Há uma topografia do protesto e do voto? Quem é o cartógrafo?, por Eliseu Raphael Venturi

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Dmitriy Razinkov. Ilustração vetorial de topografia¹.

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Há uma topografia do protesto e do voto? Quem é o cartógrafo?

por Eliseu Raphael Venturi

“Uma semana após o terremoto, pessoas ainda ouviam os gritos de centenas de soterrados, provenientes daqueles mesmos escombros. O funcionário da administração municipal, no entanto, mandou isolar a área em torno do hotel, até que lhe informassem que nada mais se movia ali e que mais nenhum som provinha dos destroços” (Thomas Bernhard²).

No 14º dia de uma aterradora “greve de fome nas mãos do STF”³ – completamente silenciada pela grande mídia, quando, em verdade, deveria ser tema de comoção nacional – o Ministro Marco Aurélio, em evento sobre democracia e eleições, quase como que em outro país e território afirmou que “o local próprio ao protesto é a urna”.

Para usar uma expressão popular, ou fazer menção ao título de um livro de José Paulo Paes: basta, então, se juntar “lé com cré” para se deparar com os abismos institucionais brasileiros contemporâneos. Embora o Magistrado, ao que tudo indica, não se referisse ao fato, parece impossível não relacionar as situações.

Pode-se sentir, diante disso, um susto, um amargor, uma ira, uma vergonha: ou tudo junto. E protestar, pode? Nem se for ali, no canto da sala, de preferência virado para a parede e em silêncio. Ou numa câmera hiperbárica. Ou numa câmara de bronzeamento. Ou na cela de uma urna?

O Supremo Tribunal Federal, enquanto instituição, parece ter elaborado novas formas de iludir (e entreter) a população. Se, antigamente, se costumava exagerar no latim, no alemão, ou na importação de teorias estrangeiras com todas as estrepolias para se criar o pesadelo dos concurseiros (lembra da época em que juridiquês causava comoção?), o recurso pós-televisão ao esvaziamento da linguagem tem funcionado bem em uma sociedade alienada e desejosa de retóricas fáceis. Remix de decisão de direitos humanos não impressiona mais ninguém e os autores citados na canção objetam a distorção de suas vozes.

O importante é garantir uma chamada polêmica, ou, como toda boa novela, de tempos em tempos fornecer deliciosos bate-bocas, trocas de ofensas e baixarias entre senhores e senhoras contidos em sofás beges-ocres que explicam a infelicidade da nação, iluminados por um crucifixo que, mais do que símbolo religioso, é a materialização do afinado Direito finado. Haja confraternização.

Pincelar “bourgeois feminism” aumenta a credibilidade. Entremear decisões estapafúrdias com algumas sossega-leão das minorias também é um dispositivo pertinente e eficaz. Lampedusa explica, mas nesta película, que não é de Visconti, não há nem Alain Delon nem Claudia Cardinale. Quem não se engambelou e quem não se decepcionou que atire o primeiro voto impresso em papel amassado. Quem não é refém desta complexidade, que ostente sua liberdade de espírito.

O Tribunal parece, além disso, ter outras prioridades, para muito além da tutela (diga-se: auscultação) da vida de cidadãos no exercício regular de um direito diante de si. Jantemos com empresários, não passemos fome com grevistas. Pouquíssima negociação, ouvidos ou olhos, diante da gravidade e, ademais, um cenário desolador: “O ministro [Lewandowski, um dos poucos interlocutores do grupo] nos disse que está muito crente de que, no final, a Justiça vai prevalecer”[4].

Seria, então, essa crença na justiça, a prova derradeira de uma sentença de morte a estas pessoas que estão entregando seus corpos e vida em nome dos nossos direitos, do meu e do seu direito subjetivo público fundamental? A resistência do corpo será a medida da política, como é usual.

Vida esta, aliás, posta diretamente no enfrentamento do político: quantos iriam tão longe? Pouquíssimos dão a vida em protesto, em vigília, e isto é digno de respeito e consideração, ainda mais em tempos em que os direitos são cedidos por quaisquer vantagens.

“Bios” ou “zoé”? Não há discussão biopolítica que dê conta da necropolítica cotidiana e do cinismo jurídico nacional; se nem a carne em putrefação no jardim deles assusta, quem dirá a carne nacional dispersa e distante.

De volta a: “o local próprio ao protesto é a urna”. Quase um preceito constitucional.

Palestrar, a despeito do sempre alegado volume monstruoso de trabalho, parece ser uma das prioridades dos Ministros, muito embora estejam sentados em uma bomba-relógio humana.

Não causa maior constrangimento, é fato, em um país cuja atuação de membros do Ministério Público, recebendo quantias vultosas, além de não censurada, se enquadra como “docência” (criaremos um precedente nacional de piso de remuneração docente?).

Em país que mulher-de-magistrado disserta acerca de saias e tapetes vermelhos, até traz alguma esperança mesmo alguém palestrar sobre… democracia. Vamos comer pipoca na estreia do nosso filme.

Em país cuja ciência está pela hora da morte (assim como os grevistas de fome), talvez os Ministros devam mesmo ocupar as Universidades para encher o vazio potencial com vazio atual, subvertendo as leis da física – porque as leis humanas, estas já foram mais do que ab-rogadas.

“O local próprio ao protesto é a urna”: falta compreensão do que seja protesto ou do que seja voto? Ou do que seja topografia? Que propriedade é esta do protesto? Que urna pandemônica pós-moderna de Pandora é esta?

Devo gritar diante da urna, ou me apresento diante dela de vermelho ou de azul, ou de preto? Só devo mesmo é desconsiderar todos os espaços públicos aptos (“impróprios”) à manifestação, que, afinal, não surtirão efeito algum? Temos uma revelação interessante aí sobre a valoração que pode ser feita ou não de todo o corpo de manifestações múltiplas em curso no país. Uma desvaloração da rua, da escola, do prédio público, da rodovia, do campo, do pátio do Supremo, ou do corpo, ou da vida, ou da morte.

Devo achar que voto é a única medida da democracia e que democracia representativa é de pleno funcionamento? Que quaisquer outras manifestações democráticas são inócuas? Temos aí, novamente, uma interessante concepção sobre a atuação democrática: um gosto das vozes representadas, um desapreço da voz viva popular. Minidemocracia, democracia pocket.

Aliás, esta velha mania do elogio do momento do voto: encerra todo o potencial do político o momento da eleição? Informar-se sobre os candidatos, fazer uma escolha; encerra-se a missão democrática? De 4 em 4 anos, está bom? Parece aconchegante.

Devo discordar apenas dos potenciais equivocados do Executivo e do Legislativo? Os demais poderes, formais ou informais, portanto, devem vir acompanhados de um silêncio de inanição? Afinal, juízes são blindados em termos de elegibilidade e, portanto, de protesto. Curioso ato, no mínimo, falho. Quem não passa pela urna, não passa pelo protesto: privilégio, auxílio, ou apenas conforto?

Se o protesto é aquela declaração de alto e bom som, qual democracia raquítica está por detrás desta topografia proposta? E quem é o seu cartógrafo? E esse mapeamento, para onde leva?

Eleições são indispensáveis em uma cultura minimamente democrática, hoje, além de serem um complexo imperativo constitucional. No nosso frágil sistema jurídico-político, a supressão de eleições seria mais um tremendo capítulo do horror político, fortalecido por uma legião de pessoas que não reconhecem no direito ao voto uma conquista histórica inegável e não se comprometem com seu exercício. Mas não tratemos as eleições como romance adolescente, nem façamos irônicos caminhos de migalhas democráticas.

Há muito mais democracia, muito mais direitos, muito mais porvir, muito mais democracia, muito mais inclusão, muito mais protesto, muito mais vida fluindo; muito mais Direito, muitas mais forças jurígenas a espera de formação linguística, textual, institucional. Muitas costuras de direito a serem realizadas, muitas vidas precárias demandando cuidado. Muitas fomes.

Pode-se finalizar com uma fala da Ministra Cármen Lúcia, no mesmo evento: “Não temos 209 milhões de modelos democráticos”. Apequenemos a democracia; menos, menos, menos: austeridades. “Lé com cré”: parece que nossos 11 modelos suprademocráticos não têm ajudado muito também. 15º dia de fome.

Eliseu Raphael Venturi é doutorando e mestre em direitos humanos e democracia pela Universidade Federal do Paraná. Editor executivo da Revista da Faculdade de Direito UFPR e Membro do Comitê de Ética na Pesquisa com Seres Humanos da UFPR. Advogado.

¹ Disponível em: < https://www.123rf.com/photo_82186244_stock-vector-topographic-map-background-with-space-for-copy-line-topography-map-contour-background-geographic-gri.html>. Acesso em:  13 ago. 2018.
² BERNHARD, Thomas. O imitador de vozes. Tradução de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 126-127.
³ PRONER, Carol. Greve de fome nas mãos do STF. Disponível em: < https://www.brasil247.com/pt/colunistas/geral/365077/Greve-de-fome-nas-m%C3%A3os-do-STF.htm>. Acesso em: 13 ago. 2018.
4 GONZAGA, Vanessa. Audiência com STF e visitas de familiares marcam segunda semana de greve de fome. Disponível em: < https://www.brasildefato.com.br/2018/08/13/audiencia-com-stf-e-visitas-de-familiares-marcam-segunda-semana-de-greve-de-fome/>. Acesso em: 13 ago. 2018.
 
Lourdes Nassif

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