Cracolândias, população sobrante e reformas de base, por Roberto Bitencourt da Silva

Foto El Pais

Cracolândias, população sobrante e reformas de base

por Roberto Bitencourt da Silva

O fenômeno das cracolândias tem se revelado nos grandes centros urbanos brasileiros, como Rio de Janeiro e São Paulo, um tenebroso espetáculo midiático e humanitário. Há anos.

As medidas repressivas e destituídas de qualquer sensibilidade social, adotadas pelo prefeito paulistano, João Dória (PSDB), constituem capítulo mais recente e que incidiram na pauta jornalística, como no debate público.

O perfil das iniciativas levadas a cabo pela gestão Dória é tão grotesco que consegue recordar as diatribes do personagem Simão Bacamarte, de “O alienista” de Machado de Assis.

A diferença, bastante desfavorável ao prefeito, é que o romance foi escrito há mais de cem anos e tinha como pano de fundo certa crítica machadiana ao cientificismo da época, alçado à condição de última palavra e critério de saber e poder.

Até onde se sabe, Dória não é investido de qualquer “autoridade” nesse sentido.

Por outro lado, aspectos de natureza terapêutica, médica e social, recorrentemente, são explorados pelas retóricas de diferentes atores individuais e coletivos mais talhados e competentes para abordar o assunto.

Gostaria, contudo, de chamar a atenção para uma dimensão do problema, que me parece relevante, mas desconsiderada. Trata-se de desafios e dilemas relativos à questão nacional.

Obviamente, não se restringindo, mas representando uma das variáveis condicionantes do problema, as cracolândias são típicas expressões de vidas desesperançadas, sem projeção de futuro e destituídas de qualquer sentido.

Vidas tomadas como “descartáveis”, em função da condição subalterna do Brasil na divisão internacional do trabalho.

As multinacionais dominam a indústria e trazem os seus próprios equipamentos. Outros e amplos setores econômicos, cujos capitais são sediados no Brasil, também operam com a importação.

Ora, esse maquinário, como todo e qualquer artefato tecnológico, corresponde à satisfação das necessidades, aspirações e padrões de vida estabelecidos em uma superfície social singular. Não são objetos neutros.

Portanto, em nosso País, essa tecnologia importada é absolutamente refratária à absorção de força de trabalho. Ademais, desestimula a capacidade de criação nacional própria para atender aos nossos desígnios de domínio técnico-cientifico – amesquinhando a educação básica e superior –, implicando em parca oferta de empregos, sobretudo, marcados por baixa exigência de densidade formativa educacional. Salários igualmente baixos.

Nesse sentido, o subemprego e o trabalho formal precarizado em atividades simples campeia, somando-se ao desemprego e alcançando números que superam bem mais da metade da ocupação dos trabalhadores assalariados do Brasil.

Some-se a isso a concentração fundiária, a ênfase conferida à exportação de produtos primários, retirando possibilidades de vidas dos trabalhadores no campo, expulsando-os para as cidades. Formando, pois, o que o célebre e esquecido “teórico do trabalhismo”, Alberto Pasqualini, nos anos 1950, identificava como triste painel das grandes cidades brasileiras: as “latolândias”.

Grande propriedade rural sob o controle dos latifundiários, desnacionalização do parque industrial e dependência subordinada no terreno tecnológico. Problemas antigos, renitentes, que incrementam, no curso do tempo, os problemas sociais do país.

Com efeito, é essa nossa condição subalterna na divisão internacional do trabalho que gera uma enorme “população excedentária, sobrante”. Como bem chamava a atenção Darcy Ribeiro, não se trata sequer de um “exército industrial de reserva”. É a “ninguendade”, a condição inempregável, o abandono absoluto. Não há indústria. Não há reserva.

A desesperança e a falta de sentido para a vida, a impossibilidade de projetar sonhos a serem realizados, é um dos traços mais duros das realidades de dilatadas camadas do Povo Brasileiro. A falta de oportunidades materiais salta aos olhos mesmo de uma criança.

As cracolândias talvez representem um dos fenômenos mais evidentes. Mas, a gravidez na adolescência, o acentuado desinteresse nos estudos nas escolas públicas da educação básica, são alguns outros fenômenos menos salientes, mas igualmente ilustrativos.

O Brasil é uma covarde máquina de triturar sua gente, para satisfazer altos lucros das burguesias domésticas e alienígenas.

As velhas reformas de base do período do presidente João Goulart, como a reforma agrária e a disciplina do capital estrangeiro, ainda se encontram na ordem do dia. É preciso recuperá-las, para acabarmos com o genocídio e a inútil e desumana gastação das nossas gentes.

Roberto Bitencourt da Silva – historiador e cientista político. 

Redação

1 Comentário

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  1. Comentário.

    Interessante. Como os governos tucanos no estado de São Paulo (tem que dar os nomes, Alckmin, Serra, Covas…) não conseguiram acabar com o megatráfico (tanto faz se o Marcola tá preso ou não), ficou nessa história de mandar porrada no usuário. A satisfação para o cidadão sádico de bem e que vota em tipos como Alckmin é notória. Claro, se deixarmos de lado meia tonelada de farinha que veio de helicóptero pra um bolo que não se sabe pra que festa ia.  Porém, é melhor queimar o mais chato para receber e salvar o santo. Bom, o outro lá, aquilo que tá como prefeito, precisa capinar muito, pois o que tem de canteiro em São Paulo precisando tirar um mato, só de leve, não é brincadeira.

    O médico Alckmin, desconhecendo os princípios mais elementares da terapêutica e da governança… bom, quando vão cassar o diploma de médico dele (será que isto é possível, pergunto-me)… investe mal em inteligência mas uma boa grana em armamento pra mandar porrada. A situação que se monta é o fulano fazer um BO numa delegacia da polícia civil que não tem nem banheiro direito funcionando e esperar que o seguro faça o ressarcimento (ou seja, um caso muuuuito específico), enquanto que tem gente que tira foto na frente de policial militar armado até os dentes (justamente os golpistas que apoiam medidas tucanas, sem o menor embasamento com vistas ao terapèutico).

    Ainda acho que esse golpe se deve a sintomas regressivos de massa, de indivíduos e grupos incapazes de observação das novas perspectivas que foram abertas com Lula e Dilma e a descoberta de que seus valores (materiais, sobretudo, que preconceituosamente entendem como status dentro de uma sociedade de escassez), “classe média”, eram poucos e medíocres dentro do capitalismo. Parece incrível, mas parece que André Gunder Frank é atualíssimo: só faltou falar da “lumpen classe média”, de empregados da “lumpen burguesia” (esta, incapaz de saber o seu papel dentro do capitalismo e sempre nas margens, um capitalismo subdesenvolvido) que clama para que estes defendam seus valores (escassos) duramente conquistados. Os atos na cracolândia seriam fenômenos que reportam àquela situação, numa situação “menor” (sic).   

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