberdade e da democracia, mas de puro cálculo capitalista. Sem mencionar as guerras não declaradas, manipuladas através de títeres locais, como costumeiramente ocorre na América Latina e parece ser o caso do golpe antidemocrático promovido no Brasil em 2016.

Na famosa bolha imobiliária americana que gerou a crise de 2008, o governo americano resolveu premiar os irresponsáveis especuladores com a aquisição dos títulos podres que micaram na mão dos gananciosos bilionários. Foram gastos quase um trilhão de dólares do povo americano para salvar os ricos investidores (8). O presidente americano da época era George W. Bush, que se notabilizou por criar dívida para o Tesouro americano superior à soma das dívidas produzidas por todos os presidentes americanos anteriores, de George Washignton a Bill Clinton (9). O recorde, porém, durou pouco. No governo seguinte, o presidente Barack Obama superou seu antecessor ao criar dívida maior do que a soma de todos os presidentes americanos anteriores, inclusive George W. Bush. Obama assumiu a presidência com a dívida americana na casa dos nove trilhões de dólares e, ao deixá-la, a dívida subira para cerca de vinte trilhões de dólares (10). Se Bush filho premiou banqueiros irresponsáveis com um trilhão de dólares, Obama resolveu, em 2009, apenas um ano depois da doação de Bush, dobrar a bondade: doou dois trilhões de dólares do povo americano para os banqueiros bilionários que arriscam, no cassino da especulação financeira, o dinheiro obtido com a exploração da humanidade (11).

Calcula-se que, no total, a crise especulativa de 2008 tenha custado aos cofres americanos, até o ano de 2009, a título de socorro financeiro a bancos, montadoras e outros atores do mercado financeiro, o total inacreditável de dez trilhões de dólares (12). Apesar dessa montanha de dinheiro, não houve melhora significativa nos níveis de emprego e de renda no país. Para se ter uma ideia da dimensão dessa fortuna, caso o governo americano resolvesse direcionar o dinheiro para o povo e não para os bilionários, cada americano, rico ou pobre, receberia cerca de trinta mil dólares ou cerca de cem mil reais. O empreendedorismo tão decantado pelo sonho americano agradeceria. Isso sem considerar os elevados gastos militares já mencionados, que poderiam também ser direcionados em benefícios diretos para a população. Todavia, como não é permitido a redução da desigualdade social, sob pena de danificar a máquina de produzir dinheiro inútil, finge-se que se está ajudando os pobres com o dinheiro colocado no cofre dos ricos.

O problema nesse jogo de ganha-ganha especulativo com a garantia de socorro financeiro com dinheiro público pós-ruptura de bolhas é que as crises são cada vez mais frequentes e cada vez exigem injeção de mais dinheiro. Isso é indicativo de que, em breve, será impossível salvar o mercado e a quebradeira geral será inevitável. A confiança no dólar é garantida pela falsa crença na saúde da economia americana, cuja dívida pública ultrapassa os cem por cento do PIB desde 2011 (13), saúde essa que é confirmada pelos triplos A concedidos pelas mesmas agências de rating que são sócias do capitalismo mais selvagem. Basta lembrar que essas mesmas agências concediam triplos A aos títulos imobiliários um dia antes da explosão da bolha de 2008. Isso significa que darão notas excelentes para os títulos americanos até um dia antes de uma eventual explosão da economia americana, quando ocorrer.

O que o mundo assiste pode significar a materialização da profecia marxiana de destruição do capitalismo em função de suas contradição internas. Além da contradição marcada pela exclusão de grande massa dos trabalhadores do processo produtivo, o que provoca ausência de renda e, portanto, de demanda, há ainda a questão do capitalismo liberal, produtivo, ter sido engolido pelo capitalismo monopolista ou financeiro, que pouco se preocupa com a produção, centrando sua atenção na especulação e na derrubada de barreiras, inclusive as provocadas pela concorrência. Uma capitalismo que renega a concorrência está fadado a sucumbir. Nesse jogo de grande aquisições, as corporações se armaram de um poder político insuperável, capaz de influenciar diretamente as políticas locais e prejudicar os capitalistas vinculados à produção que ainda resistem. Os tubarões estão se comendo.

Por conta de tanta contradição, embora o potencial de produtividade hoje seja gigantesco, é incapaz de gerar emprego e renda. Sem renda, como manter a roda econômica gerando? Uma uberização total da economia é inimiginável e tampouco é possível supor um terceiro setor que absorva tamanho contingente de trabalhadores. Há um problema no meio da sala da economia que parece insolúvel: saímos da economia fundada na carência para uma economia de abundância potencial. A abundância somente não é real em função do império do lucro, cujo princípio basilar impede que seja fabricado o que não se consegue vender. O que interessa não é a necessidade humana, mas a existência de lucro.

A sandice é tamanha que os bilionários se recusam a perceber que, melhor do que aparatos militares custosos e de terríveis aplicações práticas, a manutenção de seu status depende de manter a população com a sensação de segurança gerada por mecanismos como o estado de bem-estar social e programas de renda mínima, que ainda possuem o duplo benefício extra de custarem menos em riqueza e vidas do que a destruição das guerras e servirem de estimulantes para a economia.

Tudo o que foi dito em relação aos EUA se aplica aos demais países, ainda que em doses menores, Brasil inclusive. A guerra política brasileira, cujo fim não se vislumbra, é parte integrante dessa luta encarniçada pela manutenção de princípios econômicos que estão ruindo aceleradamente.

O fim está próximo. O que virá depois? Socialismo, nova Idade Média ou a hecatombe atômica? Difícil dizer. Por via das dúvidas, quem puder, que passe a comprar ouro. Quando a quebradeira começar, papel nenhum valerá nada. Nem mesmo esse pequeno retângulo de papel pintado de verde que chamam dólar.

(1) Extraído em 28/08/2017 de: https://pt.wikipedia.org/wiki/Le%C3%A3o
(2) Extraído em 28/08/2017 de: http://istoe.com.br/5109_A+VIDA+SEXUAL+DOS+PANDAS/
(3) Extraído em 28/08/2017 de: http://ciencia.estadao.com.br/blogs/herton-escobar/cerebro-grande-nasceu-na-cozinha/
(4) BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiciadas: la modernidad y sus parias, Buenos Aires, Editorial Paidós, 2012
(5) Extraído em 28/08/2017 de: https://pt.wikipedia.org/wiki/Pa%C3%ADses_com_armamento_nuclear
(6) Extraído em 28/08/2017 de: http://internacional.estadao.com.br/blogs/radar-global/comparacao-de-gastos-com-defesa-nos-eua-e-no-mundo/
(7) Extraído em 28/08/2017 de: http://www.revistaplaneta.com.br/a-guerra-dos-3-trilhoes-de-dolares/
(8) Extraído em 28/08/2017 de: https://pt.wikipedia.org/wiki/Crise_do_subprime
(9) Extraído em 28/08/2017 de: http://www.ocongressista.com.br/2016/04/os-eua-entrarao-em-crise-e-este-e-o.html
(10) Extraído em 28/08/2017 de: http://bomsenso.org/2017/01/25/desmistificando-obama-o-contador-de-historias/
(11) Extraído em 28/08/2017 de: http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,plano-financeiro-de-obama-vai-injetar-us-2-trilhoes-para-salvar-bancos,321740
(12) Extraído em 28/08/2017 de: https://www.terra.com.br/economia/eua-ja-gastaram-us-10-trilhoes-contra-crise,e33817a7adc4b310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html
(13) Extraído em 28/08/2017 de: http://terracoeconomico.com.br/evolucao-da-divida-publica-americana-desde-1969-historia-contada-por-um-grafico

Redação

19 Comentários

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  1. O trabalho é uma atividade exclusivamente humana

    Nem animais nem máquinas não trabalham. As máquinas são produtos do trabalho.

    Marx escreveu:

    “Antes de tudo, o trabalho é um processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o ser humano com sua própria ação impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza. Defronta-se com a natureza como uma de suas forças. Põe em movimento as forças naturais de seu corpo, braços e pernas, cabeça e mãos, a fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana. Atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao mesmo tempo modifica sua própria natureza. Desenvolve as potencialidades nela adormecidas e submete ao seu domínio o jogo das forças naturais. Não se trata aqui das formas instintivas, animais, de trabalho. Quando o trabalhador chega ao mercado para vender sua força de trabalho, é imensa a distância histórica que medeia entre sua condição e a do homem primitivo com sua forma ainda instintiva de trabalho. Pressupomos o trabalho sob forma exclusivamente humana. Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha supera mais de um arquiteto ao construir sua colméia. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele figura na mente sua construção antes de transformá-la em realidade. No fim do processo do trabalho aparece um resultado que já existia antes idealmente na imaginação do trabalhador. Ele não transforma apenas o material sobre o qual opera; ele imprime ao material o projeto que tinha conscientemente em mira, o qual constitui a lei determinante do seu modo de operar e ao qual tem de subordinar sua vontade. E essa subordinação não é um ato fortuito. Além do esforço dos órgãos que trabalham, é mister a vontade adequada que se manifesta através da atenção durante todo o curso do trabalho. E isto é tanto mais necessário quanto menos se sinta o trabalhador atraído pelo conteúdo e pelo método de execução de sua tarefa, que lhe oferece por isso menos possibilidade de fruir da aplicação das suas próprias forças físicas e espirituais”.

    O autor do artigo incorre em erro quando afirma:

    “Abram-se parênteses para esclarecer que o único valor real, subjacente a toda a economia, é o trabalho”.

    No Programa de Gotha, Lassalle escreveu que:

    “O trabalho é a fonte de toda a riqueza e de toda a cultura”.

    Criticando o tal Programa, Marx disse:

    “O trabalho não é a fonte de toda a riqueza. A Natureza é tanto a fonte dos valores de uso (e é bem nestes que, todavia, consiste a riqueza material!) como o trabalho, que não é ele próprio senão a exteriorização de uma força da Natureza, a força de trabalho humana. Aquela frase encontra-se em todos os abecedários para crianças e está correcta se se subentender que o trabalho se processa com os objectos e meios pertinentes. Um programa socialista, porém, não pode permitir a semelhantes maneiras de dizer burguesas que silenciem as condições que lhes dão – só elas – um sentido. Só enquanto o homem, desde o princípio, se comporta para com a Natureza – a primeira fonte de todos os meios de trabalho e objectos de trabalho – como proprietário, a trata como pertencendo-lhe, o seu trabalho se torna fonte de valores de uso, portanto, também de riqueza. Os burgueses têm muito boas razões para atribuírem falsamente ao trabalho uma força criadora sobrenatural; pois, precisamente, do condicionamento do trabalho pela Natureza segue-se que o homem que não possuir nenhuma outra propriedade senão a sua força de trabalho tem que ser, em todos os estados de sociedade e de cultura, escravo dos outros homens que se fizeram proprietários das condições objectivas do trabalho. Ele só pode trabalhar com a autorização deles, portanto, ele só com a autorização deles pode viver”.

     

    Pois bem. Os Marxistas constataram que o aparecimento da agricultura e, portanto, a criação de excedente não serviu para que os trabalhadores trabalhassem menos tempo ou consumisse mais, mas para que algumas pessoas não trabalhassem de forma nenhuma.

    1. Olá, Rui Ribeiro, obrigado

      Olá, Rui Ribeiro, obrigado pela contribuição. Porém, discordo da interpretação, ainda que de inteligência indiscutível, como Marx. Temos esse grande problema de nos considerarmos uma caso à parte na natureza, um problema de antropocentrismo. Se o animal humano vai na floresta caçar e coletar, é trabalho, se é o animal, não é. Não há razão lógica alguma para interpretar desse jeito. Mantenho o que disse: trabalho não é algo exclusivamente humano. Toda caça e toda coleta, seja efetuada por animais racionais ou irracionais, é trabalho, pois se trata de energia direcionada a um propósito específico. Grande abraço.

      1. Ah, desculpe-me, Rui Ribeiro,

        Ah, desculpe-me, Rui Ribeiro, esqueci do segundo ponto que você levantou. Com o respeito devido às opiniões distintas, penso que não existe riqueza alguma na natureza, em seu sentido econômico. Num sentido poético, claro que a natureza é a maior e mais bela das riquezas. Todavia, a riqueza econômica é uma criação cultural. Não fosse o ser humano, a natureza seria o que é: a origem da criação e sua provedora, sem considerações de grandeza econômica. Abraços.

      2. Você acha que, ao pastar, uma vaca está trabalhando?

        Você acha que um gnu pastando é trabalho?

        Imagine que você se perde numa floresta e depois de alguns dias com fome, você encontra uma árvore cheia de frutas comestíveis? Tais valores de uso não seriam riqueza?

        1. Sim, gnu e vaca estão

          Sim, gnu e vaca estão trabalhando, ou seja, despendendo energia com vistas à modificação da natureza em seu benefício, exatamente o mesmo comportamento do ser humano que trabalha num escritório com ar condicionado. A fruta, no sentido econômico humano, somente é riqueza a partir de sua conversão em bem de troca. Antes disso, é uma circunstância natural, como a chuva, o relâmpago ou um grão de areia. A grama que a vaca e o gnu comem são a condição da vida e não riqueza no sentido que o ser humano confere às coisas. Se não existisse um animal racional no planeta, a riqueza não existiria, mas o trabalho sim.

          1. Ao pastarem, vacas e gnus acumulam mais energia do que gastam

            Se o critério definidor do trabalho é o gasto de energia pura e simplesmente então uma relação sexual é trabalho.

            Você concorda?

          2. Rui Ribeiro, o critério não é

            Rui Ribeiro, o critério não é gasto de energia puro e simples, mas o direcionamento dessa energia para uma atividade específica que visa modificar a natureza em benefício próprio ou do grupo. Por outro lado, se irá gastar mais ou menos energia não é relevante. Existem trabalhos humanos que gastam mais energia do que o benefício, ainda assim é trabalho. Existem trabalhos humanos intelectuais que gastam menos energia física do que o benefício. Ainda assim é trabalho. O ato sexual pode ou não ser trabalho, depende das circunstâncias. Se por mero prazer, não é trabalho. Abraços.

    1. Grande contribuição, Ninguém.

      Grande contribuição, Ninguém. De fato, a escassez é um elemento a ser considerado. Todavia, para mim sua implicação é direta no trabalho, vale dizer, quanto mais raro de encontrar e mais difícil de extrair da natureza, mais dispêndio exige de energia laboral. De toda forma, o valor aí continua sendo do trabalho. Quanto aos períodos pós-guerra, o Thomas Piketti detalhou esse processo em “O capital no século XXI”. É induvidoso que esses períodos reduzem a desigualdade, mas trata-se de um efeito inevitável das circunstâncias, não de uma concessão dos mais ricos. Como as bolhas especulativas são inerentes ao capitalismo, as guerras se tornam o freio de arrumação inevitável. Os mais ricos perdem antes da guerra, as guerras recolocam as coisas em seus devidos lugares e, em prazo médio, tudo volta a ser como dantes. No caso da 2ª Guerra, os efeitos benéficos cessaram no final dos anos 1960. Abraços.

        1. O chá é abundante ou sua procura é baixa?

          Pode ser que o chá não seja abundante, mas apenas que sua procura seja baixa e, por isso, seu preço seja igualmente baixo.

          De acordo com Bertolt Brecht,

          Na Guerra Muitas Coisas Crescerão

          Ficarão maiores
          As propriedades dos que possuem
          E a miséria dos que não possuem
          As falas do guia [Führer]
          E o silêncio dos guiados.

          1. O nível das forças produtivas e o valor de troca das mercadorias

            Amigo, os valores de troca das mercadorias são diretamente proporcionais aos tempos de trabalho gastos na sua produção e são inversamente proporcionais às forças produtivas do trabalho envolvidas. Em sendo assim, é possível que o nível das forças produtivas envolvidas na produção de chá seja muito mais elevado do que o nível das forças produtivas empregues no cultivo da baunilha, enquanto o desnível entre os tempos de trabalho cristalizados na produção das duas mercadorias seja bem menor do que o desnível entre o avanço das forças produtivas empregues na produção dos antecitados bens.

            A conferir

        2. Olá, Ninguém. Não conheço o

          Olá, Ninguém. Não conheço o processo de cultura do chá ou da banilha. Talvez a colheita não seja o único trabalho a ser considerado, mas também o plantio e os cuidados necessários, o que envolveria trabalho. Além disso, talvez o chá seja fácil de plantar em qualquer terreno, enquanto a baunilha exija uma região de clima especial, o que envolve o valor da compra desse terreno e, em minha definição, maio gasto de “trabalho acumulado”. Enfim, não sei dizer. O fato é que raramente algo fácil custa caro e algo difícil custa barato. Essa ideia é contrária aos princípios econômicos. Abraços.

          1. Ninguém, você está abstraindo o grau das forças produtivas

            “If we could succeed at a small expenditure of labour, in converting carbon into diamonds, their value might fall below that of bricks. In general, the greater the productiveness of labour, the less is the labour time required for the production of an article, the less is the amount of labour crystallised in that article, and the less is its value; and vice versâ, the less the productiveness of labour, the greater is the labour time required for the production of an article, and the greater is its value. The value of a commodity, therefore, varies directly as the quantity, and inversely as the productiveness, of the labour incorporated in it.” – Karl Marx

            Traduzindo:

            “Se se conseguisse transformar com pouco trabalho o carvão em diamante, o valor deste último desceria talvez abaixo do valor dos tijolos. Em geral: quanto maior é a força produtiva do trabalho, menor é o tempo necessário à produção de um artigo, menor é a massa de trabalho nele cristalizada, menor é o seu valor. Inversamente, quanto menor é a força produtiva do trabalho, maior é o tempo necessário à produção de um artigo, maior é o seu valor. A grandeza de valor de uma mercadoria varia, pois, na razão direta da quantidade e na razão inversa da produtividade do trabalho que nela se realiza”.

    2. Valor de uso e valor de troca

      Quando o Márcio afirma que ‘a matéria-prima extraída da Terra não possui valor em si, sendo seu valor medido pelo tempo e energia despendido em sua extração’, ele está falando do valor de troca, não do valor de uso. A matéria-prima extraída da terra tem valor de uso, utilidade, em si mesma. O ar que respiramos tem utilidade em si mesmo, independentemente da sua escassez ou abundância.

      Em sua obra “Miséria da Filosofia”, Marx escreveu:

      Lauderdale baseou seu sistema na razão inversa das duas espécies de valor, e sua doutrina era mesmo de tal modo popular no tempo de Ricardo, que este era levado a falar dela como de uma cousa geralmente conhecida.

      “Foi confundindo as ideias de valor venal e das riquezas (valor útil) que se pretendeu que, diminuindo a quantidade das cousas necessárias, úteis ou agradáveis à vida, era possível aumentar as riquezas.” (Ricardo, Príncipes d’économie politique, tradução de Constâncio, anotada por J. B. Say. Paris, 1835. Tomo II, capítulo Sobre o valor e as riquezas).

      Acabamos de ver que os economistas, antes do sr. Proudhon, “assinalaram” o mistério profundo de oposição e contradição. Vejamos, agora como o sr. Proudhon explica, por sua vez, este mistério, depois de se terem manifestado os economistas.

      O valor de troca de um produto baixa à medida que a oferta vai crescendo, a procura permanecendo a mesma. Em outros termos: quanto mais abundante for um produto relativamente à procura, tanto mais o seu valor de troca ou seu preço será baixo. Vice-versa: quanto mais fraca for a oferta em relação à procura, mais alto será o valor de troca ou o preço do produto. Em outros termos: quanto maior for a raridade dos produtos oferecidos em relação à procura, maior será a elevação dos preços. O valor de troca de um produto depende de sua abundância ou de sua escassez, mas sempre em relação à sua procura. Suponhamos um produto mais do que raro, único em seu gênero: este produto único será mais do que abundante, será supérfluo, se não for procurado. Suponhamos, ao contrário, um produto que exista aos milhões: ele será sempre escasso, se não bastar à procura, isto é, se for muito procurado.

      Trata-se de verdades quase banais, poderíamos dizê-lo, e, no entanto, foi preciso reproduzi-las aqui para fazer com que os mistérios do sr. Proudhon fossem compreendidos.

      “De tal modo que, seguindo o princípio até às últimas consequências chegaríamos da maneira mais lógica do mundo, à conclusão de que as cousas cujo uso é necessário e a quantidade infinita nada deveriam custar e aquelas cuja utilidade é nula e a raridade extrema deveriam ter um preço inestimável. Para cúmulo do embaraço, a prática não admite estes extremos: de um lado, nenhum produto humano poderia jamais alcançar o infinito em grandeza; de outro lado, as cousas mais raras necessitam, num grau qualquer, de ser úteis, sem o que elas não seriam suscetíveis de qualquer valor. O valor útil e o valor permutável permanecem, pois, fatalmente, presos um ao outro, se bem que, por sua natureza, tendem continuamente a se excluir”(Tomo I, pág. 39).

      Que é que leva ao cúmulo o embaraço do sr. Proudhon? É que ele se esqueceu simplesmente da procura e de que uma cousa não poderia ser rara ou abundante senão na medida em que é procurada. Uma vez posta de lado a procura, ele assimila o valor permutável à raridade e o valor útil à abundância. Efetivamente, dizendo que as cousas “cuja utilidade é nula e a raridade extrema são de preço inestimável”, ele diz apenas que o valor em troca não é senão a raridade. “Raridade extrema e utilidade nula”, é a raridade pura. “Preço inestimável” é o máximo de valor permutável, é o valor permutável em sua pureza. Estes dois termos, ele os põe em equação. Assim, valor permutável e raridade são termos equivalentes. Chegando a estas pretensas “consequências extremas”, o sr. Proudhon levou ao extremo, com efeito, não as cousas mas os termos que as exprimem, e com isso faz mais uma demonstração de retórica do que de lógica. Ele encontra as suas primeiras hipóteses em toda a sua nudez, quando pensa ter encontrado novas consequências. Graças ao mesmo modo de proceder, consegue identificar o valor útil com a abundância pura.

      Depois de ter posto em equação o valor permutável e a raridade, o valor útil e a abundância, o sr. Proudhon fica todo espantado por não encontrar nem o valor útil na raridade e no valor permutável, nem o valor permutável na abundância e no valor útil; e vendo que a prática não admite estes extremos, ele não pode fazer outra cousa senão acreditar no mistério. Existe para ele preço inestimável, porque não existem compradores, e ele não os encontrará jamais, enquanto fizer abstração da procura.

      De outro lado, a abundância do sr. Proudhon parece ser qualquer cousa de espontâneo. Ele se esquece inteiramente de que há pessoas que a produzem e que é do interesse dessas pessoas jamais perderem de vista a procura. De outro modo, como o sr. Proudhon teria podido dizer que as cousas que são muito úteis devem ter preços muitos baixos e mesmo não custar nada? Ele deveria ter concluído, ao contrário, que é preciso restringir a abundância, a produção das cousas muito úteis, se se quiser elevar os preços das mesmas, o valor de troca.

      Os antigos vinhateiros da França, ao solicitarem uma lei que proibisse a plantação de novas vinhas, os holandeses, ao queimarem as especiarias da Ásia e ao arrancarem as cravoarias nas Molucas — queriam somente reduzir a abundância para elevar o valor de troca. Em toda a Idade Média, quando se limitava por leis o número de companheiros que um mestre podia empregar ou o número de instrumentos que podia utilizar, agia-se segundo este mesmo princípio (Ver Anderson, História do Comércio).

      Depois de ter apresentado a abundância como valor útil, e a raridade como valor de troca — nada mais fácil do que demonstrar que a abundância e a raridade estão em razão inversa — o sr. Proudhon identifica o valor de utilidade com oferta e o valor de troca com procura. Para tornar a antítese ainda mais explícita, ele faz uma substituição de termos pondo “valor de opinião” no lugar de valor permutável. Vemos assim que a luta mudou de terreno, e temos de um lado a utilidade (o valor em uso, a oferta), de outro a opinião (o valor permutável, a procura).”

  2. Parabéns pelos comentários

    Não posso deixar de cumprimentá-los pelos excelentes comentários, vocês certamente enriqueceram a discussão. Num tempo em que as caixas de comentários são o que há de mais podre no mundo, essa troca de mensagens só me dá mais certeza de que o GGN é um portal de alto nível e digno de nossa leitura regular.

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