Ecologia do poder II, por Gustavo Gollo

Costumamos supor que o poder político é exercido por aqueles que ocupam altos cargos em instâncias governamentais ou outras esferas influentes.

Ecologia do poder II, por Gustavo Gollo

A sociedade produtora de lixo

Toda a argumentação abaixo pressupõe a compreensão de replicadores similares aos vírus que, apesar de serem criaturas inertes, minúsculos cristais, de algum modo acabam por compelir seus hospedeiros a reproduzi-los e contaminar outros hospedeiros, perpetuando-os, através de estratégias descritas sob o rótulo “fenótipo estendido”.

Tudo aquilo que se repete pode, de algum modo, ser encarado como um replicador.

A confecção de uma réplica exige gasto de energia e informação sobre a entidade replicada.

Toda a energia consumida pela humanidade é utilizada para a confecção de replicadores. (Essa constatação é fundamental para as conclusões abaixo, devendo ser bem compreendida. Utilizamos energia para a produção de bens e para o consumo desses bens e geração de lixo. Tanto os bens, quanto o lixo são replicadores.)

Costumamos acreditar que somos indivíduos, que estamos no comando, e que decidimos que bens devem ser produzidos, assim como a destinação de toda a energia consumida. Sob ponto de vista alternativo, no entanto, são os replicadores que nos induzem a replicá-los, de modo análogo ao que nos fazem os vírus. Sob tal descrição, os replicadores estão no controle, usurpando toda a energia para a utilização em sua replicação; assim, de um modo ou outro, analogamente às infecções virais, somos compelidos a replicar criaturas inertes que, desse modo, perpetuam a infecção. Sob esse ponto de vista, assemelhamo-nos a zumbis comandados por criaturas inertes. (Tal inversão de ponto de vista explica, entre outras coisas, porque somos compelidos a fazer coisas que não queremos fazer, como comer excessivamente, ou gastar tempo excessivo em jogos inúteis e atividades que nos desagradam).

Temos descrito a nós mesmos como uma sociedade de consumo. O verso dessa descrição nos revela sermos também a sociedade produtora de lixo. Tudo o que consumimos vira lixo. Sob ponto de vista bastante elucidativo, somos controlados pelo lixo, fonte de todo o poder.

O poder político

Costumamos supor que o poder político é exercido por aqueles que ocupam altos cargos em instâncias governamentais ou outras esferas influentes. A suposição é correta, mas, naturalmente, parcial e incompleta, como qualquer outra. Certa inversão de pontos de vista revela-nos visões que se encontram ocultas sob esse ângulo tradicional.

Se atentarmos para o fato de que os fluxos energéticos são direcionados para a replicação dos artefatos em geral, do lixo, da informação e de tudo o que se replica – consideração garantida pela seleção natural –, percebemos que tais indivíduos têm tanto poder de decisão sobre tais infecções quanto uma pessoa gripada sobre seus espirros, ou processos que o induzem a eles.

Quanto mais próximo dos grandes fluxos de poder, mais sujeitos a eles encontram-se os indivíduos, mais fortemente escravizados, sob tal aspecto. É por isso que o poder corrompe.

A constatação acima, embora bastante óbvia, parece-nos paradoxal e absurda, uma vez que todos nós nos esforçamos por enriquecer, galgar posições sociais e nos inserirmos exatamente em tais posições, fugindo com todas as nossas forças de condições que nos rebaixam socialmente e nos distanciam de tais fluxos.

O paradoxo acima é esclarecido pela constatação de que a escravização que nos atemoriza é aquela exercida através da força, da imposição do desejo de outro contraditando o nosso. Não nos opomos, ou, ao menos, não nos revoltamos contra a sedução. Analogamente a formigas, não objetamos a sermos escravizados caso tenhamos sido seduzidos, enganados, controlados e levados a agir sob o comando de outras criaturas com o propósito de replicá-las.

Tanto a seleção natural, quanto a dinâmica dos sistemas complexos, no conduz à insatisfação caso nos encontremos em um nível social baixo, fazendo-nos almejar galgar degraus na hierarquia social, ansiando assim por atrelarmo-nos cada vez mais fortemente aos fluxos de poder. (Algo bastante similar ao princípio de Bernoulli em fluidos ocorre com todos os que se aproximam dos fluxos de poder).

É provável que nosso nível de insatisfação geral aumente enquanto progredimos socialmente, tornando-nos mais infelizes à medida que isso acontece. Mesmo que isso ocorra, não direcionaremos nossa insatisfação à ascensão social, e a nossa aproximação aos fluxos de poder, mas atribuiremos nossa insatisfação a outras origens, quaisquer que sejam elas. Podemos acreditar, por exemplo, que nossa insatisfação decorra do fato de não conseguirmos consumir – transformar em lixo – tantas coisas quantas gostaríamos.

Assim, de um modo ou outro, acreditamos ser desejável aproximarmo-nos mais e mais dos fluxos de poder que nos escravizam, e nos entregarmos a seu jugo, enquanto todo o poder político está sujeito aos fluxos de poder emanados pelos replicadores com o propósito de sua replicação.

Sujeitos, todos, às leis de seleção natural, replicadores se perpetuam por se replicarem, enquanto a não replicação implica seu desaparecimento.

Sob esse ponto de vista, o poder político destina-se à otimização da produção de lixo e artefatos em geral – ou aumento do PIB, conforme o linguajar usual.

Governos e grandes empresas multinacionais

Até meados do século XX, os grandes centros de poder eram definidos pelos estados nacionais. O crescimento das grandes empresas multinacionais alterou esse quadro, transformando-as em leviatãs maiores que os estados.

Hoje, os maiores fluxos de poder originam-se dos grandes conglomerados capitalistas que levam de roldão os governos nacionais, conduzindo-os todos, a metas completamente disparatadas, quase suicidas, se pensadas como decisões de grupos populacionais.

Como esse poder é controlado pela multidão de replicadores ansiosa pela própria replicação e não pelas pessoas, seus resultados conflitam frequentemente com os anseios das populações. Resulta daí que populações de zumbis podem empossar governos decididamente empenhados em dirigir os recursos ao grande capital, em detrimento das pessoas.

Desse modo, a abordagem ecológica do poder esclarece não apenas atitudes paradoxais individuais, como a glutoneria desenfreada contrária a nosso desejo racional, mas paradoxos sociais; populações são ainda mais facilmente controláveis que pessoas individuais.

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Gustavo Gollo é multicientista, multiartista, filósofo e profeta.

Redação

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