Cyberfascismo. A internet tem nos deixado mais propensos ao fascismo?, por Carlos Henrique Siqueira

Cyberfascismo. A internet tem nos deixado mais propensos ao fascismo?

por Carlos Henrique Siqueira

Timothy Snyder é um dos maiores especialistas em história do Leste Europeu no período entreguerras. Publicou dois excelentes livros sobre a 2º Guerra Mundial na região, incluindo Terra negra. O Holocausto como história e advertência (Companhia das Letras, 2015), obra que apresenta uma interpretação bastante inovadora sobre o papel do Estado nas práticas do genocídio judeu.

Mas desde a conturbada eleição de Trump e a interferência da Rússia no pleito, ele tem se dedicado a refletir sobre as inter-relações entre a ascensão do autoritarismo na Europa oriental e nos EUA, com especial destaque para o papel que a Rússia desempenha nessa questão.

Ele já lançou dois livros com essa preocupação: Sobre a tirania. Vinte lições do século XX para o presente (Companhia das Letras, 2017) e The Road to Unfreedom: Russia, Europe, America (Tim Duggan Books, 2018).

Recentemente, ele abriu um canal no Youtube onde tenta decompor seu argumento sobre os motivos e o contexto da ascensão do autoritarismo no mundo Euro-americano em uma série de vídeos, cada um deles tratando de uma faceta desse fenômeno. Segundo ele, trata-se de um conjunto de argumentos que ele vem desenvolvendo para um novo livro.

Em um dos vídeos mais instigantes da série, chamado “Cyberfascismo”, Snyder problematiza o papel da internet e das redes sociais na crise política contemporânea. Como base de seu argumento, ele parte da observação de que novos meios de comunicação tendem a atuar como forças disruptivas na sociedade. Embora os livros pareçam hoje relativamente inofensivos, o historiador americano nos lembra que a invenção da prensa com tipos móveis, por exemplo, responsável pela proliferação dos livros e, mais tarde, da imprensa, contribuiu enormemente para as profundas transformações da Europa nos últimos 400 anos.

A popularização da Bíblia, para ficar no caso mais evidente, alimentou a Reforma Protestante que, por sua vez, desaguou em guerras civis entre católicos e protestantes na França, Bélgica e Inglaterra. As guerras civis na Inglaterra, por exemplo, desafiaram o poder divino dos reis e, pouco a pouco, erodiram as bases do Absolutismo.

O Humanismo europeu, baseado na circulação de ideias em forma impressa, como livros, cartas e panfletos, muitas vezes lidos e debatidos em espaço público, acabou por encurralar o poder tirânico da Igreja e da realeza.

As Revoluções Francesa e Americana foram tributárias de todas essas disrupções provocadas pelas novas formas de circulação da informação, sendo inspirada por e gerando grandes textos transformadores como a Declaração de Independência dos EUA e a Declaração Universal dos Direitos do Homem. Sem contar os impactos sociais, políticos e culturais provocados por livros como O Capital e A Origem de Espécies, para ficar nos exemplos mais óbvios.

Portanto, quando Snyder fala da internet seu argumento não é meramente tecnofóbico. Ele apenas constata que a internet provocou uma disrupção profunda, com impactos globais, nos últimos anos, especialmente após a disseminação da lógica de comunicação das redes sociais.

Tal disrupção, segundo Snyder, consistiria em um conjunto de elementos que tento resumir e ilustrar nos cinco pontos abaixo, buscando reenquadrá-los em nosso contexto nacional:

  1. A erosão da factualidade: As redes sociais dificultam a construção de opiniões baseadas na factualidade. Cada uma das bolhas geradas pelos algoritmos para agregar semelhantes e vender publicidade, cria um universo fechado com autoridades, referências, informações e crenças específicas que impede a construção de entendimentos comuns mínimos sobre o que é um fato e o que não é. Podemos navegar por horas nas redes sociais encontrando palestras, textos, aulas e discussões produzidas por figuras de suposta autoridade ‘demonstrando’ que a Terra é plana, afirmando que nunca houve ditadura no Brasil, e até mesmo ‘provando’ que os homens e os dinossauros viveram na mesma época. 
    O problema dessa lógica auto-referencial criada pelas bolhas é que sem factualidade não há como construir diálogos públicos com bases comuns. Da mesma forma, não há como questionar o poder sem uma referência do que é verdade ou não, ou sobre o que é real ou não. Recentemente, por exemplo, Michel Temer tentou justificar o argumento de que o desemprego havia diminuído justamente porque as pesquisas mostravam que ela havia aumentado.
  2. Reforço das crenças: Também como resultado da governança por algoritmos, as redes sociais nos retro-alimentam com conteúdos que já estão de acordo com o que pensamos. Isso reforça a impressão de que nossas informações são inquestionáveis e amplia a indisposição em reconhecer fatos e ideias que não se coadunam com nossas crenças prévias. Esse é um dos motivos pelos quais o combate a desinformação é tão pouco efetivo. Pois a cada iniciativa de checagem e retificação podemos encontrar nas redes sociais inúmeras outras referências que reforçam a crença naquilo que já acreditamos.
  3. A lógica do amigo/inimigo: As bolhas criadas pelas redes sociais favorecem a lógica do amigo/inimigo, ou seja, a lógica anti-política teorizada pelo jurista nazista Carl Schmitt, de que a política é constituída pela divisão entre aqueles que estão do meu lado e aqueles que lutam contra mim. 
    Nessa lógica, os que discordam de mim não são vistos apenas como adversários políticos, mas são ameaças a minha própria existência e, portanto, devem ser eliminados. Nesse sentido, podemos entender os bloqueios nas redes sociais como uma metáfora para essa tarefa de eliminação do inimigo. 
    As bolhas, portanto, dificultam o estabelecimento de relações para além do nosso grupo, e a obtenção de informações que desafiam nossas crenças pré-estabelecidas. Ao ajudar a reproduzir uma comunidade que exclui visões opostas, passamos a considerar quem discorda de nós como tendo menos valor e, no limite, como alguém que age de má fé para destruir o nosso mundo.
  4. A redes sociais como modelo publicitário: As redes sociais seguem um modelo publicitário. São plataformas utilizadas para expor pessoas a conteúdos que foram pagos por empresas. Como diz o ditado do mundo da publicidade, “se você não paga, você é o produto”. Assim, a forma de circulação dos conteúdos funcionam na lógica do espetáculo publicitário.
    Os conteúdos políticos que circulam nas redes sociais não escapam dessa lógica. Passamos a esperar das intervenções políticas nas redes sociais não tanto ideias, mas espetáculos e entretenimento. No caso brasileiro vemos isso claramente na lógica das “lacrações”. O que são as “lacrações” se não política em forma de espetáculo nas quais ideias estão em segundo plano e o entretenimento em primeiro? Os memes estilo “Thug life” , usados à exaustão tanto pela pela direita quanto pela esquerda provam o quão pervasiva se tornou a lógica da discussão política como entretenimento nas redes sociais.
  5. A indiferenciação entre o público e o privado: Nossas opiniões, avaliações e críticas sobre política passaram a ser recebidas, processadas e emitidas como se estivéssemos no espaço privado. Em nossas trocas e interações com amigos e família no espaço privado não é incomum falarmos sobre temas importantes de forma descuidada, nem sempre com as melhores informações, às vezes de forma puramente especulativa, ou excessivamente passional. Nada impede que numa conversa privada com amigos exageremos, falemos palavrões, ou nos refiramos a outras pessoas de forma inapropriada.
    Quando debatemos política no espaço público, por outro lado, não temos o mesmo direito de ser descuidados como no espaço privado. No espaço público não há como conduzir debates propriamente políticos sem o devido respeito com os interlocutores e suas opiniões. Não que o espaço público deva ser completamente asséptico. Nas discussões públicas sempre há espaço para a ironia, para o confronto mais ríspido ou para o humor. No entanto, não se pode abrir mão do compromisso com o rigor, com a informação correta e com a verdade ao preço de perder as referências da factualidade que limitam o que podemos dizer sobre algo.
    No entanto, no espaços das redes sociais, onde a diferença entre o público e o privado parece ter colapsado é comum encontrar discursos políticos baseados em conhecidas mentiras, na disseminação de falsidades, em opiniões emitidas com base em xingamentos, vulgaridades, gritaria, surtos de raiva etc.
    As opiniões políticas propagadas a partir desses estados emocionais básicos tendem a proliferar nas redes sociais porque encontram ressonância em outras pessoas que também preferem apelar para emoções básicas ao invés de se comunicar com base em um discurso argumentado com base em fatos e informação.

O diagnóstico de Snyder parece apontar para um reforço das características fascistas no modo como nos relacionamos nas redes sociais. Mas, embora suas observações sejam uma contribuição relevante para o tema, elas são insuficientes e deixam de lado outros elementos igualmente relevantes.

Primeiro, seria preciso considerar os efeitos das políticas de austeridade. Elas parecem ampliar de maneira sensível a hostilidade à democracia e às instituições democráticas. O corte de gastos públicos, o desemprego, a precariedade das relações de trabalho, a deterioração dos serviços oferecidos pelo Estado, a retração da renda, a falta de perspectiva de futuro e a sensação de estagnação decorrentes de tais políticas são lidas por parte do público como o fracasso da própria democracia e não do capitalismo.

Em muitas partes da Europa e da América Latina, por exemplo, essa situação tem colaborado para a emergência de forças políticas abertamente anti-democráticas.

Em segundo lugar, ainda tomando como América Latina como exemplo, é preciso considerar o papel das forças conservadoras e das elites capitalistas nacionais em sabotar governos progressistas e com políticas distributivas.

Portanto, embora seja interessante aprofundar a discussão lançada por Snyder sobre o fortalecimento do fascismo como resultado das novas formas de circulação do discurso público surgidas com a internet, há inúmeros outros aspectos que ajudam a completar o quadro de razões que reforçam o aumento de forças políticas autoritárias ao redor do mundo.

Redação

1 Comentário

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  1. China

    Who controls the past now controls the future
    Who controls the present now controls the past
    Who controls the past now controls the future
    Who controls the present now?

    (Quem controla o passado agora controla o futuro
    Quem controla o presente agora controla o passado
    Quem controla o passado agora controla o futuro
    Quem controla o presente agora?)

     

     

    Testify

    RATM

    Já questionaram a razão pela qual a China controla a informação (e a dessiminação de fakes) de forma a manter o status quo.

    Ou por que na época da DDR os potentes canais de TV da RFA ?

     

     

     

     

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