Claro como o Sol, por Vladimir Safatle

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Ilustração Marcelo Cipis

Jornal GGN – O professor de filosofia da USP, Vladimir Safatle, em sua coluna na Folha, aponta para o fato de que já estamos a léguas fora do que seria até mesmo uma democracia liberal. E, é claro, há uma diferença estrutural entre cinismo e hipocrisia. 

A hipocrisia, diz Safatle, é uma operação de mascaramento de intenções. Utiliza-se proposições socialmente compreendidas como corretas mas mascarar interesses incofessáveis. Assim, ela impede que as reais intenções sejam enunciadas, escondendo contradições e negando continuamente. Ao expor as reais intenções do enunciador, a hipocrisia é desvelada e as proposições entram em colapso. 

Este foi o modelo da democracia liberal até hoje.

Na outra ponta, o cinismo é uma operação de desvelamento das reais intenções na qual a contradição, mesmo exposta, não produz nenhum efeito. Não adianta expor as contradições, pois as palavras estão lá para serem ignoradas. Neste cenário, todo regime autoritário tem traços cínicos.

E Safatle lança mão de um exemplo. Imagine um recém-eleito à Presidência da República que diga ser a favor da liberdade de imprensa, mas que há a questão da propaganda oficial do governo, que é outra coisa (segundo seu dito). Na mesa, uma afirmação clara de que ele se serviria das verbas oficiais para pressionar setores da imprensa a publicar o que convém e deixar de publicar o que o incomoda.

A diferença entre o agora e o que já foi feito regularmente, é que uma prática foi desempenhada em silêncio, e agora é claramente exposta. Fazer às claras significa que o poder não poderá mais ser questionado em seus interesses e privilégios, diz Safatle.

‘O mesmo acontece quando um juiz mobiliza o país inteiro para a prisão do candidato mais popular de uma eleição, vaza informações de forma deliberada para influenciar resultados da campanha e, ao final, recebe do candidato vencedor —aquele que, por coincidência, foi o mais beneficiado por suas intervenções— um cargo de destaque em seu governo’, diz o artigo.

Ao fim, ele bradará que estará lá para dar continuidade a sua incansável luta contra a corrupção, diz Safatle, sendo que a pior de todas as corrupções já foi feita por ele mesmo. Aquela em que se usa a Justiça para beneficiar explicitamente candidatos que a subjetividade do juiz entende como ‘não corruptos’, mesmo que as notícias mostrem o contrário.

‘Um processo de benefício pessoal tão corriqueiro, mas agora feito de uma forma tão explícita, apenas blinda o poder para, mais uma vez, não ser questionado em seus usos interessados do poder da Justiça’, afirma Safatle.

Mas vai mais longe ao apontar outro caso de cinismo nacional. Quando um país laico tem um novo presidente que, ao ser eleito, grita versículos da Bíblia e coloca o país diante de um macabro ritual de orações, desrespeitando cidadãs e cidadãos que não comunguem de sua fé e que ‘nunca aceitariam ser submetidos por um poder que transforma suas liturgias em tentativa de justificação teológica de sua existência’.

E quem não concorda com a máxima colocada do ‘eu estou aqui porque Deus quis’? Seriam opositores ou infiéis a serem abatidos na próxima cruzada?

Para Safatle, tudo isso demonstra como já estamos diante de um poder que acredita ser capaz de ignorar toda resistência contra sua soberania, que se vende como uma máquina que concentra uma força sem limites cujo verdadeiro objetivo é sua própria perpetuação.

‘Nós já estamos a léguas fora do que seria até mesmo uma democracia liberal, o que dizer de uma democracia efetiva de soberania popular’, finaliza.

Leia o artigo na íntegra aqui.

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

6 Comentários

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  1. Muito humor e amor para contrapor o ódio e o cinismo

    Quem sabe não foi exatamente essa opção pelo cinismo, pelo desvelamento da hipocrisia como uma forma torta de implosão do sistema, que elegeu o fascista? Meus contatos aleatórios com eleitores do personagem fascistóide não permitem essa ingenuidade; cada um representou uma franja dos afetos negativos mobilizados por ele, contraditórios entre si mas com a destruição como fator de unificação: fanatismo pseudo religioso – destruir as diferenças que “ameaçam”, discurso armamentista – destruir o outro “que ameaça”, desejo difuso de mudança apegado à imagem histriônica do fascista para minimizar todas as ameaças diretas feitas por ele – destruir a responsabilidade e a dificuldade de entender política com a escolha de alguém que confirma o desejo de que a vida seja simplificada porque a complexidade é uma “ameaça”. Ou seja, medo e ódio fizeram um casamento arranjado mas a consciência e o desejo frustrado cobrarão seu preço. 

    Infelizmente, acho que a opinião sofisticada do professor – que ainda escreve no panfleto de direita mesmo depois de assumir uma das lideranças da resistência na universidade pública, para mim, um paradoxo que não vou chamar de cinismo nem hipocrisia porque alguém de tão densa capacidade crítica como ele deve ter outros motivos para justificar a aparente incompatibilidade – não explica o que houve nas eleições. É algo mais bruto, mais cru, e acho que nem a gangue do fascista eleito conseguiria explicar, sequer seus eleitores. O voto no fascista obedeceu a dinâmicas que ainda serão por muito tempo desconhecidas, e por serem fluidas, não sistematizáveis. A aglutinação que houve em torno dele não terá sustentação popular porque já há eleitores recusando, por exemplo, a fusão dos ministérios da agricultura e do meio ambiente – não sabiam desse interesse antes de votar? – e terá que necessariamente, como fez o Vampirão, tomar decisões impopulares que farão de suas bandeiras de campanha um curto-circuito à espera de outro mobilizador da decepção e indignação, como foi o caso do fascista em relação ao ForaTemer. 

    O caldeirão de miséria e violência vai saturar. E não haverá hipocrisia ou cinismo que resolvam a crueza da realidade; diante da covardia característica do brasileiro em assumir suas escolhas, o caos é certo e a existência de lideranças sóbrias e confiáveis é o que nos separará da guerra civil. 

    Muita gente votou deliberadamente com ódio e pelo ódio, mas este é um afeto – uma idéia que é importante para o autor do artigo – desagregador, desorganizador da vida social e individual, insustentável sozinho e ainda mais se exposto a outros afetos agregadores e comunitários (carnaval e outras festas públicas, por exemplo, o que reforça o papel da cultura popular como alimento da resistência) e que portanto não poderá ser o eixo de sustentação de um desgoverno de um país em crise. 

    Se a resistência e a oposição souberem mobilizar os que se recusaram a decidir – e decidiram – com votos brancos, nulos e abstenções que chegaram a mais de 30%, não haverá horizonte para que o cinismo substitua o enfrentamento da realidade, baseado em outros afetos, como a solidariedade e a responsabilidade cívica diante da vida comum que a todos interessa. 

    A catarse destrutiva da eleição já passou. Agora é a vez da realidade. E com ela o cinismo não é produtivo nem bem visto, e se houver contraponto e alternativas para disputar o espaço público, ele volta a seu tamanho natural. O cinismo não pode ser o ethos de uma sociedade diversa como a brasileira, e contra ele devemos reafirmar tudo o que o fascismo veio para destruir: solidariedade, busca da igualdade e da justiça social, diversidade cultural, convívio minimamente harmonioso com o que o Outro representa, e com a Natureza que nos permite a existência. Enquanto eles tentam destruir, nós seguiremos protegendo e reconstruindo melhor e mais forte, como a casa dos três porquinhos, rs. 

    [video:https://www.youtube.com/watch?v=Eo4MSBm113g%5D

    https://www.youtube.com/watch?v=Eo4MSBm113g

     

    Sampa/SP, 02/11/2018 – 15:21 (alterado às 15:25).   

  2. Safatle escreveu muita

    Safatle escreveu muita bobagem. Vamos lá:

    (1) O presidente eleito desrespeitou o Estado Laico: Bobagem. Será que se o presidente agradecesse sua mãezinha seria um desrespeito aos órfãos do país? Será que o beijo que ele deu na esposa foi um desafronto aos gays, virgens, celibatários e solteiros do país? O pessoal tem que entender uma coisinha bem simples: O estado é laico, as pessoas não. Apesar de ser católico, eu achei bonito o Bolsonaro (católico convertido ao protestantismo) se lembrar da entidade mais importante para ele naquele momento especial e acharia bacana mesmo se fosse um muçulmano, espírita, sikh, judeu ou qualquer outra religião. Entendam isso de uma vez por todas que a tolerância só vem quando você respeita as preferências do seu próximo.

    (2) Moro está alinhado com Bolsonaro e ele é contra a liberdade de imprensa: Moro é obrigado a ser um juiz no Paraná pelo resto da vida? Se Alvaro Dias ou o Amoedo tivessem vencido o Haddad, provável que o mesmo convite viesse, então o Moro está alinhado com eles também? Soltar a delação do Palocci influencia as eleições mas soltar fake news sobre Caixa 2 às vesperas do 2T não? Esqueceram que o TRF-4 AUMENTOU a pena do Lula? Esqueceram que o Moro/Lava-Jato já devolveram bilhões aos cofres públicos?

    Galera, acordem. Façam uma oposição responsável, não se apeguem a bobagem, porque isso acaba fomentando ainda mais (e com razão) os apoiadores dele e ajudando a dividir o país. Mesmo que a maioria dos jornalistas da Folha sejam gays e tenham se sentido ofendidos que as bobagens que ele falou no passado, algo que 90% dos brasileiros com a idade dele já falou, ele já voltou atrás e pediu desculpas.

    Esse governo tem duas tarefas importantes: unificar o país e ajustar a nossa situação fiscal, então vamos ajudar e fazer uma oposição responsável, como foi no caso da unificaçaõ do ministério do Meio Ambiente e Agricultura.

    Abs

  3. Um acerto e um erro.

    De fato, tanto o cinismo quanto a hipocrisia operam nos acontecimentos descritos por Safatle. Mas como é que se deixou a coisa rolar frouxa nas instâncias do poder se não fosse por conivẽncia, pra não sujar a reputação ou por receio das consequências? Em qualquer lugar as oposições são caladas; as pessoas que reconhecem os equívocos se silenciam; alguns trabalham com mais afinco como se nada estivesse acontecendo – alguns até tem compromissos, sangue nas mãos, já estão implicados, fugir da “quadrilha” é pior. Outros, mais cientes da verdade e zelosos da preservação de si e de outrem, pedem pra esquecer, deixar de lado, fugir, ir para outro lugar. Isto lhe soa familiar? Por isso, não é apenas um problema vindo de uma análise política, das práticas do poder político e de sua “ética”; é uma “história”, uma “antropologia”, cuja construção está em algum lugar, talvez próximo do divino espírito santo e ninguém se reconhece nela. A evitação é o fato político mais importante, aparentemente.

    Deste modo, o erro está em considerar tal atitude dos poderes como algo que não é endêmico na sociedade. Pessoas honestas passam por trouxas, tolos. Alguns falam o que está acontecendo, ninguém ouve ou está disposta a ouvir, são “exagerados”, vão padecer com complexo de Cassandra (mitos gregos são por vezes salutares), poderão até declarar algo verdadeiro, “claro como o sol”, mas quem estará ouvindo? 

    Em momentos anteriores ao nosso, até um pouco “melhores”, isto já acontecia. Mas o grande problema é que as moscas não tinham tamanho de elefantes, como disse um amigo meu, e que completa: depois de tanto tomar porrada, somente uma porrada mais forte poderia fazer a pessoa acordar, mesmo com o risco adicional de ela desfalecer de vez. Apesar da má imagem – que ele mesmo reconhece -, no fundo, o que ele quis dizer é que a violência continuada acaba virando costume, e nem os poderes contrabalançam, e nem quem deveria cuidar da liberdade julga mais com indignação essa situação. 

    A tal ponto que não se sabe se o Boça foi a melhor coisa que poderia ter acontecido. “Nunca fomos tão livres quanto durante a Ocupação alemã”, disse Sartre, não é mesmo?

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