DesHistória Brasil, por Marcia Denser

DesHistória Brasil

por Marcia Denser

Para além do cotidiano Brasil, prossigo tentando me aproximar dum verdadeiro panorama do país, revelado ao se colocar em perspectiva histórica todo som e fúria de vilezas e interesses mesquinhos – eternamente silenciando o bem comum – e que constitui secularmente o anfiteatro de ações e torpes manobras de nossas elites cleptocráticas que reiteradamente colocam em colapso (e fora da vista do grande público) um projeto de país.

Ou ex-país, ou semipaís, ou região, segundo Roberto Schwarz. Sem contar que a estupidez cresce no buraco deixado pela ausência de pensamento de nossos intelingentérrimos, buraco aliás recheado por todos os clichês encontráveis em qualquer almanaque de globalização, algo como uma cosmogonia da asneira com legendas em português neoliberal.

Neste ensaio, vou me embasar num artigo publicado na revista Margem Esquerda 14, Dos estudos da formação à greve como formação de Luiz Renato Martins, que trata da perda do sentido histórico dos atos culturais e artísticos, do naufrágio que engoliu, tanto países periféricos como centrais, quando submetidos à hegemonia do discurso neoliberal anglo-saxão, engolfados pela idéia do “pensamento único”, ou seja, pelo esquecimento da noção de luta de classes.

Em suma, nós, brasileiros acreditamos no “fim da história” –  a nossa, a história da nossa cultura. Que doravante deveria incorporar-se ao universo dos negócios em geral, e do capital fictício em particular. Todos globais. Assim, há dois sintomas desse processo:

1) A extinção da função crítica das artes e do pensamento em relação ao todo do processo histórico moderno;

2) O papel paradigmático, central e inovador desempenhado pelas artes e pela arquitetura nos novos negócios, especialmente financeiros e imobiliários. Fazendo raporte a Otília Arantes de “A ‘virada cultural’ do sistema das artes”, a questão é que a etapa histórica da chamada formação nacional (e seu diagnóstico histórico-crítico), ao lado da criação dos mercados nacionais, entrou em retrocesso com o advento do modelo neoliberal, o que deu origem ao complexo de sintomas que, no Brasil, denomina-se desmanche.

Explica-se o termo formação como construção de uma tradição, não no sentido conservador, mas sim modernizador e transformador; no limite, inventar uma tradição num contexto onde esta não existe, no sentido de Mário de Andrade de tradicionalizar o presente, isto é, traçar um passado a partir de um presente, empresa levada à cabo pela arte moderna brasileira.

Aliás, o tema formação absorve a produção, a crítica e a discussão das artes e das ciências nas décadas de 1930 a 1950, sempre vinculada à preocupação com a construção da nação: o que é, de onde vem e para onde vai a formação histórica chamada Brasil? Passando por Gilberto Freyre (Casa-grande & Senzala – 1933), Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil – 1936) e chegando a Caio Prado Júnior (Formação do Brasil Contemporâneo) que conclui sombriamente: “nascemos para atender ao mercado europeu e nada mais”.

Razão pela qual nossa intelectualidade crítica sempre foi consciente de que não se tratou jamais de construir uma sociedade na América portuguesa, mas sim uma unidade produtiva avançada da maior rentabilidade. Por exemplo: o tráfico negreiro foi o negócio mais rentável do mundo enquanto durou. Até porque a produção de açúcar e extração de ouro seriam impensáveis sem ele. Inclusive a idéia de formação de uma sociedade existia mas como objetivo futuro, já que a nação não existia.

O Brasil, que não era uma nação, tinha raiz no trauma de que se constituíra no país o maior e mais duradouro campo de concentração da história do Ocidente. Basta comparar a escala das monstruosidades de Dachau ou Auschwitz, que duraram menos de quinze anos, com o genocídio africano no campo de concentração brasileiro, efetivado em toda a extensão de seu território, incluindo todo o espaço produtivo e doméstico, não só na colônia como também no Brasil independente – algo que já dura cinco séculos.

Ainda na década de 1950, com a Cepal de Celso Furtado e Raul Prebish, descolonização e formação passaram a ser entendidas como crítica e superação do subdesenvolvimento. A esta altura entra Antonio Cândido (Formação da Literatura Brasileira – 1959) cujos estudos o levam a afirmar que se os estrangeiros esperavam da literatura brasileira somente a apresentação de temas exóticos (tucanos, zés cariocas, bananas, garçons & macacos ) é porque a abordagem dos problemas humanos fundamentais era um privilégio das velhas literaturas (e culturas centrais).

O mesmo que dizer para entregar ao consumo externo todas as nossas riquezas naturais deixando a indústria para os de fora, cujos produtos deveríamos importar. Todos. Desde parafusos ao MacDonald’s, passando pelas idéias, teorias, filosofias e culturas centrais.

Mas a cultura – não a economia – é infra-estrutura¹. Para as nossas elites cleptocráticas, a ausência de formação simbólico-cultural da nação, esta carência infra-estrutural é o objetivo central e necessário para a “manutenção sustentável” da fazenda-modelo ou campo de concentração ou ex-país ou semipaís ou região.

E campo de concentração precisamente no sentido daquela piadinha nazista: eles (o povo) acampam e nós (a elite) concentramos. Concentramos o que?As rendas. Todas. E esta clareza básica detona qualquer ilusão.

A vida mental brasileira aponta para uma constante: a mania das modas culturais. Sílvio Romero já notara isto no século XIX: na história do desenvolvimento mental do Brasil há uma lacuna: a falta de seriação nas idéias, a ausência de uma genética, um autor não procede de outro, um sistema não é conseqüência de algo que o precedeu.

A dependência de autores e agentes culturais estrangeiros corresponde à necessidade das elites de se pautar pelo mercado externo. A conseqüência é a permuta incessante de referências, sem reflexão crítica ou debate, motivada pelo desejo de reconhecimento e atualização cosmopolita.

A propósito, já comentava Paulo Emílio Salles Gomes (1973): não somos europeus nem americanos do norte  mas, destituídos de cultura original, nada nos é estrangeiro, pois tudo o é. A penosa construção de nós mesmos se desenvolve na dialética rarefeita entre o não ser e o ser outro.

Segundo Antonio Cândido, as elites periféricas se desenvolvem em termos “desiguais e combinados”, isto é, sem serem acompanhadas pelo resto do país: a formação do nosso sistema literário, concluída em 1970 com a obra de Machado de Assis, coexistiu com a escravidão.

À complexa questão histórica agrega-se hoje a aguda problemática contemporânea do desmanche, cuja marca é o abandono do juízo histórico reflexivo que engendrou o ideal da formação. O abandono de tal juízo e da proposição crítica de futuro como projeto distinto da atualidade – em favor da solução de um declarado estado de emergência – significa o estabelecimento permanente de um estado sem nenhuma outra prioridade que a do “salve-se quem puder”, sob a lei do mais forte.

E já que estamos tratando de sistemas simbólicos, por aí então se entende a ausência absoluta de reconhecimento/identificação, por parte da elite nacional, da projeção do ex- presidente Lula e elevação do status do Brasil no contexto internacional: mutatis mutandis, ocorreu o desenvolvimento “desigual e combinado” (formulado por Cândido) do presidente (identificado com o trabalhador analfabeto nordestino, a base da pirâmide social) e do Brasil (pré-fixado no inconsciente colonial como ex-país ou semipaís ou região ou campo de concentração) só que, desta vez, em sentido inverso, isto é, sem serem acompanhados pela elite do país.

Então aconteceu o Golpe de 2016.

Marcia Denser é escritora e jornalista

¹ ver Paulo Arantes em nota da rodapé in Zero à Esquerda (2004). 

Redação

6 Comentários

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  1. Ler e reler.

    Denso e apropriado. Pouco acessível. Mas cirúrgico.

    O nosso holocausto sempre foi negado.

    Bom ler isso aqui. Recoloca ordem nos fatos.

    Clap! Clap!

  2. Grande Márcia Denser

    Grande Márcia Denser, adoro participar participar  que ela ministra via Skype

    E também do grupo Estúdio de Criação Literária (https://www.facebook.com/groups/904747589581495/?fref=nf)

    Resultado de busca para deseshistorias e marcia denser

    http://www.releituras.com/mdenser_menu.asp

    Nunca confessei a ela e nem sei se ela gostaria de ouvir isso:  participar das oficinas tem funcionando, pelo menos para mim, como cura………tornei-me mais pé no chão…..depois do processo denseano observo o dia a dia com mais perspicácia, o que nenhum terapeuta conseguiria….hoje fico bobo de ver a pessoa que escreve laudas e mais laudas sobre um gato,,…ou sobre suas memórias….ou sobre o interior de um ônibus no retorno prá casa….

  3. Sobre o Brasil e sua historia

    O que ha no Brasil é uma lavagem de cérebro tal que as pessoas acreditam piamente no establischment. Em geral não lêem e quando fala-se nesses termos sobre o Pais que temos, elas riem e dizem que isso é coisa de esquerdista. Para mudar o Brasil, volto a insistir, tem que ir na base. Mas não é so na questão de acesso à universidade. Eh reformar o ensino basico.

  4. Há dois séculos, José

    Há dois séculos, José Bonifácio já anteviu com clareza o principal obstáculo no caminho da conversão do “campo de produção” brasileiro em uma Nação decente: o regime de escravidão e seus beneficiários. Infelizmente, para o futuro que é o nosso presente, o primeiro Pedro logo tratou de afastá-lo, preferindo acomodar-se e fazer acordos e negociatas com a casta escravocrata que mandava e desmandava no Brasil – e continua a fazê-lo, dois séculos depois, com nova roupagem, agora, a da financeirização “globalizada” improdutiva. Hoje mesmo, aqui no GGN, André Araújo nos brinda com outra oportuna exposição sobre os efeitos desse colonialismo mental mencionado pela autora, na “nova” geração de serviçais da alta finança global.

    A casta dominante brasileira jamais teve qualquer noção de um projeto nacional de desenvolvimento, e nisto podem inclur-se todos os governos da “Nova República”, a maior farsa da história brasileira. Com as devidas distinições, todos eles, os do PT inclusive, tinham apenas projetos de poder com o propósito de nele permanecer pelo maior período possível. Neste contexto, o golpe de 2016 foi apenas uma pugna intestina da casta. Se tivemos um projeto nacional, no período 1930-1980, isto se deveu à iniciativa de estadistas como Vargas e JK e às condições favoráveis aproveitadas e criadas por eles para colocá-lo em marcha, tendo sido mantido, em certa medida, pelos governos militares, em especial, o de Geisel. Com essas exceções, os demais governantes agiram como meros chefes de poder, que, em em menor ou maior grau, trataram de preservar a agenda geral da casta, despejando essa ou aquela migalha para esse ou aquele setor da sociedade.

    Como o sistema político-institucional existente, por mais disfuncional que se apresente, não pode ser reformado por dentro, a construção da Nação decente à qual quase todos aspiramos terá que ser feita de baixo para cima, a partir da base da sociedade, algo que jamais foi conseguido por aqui antes. Mas só assim, será possível forjar-se uma “massa crítica” de cidadania consciente e menos iludida com miçangas ideológicas importadas, capaz de viabilizar uma imprescindível reconstrução do arcabouço político-instituiconal, que possa consolidar o Bem Comum como princípio fundamental das políticas públicas. O problema é que não há uma “receita de bolo” nem prazo para isso. 

     

  5. entra e sai de governos…

    sem que nenhum perceba que mais importante que preencher um vazio é detectar e corrigir as instabilidades no seu interior………………………………

    a pior coisa que se pode fazer para piorar o vazio a que me refiro é fragmentá-lo sem as devidas alterações ou correções

    ou fragmentá-lo por igual………………………….

    Como educar é ensinar a viver, começamos a errar já no ensino básico, com relação à massa ou aos pobres, pois é praticamente impossível ensinar a viver quem nunca viveu bem

    Cieps foram criados para interromper esta sina, pelo menos durante o período em que as crianças por lá estivessem, mas nem isso foi permitido pelos até hoje seguem focados apenas em benefícios particulares

    ou pelos que sempre legislaram em causa própria, motivo de não se ter até hoje um projeto nacional

     

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