Eu moro, tu talvez, por Cristiane Alves

Eu moro, tu talvez

por Cristiane Alves

Vou falar brevemente sobre um assunto longo. 

Morar no Brasil não é negócio para leigos, só os fortes sobrevivem.

Primeiro que a história do Brasil se fundou sobre desocupações coercitivas e invasões supervisionadas. Os índios deveriam poder exigir indenizações, mas como bandido bom é bandido institucionalizado, roubar, ferir e matar com anuência do estado é até bonito. É digno de monumento e nome de rodovia, que miséria pouca é bobagem.

Hoje a impressão que dá é que indígenas são os invasores dessa terra, gente preguiçosa que não expropria, nem rouba, gente que vive do necessário. Onde já se viu?

Com o tempo, os ricos colonizadores, homens trabalhadores que desbravaram esse país selvagem com muito sangue, suor e lágrimas alheias (que trabalhar era pecado pra quem tinha poder, e ainda é). Índio foi escravo. Pensa na glória de poder trabalhar para construir patrimônio alheio, em terra sua e com esforço seu, mas sem receber nada em troca. Era muita benção.

Mas índio não é besta, entendeu logo que benção demais Tupã desconfia, vazou pro mato, que de mato colonizador não entendia.

Português trabalhador e esforçado, merecedor de toda glória por seu esforço próprio, foi buscar escravo em outro continente, que escravo africano não conhecia esconderijo daqui, cativo vinha, cativo ficava. E de cem em cem anos a senzala foi moradia de muitos, do berço ao túmulo. Penso que do ponto de vista de muitos o esforço negreiro nunca foi suficiente para o mérito de morar 

A abolição gerou um problema urbano. Negros forros não eram absorvidos pelo mercado de trabalho remunerado. Uma multidão de mendigos e prostitutas afrodescendentes invade as cidades. Trabalho negro era pago com comida e senzala, os que recusavam tamanha generosidade não moravam, nem comiam. Mendicância e vagabundagem pioradas pela facilidade de acesso à bebida destilada de cana. Eis mais um bônus da meritocracia escravocrata. Prostitutas, bêbados e mendigos, desabrigados e vagantes, a violência explode, mas a culpa é da vítima, nunca da sociedade. Todos poderiam viver “felizes”, alimentados e explorados até a morte, nunca podendo ser donos de si ou de sua vontade, nunca sendo gente.

Então para não premiar vagamundos que se recusavam a trabalhar de graça, apanhar e ser violentados, eis que chegam os imigrantes, italianos em maioria, pobres e fugidos das guerras, descalços e com baixíssima escolaridade. Todos ávidos por fazer fortuna e ganhar a América, dão de cara com patrões acostumados com os ganhos da escravidão, séculos de ensinamentos onde quem pode manda e quem não pode apanha e obedece. Alguns foram admitidos em regime de escravidão, nada comparado com chibata e tronco porque a ciência atestava que brancos eram menos tolerantes a dor. Trabalhavam e deviam o alimento, o calçado, o tecido, a guarida, por fim deviam ao patrão a vida. Muitos morreram. 

A agricultura perde importância e as indústrias surgem fumegantes. As cidades crescem. O êxodo rural inunda a cidade de sotaques e gestos estrangeiros. As mansões dos antigos barões do café ficam vazias de dinheiro, pompas e circunstâncias.

A cidade da indústria têxtil não é a cidade das famílias tradicionais da agricultura. Os ricos mudam.

Nas cidades os cortiços aparecem como alternativa ao morar. As antigas mansões são vendidas para o empreendedorismo imobiliário. Os remunerados trabalhadores italianos passam a subdividir com suas familias e amigos o espaço que antes era ocupado por uma única familia abastada. As mansões subdividem-se em pequenas residências, as vilas operárias. Os cortiços.

Os imigrantes donos dos meios de produção e capital compravam as bodegas, os armarinhos, viravam caixeiros viajantes. A cidade prospera, a riqueza muda de mãos. Imigrantes enriquecem com muito trabalho e esforço, mas nunca sem o empurrão do estado que privilegiava o trabalho branco, dificultava e marginalizava o trabalho negro.

Ao negro restava o que a cidade não queria, o barranco, a várzea, o fundo de vale, a favela. A favela foi o gueto negreiro, o benefício do não ver. O salário quando vinha era menor. O emprego quando vinha era pior, a moradia era a que dava.

Com a prosperidade do imigrante e sua consequente inserção na dinâmica social e política brasileira outros patamares foram alcançados. Ficam para trás os cuja discriminação atou os pés com toneladas de dificuldades numa corrida com adversários também desfavorecidos, mas com pés livres.

Hoje temos as antigas vilas de imigrantes ocupadas por migrantes de outros estados, pobres e mal remunerados, os cortiços antigos foram ainda mais subdivididos, inacreditável ver que pessoas se abrigam em espaços tão pequenos. Pequenos, ruins e pagos. Paga-se para morar mal, mas perto de onde se trabalha. 

Outro problema que dificulta a cidadania é trasladar. Quando não se pode usar a cidade, quando ir e vir não é permitido, quando trasladar é caro e segrega não se é cidadão. Cidadania pressupõe fazer pleno uso da cidade.

Então temos que são muito mais cidadãos os ricos, os imigrantes e seus descendentes, que os migrantes e muito menos o são os negros e os seus.

Morar não deveria ser privilégio. Nenhuma necessidade básica deveria ser privilégio. 

Se temos os que roubam para saciar a fome, os que invadem para morar e trabalhar devemos repensar nossos conceitos. Quando viver é privilégio faz-se urgente questionar o sistema. Algo deu muito errado.
Quando morrer por morar é aceitável, justificável e quando as vítimas são culpadas por suas desgraças é imprescindível olhar para o que nos tornamos e pedir perdão porque algo errado não está nada certo.

Talvez o meteoro tenha se recusado a colidir com tão pouco. Não merecemos a dignidade de pertencer ao reino animal.

 

Cristiane Alves

2 Comentários

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  1. Não fosse o Rio de Janeiro, os Índios seriam indenizados

    “Se exacerbarmos a ocupação pretérita, vamos ter que entregar aos indígenas a minha cidade maravilhosa do Rio de Janeiro.” Marco Aurélio de Melo, Ministro do $TF, ao ser questionado por jornalistas sobre o conflito entre arrozeiros e Indigenas, no Norte do País

     

    “Quem me dera ao menos uma vez
    Como a mais bela tribo
    Dos mais belos índios
    Não ser atacado por ser inocente”

    Legião Urbana, Índios
     

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