Comentário ao post “O que restou da intelectualidade, por Camila Koenisgten”, por Antonio Uchoa Neto

Quem resiste ao poder de sedução de um meio de massa que transforma você no antigo galã de novelas ou do cinema, repaginado como um consumidor irresistível?

Comentário ao post “O que restou da intelectualidade, por Camila Koenisgten”

por Antonio Uchoa Neto

O que restou da Intelectualidade?

Pouca coisa, quase nada, lampejos.

E, no que depender d’O Algoritmo e seus apóstolos, as redes sociais, nada. Uma vala comum no cemitério.

“Tudo que morre fica vivo na lembrança/Como é difícil viver carregando um cemitério na cabeça”, diria o Bruno, do Biquini Cavadão. Mas hoje nada se enterra, tudo é deletado como num crematório, estamos sendo poupados desse peso na cabeça. Até as coisas que lá deveriam estar vivas estão sendo deletadas.

Freud já notava a esquisitice do judaísmo, em que um Deus escolhia um povo, e não o contrário. Nós, nessa nova e maravilhosa Era Algoritmica, estamos tendo a liberdade de escolher, embora estejamos fazendo essa escolha sem o saber. Estamos preenchendo formulários e pesquisas com nossos gostos, nossas preferências de consumo, estamos desnudando nossos recalques, nossos vícios e preconceitos – tudo isso, quase sempre, sem perceber que o estamos fazendo ao nosso novo Deus, que tudo vê, tudo ouve e tudo recomenda. Onipresente, onipotente, onisciente, exatamente como o Antecessor. Com a vantagem de não ter filho para sacrificar. O Antecessor exigia sacrifícios – ovelhas, pombos, até um ser humano, ainda que tenha sido apenas para teste, e, ao fim e ao cabo, terminar dispensando-o. O novo Deus exige como sacrifício algo bem mais modesto, e, aparentemente, desconhecido ou não utilizado pela maioria: o raciocínio crítico.

É mais ou menos como o Livre Arbítrio – expressão que o cientista maluco Kurt Vonnegut, Jr., não podia ouvir sem sentir urticárias – , em que você tem a liberdade de escolher, mas não tem escolha, como Deus teve: ou você escolhe Ele, ou você cai direto na mão do capeta.

E o capeta, que, verdade seja dita, nunca foi tão feio como se pinta, hoje, na verdade, é a própria beleza, personificada ou objetificada: basta ver a estética das propagandas, antes nas televisões, hoje na internet. Quem resiste ao poder de sedução de um meio de massa que transforma você no antigo galã de novelas ou do cinema, repaginado como um consumidor irresistível?

O antigo telespectador, hoje transformado em protagonista em sua própria telinha, é o alvo e o veículo da internet. Quem teve essa sacada pode não ser um gênio, mas foi muito esperto. Esse processo começou ainda na televisão, com os reality shows, e assumiu sua feição atual, e avassaladora, nas redes sociais, onde todos são seu próprio Brad Pitt, sua própria…Anitta? Nada da aura de inalcançabilidade dos ídolos do passado, da idealização de heróis, isso hoje é cafona, demodê, até a falta de caráter se tornou um ativo valioso e rentável.

Não sei o que restou da intelectualidade. Antes o grosso dos leitores do GGN estava aqui, nos comentários; ainda que as dificuldades técnicas evidentes por que o site passou tenham desempenhado, certamente, um papel ativo no afastamento deles. Mas a TV GGN – que só não tem mais seguidores porque o Nassif, certamente, não se utilizará de artifícios como o clickbait para atraí-los, como já fazem alguns sites e canais de esquerda cujo jornalismo segue sendo de qualidade – já movimenta bem mais os seus seguidores. Talvez porque se refira a uma circunstância citada pela autora desse post, ou seja, “Ao resgatarem Maria da Conceição, vimos que nada substitui a consistência do pensamento, que likes e textos curtos não conseguem soterrar a coerência de quem dedicou uma vida a ensinar e aprender.”

Como competir com a tentação da frase de efeito, sintética, da comunicação rápida do texto curto? Acompanho as lives do Nassif, e já enviei essas comunicações sintéticas. Mas quando vejo o limitador de caracteres diminuindo, diminuindo, até chegar próximo ao zero, desanimo. É como se o limitador de caracteres me dissesse: você não pertence a esse mundo.

O texto “J’Accuse”, de Zola, tem cerca de 13 páginas. Quantas pessoas tem disposição – à falta de palavra melhor – para ler 13 páginas, hoje?

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Redação

3 Comentários

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  1. Excelente argumentação… triste ver que terminamos por repetir, duplicar o que condenamos… há mesmo uma doença da preguiça que incita a não raciocinar, a não “gastar os neurônios”, uma febre de “distração” de afastamento de si mesmo…vamos recuando até o balbuciar da criança?

  2. O texto é inteligente e isso me motiva a comentar. O livre arbítrio sempre tem consequências (boas ou ruins conforme suas escolhas) seja na ótica de Deus ou na dos homens, mas claro o intelectual progressista sempre vai criticar a ótica de Deus, apesar de aceitar a dos homens que rege todas as sociedades civilizadas. Talvez Zola não escrevesse 13 páginas para se posicionar sobre o caso Dreyfus se ele vivesse no século XXI. Convenhamos que a literatura da época era um tanto rebuscada e certamente seria possível expressar sua opinião de forma bem mais resumida. Tenho dúvidas se é necessário que a nova geração tenha disposição para a leitura de um romance russo para resgatar a sua capacidade de pensar. Talvez um desafio para os educadores seja pensar formas de desenvolver o espírito crítico não apesar de… ou contra a… mas “com” as ferramentas disponíveis, redes sociais, etc… as quais, inclusive, regem hoje as relações de trabalho.

  3. Oi Maria Cecilia, muito obrigado.
    Sim, Zola certamente não escreveria um texto de 13 páginas, ele gravaria um vídeo de alguns poucos minutos no canal dele no Youtube! E, em lugar da argumentação sólida, lógica, a exigir capacidade crítica para ser absorvida, bastaria enfileirar uma sequência de impropérios em linguagem destabocada, rápida, ágil e direta, podendo incluir uma teoriazinha da conspiração aqui, uma mamadeira de piroca ali, e pronto: visualizações, likes e compartilhamentos garantidos!
    Em resumo, não há (nem haverá) mais Zola, há somente Olavo, Allan dos Santos, Eustáquio!
    Não concordo com você quanto à literatura, russa, francesa, brasileira, ou qualquer outra; ela só pode ser acusada de maçante, pesada, em comparação com expressão artística de igual natureza: a palavra escrita não é para ser vista ou ouvida, é para ser lida, raciocinada, criticada e, em qualquer caso, absorvida ou rejeitada. Não é uma aventura sensorial como o cinema, o streaming, enfim, todos esses veículos que são a expressão do primado da imagem e do som que o século XX nos trouxe. Pensar, como você sabe, e principalmente pensar com liberdade e autonomia, pode ser algo muito perigoso.
    No mais, concordo com você que a busca por novas formas de expressar e transmitir conhecimento deve ser permanente. Meu medo, em relação às novas ferramentas, e redes sociais, é que essas plataformas tem dono, são patenteadas, servem a interesses específicos. Sabemos quais são; e não são progressistas ou direcionados à busca por uma sociedade mais justa. São a expressão acabada do Capitalismo, da concentração de renda, do consumo – para quem pode concentrar renda, e para quem pode consumir.
    Eu sempre digo, a televisão manipula(va) e condiciona(va), o Google faz a mesma coisa, porémn rastreando e vigiando. O Big Brother de George Orwell era uma força coercitiva, a Internet é uma força sedutora, a quem estamos nos entregando quase sem ter consciência disso. Nossa capacidade crítica, esmagada por décadas de imagens (cinema e televisão) altamente eficazes na comunicação de suas mensagens, hoje está praticamente adormecida. Como diria Machado, dormir é uma forma interina de morrer. Ainda podemos acordar. Mas, se esse despertar demorar muito, poderá ser tarde demais.
    Desculpe o pessimismo.

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