Kant, Schopenhauer e o novo Estado de mal-estar brasileiro, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Kant separou a arena pública da esfera privada, fazendo uma clara distinção entre moralidade e o amor de si que origina o egoísmo.

Kant, Schopenhauer e o novo Estado de mal-estar brasileiro

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Após uma longa ditadura caracterizada por violações sistemáticas aos direitos humanos, pela indiferença em relação à precária situação econômica da maioria da população e por ambições militares regionais submetidas às necessidades globais dos EUA (algo que pode ser chamado de imperialismo submisso), o Brasil foi redemocratizado. O Estado criado por intermédio da constituinte tem como princípios a valorização da dignidade humana (art. 1º III, da CF/88) e dentre seus objetivos fundamentais se destacam a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da pobreza, a promoção do bem-estar de todos (art. 3º, I, III e IV, da CF/88).

Os princípios e objetivos do novo Estado deveriam ser concretizados mediante o respeito aos direitos e garantias individuais (ar. 5º, da CF/88) e a fixação de um salário-mínimo capaz de atender às necessidades básicas vitais do trabalhador e de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social (art. 7º, IV, da CF/88). Ao Estado foi atribuída a missão de garantir aos cidadãos o acesso gratuito à assistência médica (art. 196 a 200, da CF/88), educação (art. 205 a 214, da CF/88), informação (art. 220 a 224, da CF/88), cultura (art. 215 a 216 A, da CF/88) e um meio ambiente protegido (art. 225).

A propriedade privada e a atividade econômica lucrativa também foram garantidas elo sistema constitucional criado em 1988. Mas primeira deve se submeter às necessidades sociais na forma da Lei (art. 5º, XXIII, da CF/88). E a segunda precisa assegurar a todos uma existência digna, conforme os ditames da justiça social (art. 170, da CF/88) e pode ser eventualmente regulada pelo Estado (art. 174, da CF/88).

Kant separou a arena pública da esfera privada, fazendo uma clara distinção entre moralidade e o amor de si que origina o egoísmo.

“La máxima del amor a sí mismo (prudencia), sólo aconseja; la ley de la moralidaed, manda. Pero hay una gran diferencia entre aquello que se nos aconseja y aquello a que somos obrigados.

Lo que haya que hacer, según el principio de la autonomía del albedrío, es facilísimo de conocer sin vacilación para el entendimiento más vulgar; lo que haya que hacer bajo la presuposioción de heteronomia del mismo es difícil, y exige conocimiento del mundo; es decir, lo que sea deber, se ofrece a todo el mundo por sí mismo; pero lo que produzca verdadera y duradera ventaja, está siempre, si esta ventaja ha de ser extendida a toda la existencia, rodeado de obscuridad impenetrable, y exige mucha prudencia para acomodar, aunque sea sólo de um modo suportable, la regla práctica regida por la ventaja con los fines de la vida, mediante hábiles excepciones. La ley moral, empero, ordena a cada uno el cumplimiento más pontual. Así, pues, el juicio de lo que haya de hacerse, según ella, no debe ser tan difícil que no sepa aplicarlo al entendimiento más común y menos ejercitado, hasta sin conocimiento del mundo.” (Crítica de la Razón Práctica, Emmanuel Kant, Librería El Ateneo Editorial, Colección Clásicos Inolvidables, Kant II, Buenos Aires, 1951,  p. 40/41)

Numa observação sobre o Estado pós-feudal, disse Kant que:

“… en una transformación total, recientemente emprendida, de un gran pueblo en un Estado, se ha utilizado con gran consecuencia la palabra organización , a menudo para designar la sustitución de magistraturas, etc., y hasta de todo el cuerpo del Estado. Pues cada miembro, desde luego, debe ser, en semejante todo, no sólo medio, sino también, al mismo tiempo, fin, ya que contribuye a efectuar la possibilidad del todo, y debem a su vez, ser determinado por medio de la idea del todo, según su posición y su función.” (Critica del Juicio, Emmanuel Kant, Librería El Ateneo Editorial, Colección Clásicos Inolvidables, Kant II, Buenos Aires, 1951, p. 372) 

Ao comentar essa última observação, Hannah Arendt afirma que foi “… precisamente esse problema de como organizar um povo em um Estado, como construir o Estado, como fundar uma comunidade política, e todos os problemas legais relacionados a essas questões, o que ocupou Kant constantemente durante seus últimos anos de vida. Não que seus antigos interesses a respeito da astúcia da natureza ou da mera sociabilidade dos homens tivessem desaparecido totalmente. Mas sofrem uma certa mudança, ou melhor, aparecem sob novas e inesperadas formulações.” (Lições sobre a filosofia política de Kant, Hannah Arendt, Relume Dumará, Rio de Janeiro, 1994, p. 19)

Em razão do texto de nossa Constituição Cidadã, não há dúvida de que em 1988 o Estado brasileiro foi desenhado sob inspiração da filosofia kantiana. Afinal, Kant foi o maior defensor da tese de que o Estado deveria garantir o desenvolvimento humano de maneira a elevar os cidadãos livres à coexistência pacífica regida por uma moralidade virtuosa. Mas existe um problema, nós esquecemos de levar em conta a necessidade de submeter todas as organizações públicas e privadas ao novo imperativo categórico civilizacional.

A imprensa privada não é um meio para um fim, mas um fim em si mesmo. Essa autonomização do jornalismo deformou nossa esfera pública até possibilitar a transformação do MPF e da Justiça Federal num fim em si mesmo durante a Lava Jato. O resultado foi a devastação política e econômica que a dupla Deltan Dellagnon e Sérgio Moro realizaram em nome de uma suposta moralização da esfera pública. A Vaza Jato provou que ambos eram apenas hipócritas e egoists.

Além de corromper os princípios constitucionais do direito penal para possibilitar o golpe de 2016 e impedir Lula de disputar a eleição em 2018, Deltan Dellagnol e Sérgio Moro usaram seus cargos para consolidar interesses pessoais mesquinhos. O primeiro ganhou dinheiro com palestras e tentou desviar bilhões de reais da União para a criação de uma fundação privada. Há alguns dias, Deltan Dellagnol anunciou que ingressará na carreira política. O segundo deixou o Judiciário para se tornar Ministro da Justiça. Após sair do governo e passar uma temporada nos EUA, Sérgio Moro retornou ao Brasil como candidato à presidência da república.

O processo de autonomização do MPF e da Justiça Federal acarretou o retorno dos militares à política, pois a Lava Jato criou o vácuo político que levou o capitão Jair Bolsoanro ao poder. A ameaça que os militares representam para a democracia Brasil é um complicador. Eles já estão se assenhorando de toda a arena política.

Impopular, isolado diplomaticamente e irritado com as decisões proferida pelo STF com o intuito de preservar alguns institutos da Constituição Cidadã, Bolsonaro tenta transformar as Forças Armadas no seu único partido político. Quando não ameaça romper a legalidade, o tirano brasileiro usa seus generais como peões na disputa com o Sistema de Justiça. Os generais e coronéis que ele nomeou expandem a barbárie militar dentro dos órgão civis da administração pública federal.

Hamilton Mourão, o general vice, pretende disputar o governo do Rio de Janeiro. Ele se coloca como árbitro político de uma anormalidade normal diferente da anormalidade irracional bolsonarista. Mourão aplaudiu a decisão do STF de suspender a execução do orçamento secreto, mas ele apoia o teto de gastos que impede o Estado de cumprir sua missão civilizatória e defende a supremacia dos militares na política. Sérgio Moro será auxiliado por um general que abandonou o bolsonarismo, mas o fez para preservar sua própria versão da mentalidade política da caserna.

O sistema constitucional de 1988 foi inspirado em Kant, mas continha as sementes de sua própria destruição. Primeiro porque praticamente sepultou a possibilidade de acerto de contas com os criminosos que cometeram torturas e assassinatos durante a ditadura militar. Depois porque permitiu a ascensão ao poder de um ex-militar que sempre defendeu publicamente o uso de violência letal e de coerção criminosa como instrumentos legítimos de governança. A parte final do art. 142, da CF/88, deu aos militares um pretexto constitucional para apoiar os abusos cometidos pela Lava Jato dentro e fora do Brasil e para fazer ameaças e exigir que o STF impedisse Lula de disputar a eleição de 2018. Esses abusos cometidos pelos militares não foram punidos (na verdade eles foram até apoiados por uma parcela da imprensa).

O princípio civilizatório em torno do qual a imprensa conseguiu reunir o MPF, a Justiça Federal e uma parcela dos militares e dos políticos é muito diferente daqueles que foram instituídos em 1988. Ele preconiza a submissão da atividade pública ao cálculo do lucro e transforma a arena política numa correia de transmissão de interesses privados mesquinhos.

O governo Bolsonaro provocou 400 mil mortes, mas poucos têm coragem de chamar isso de genocídio. Uma parcela da população está faminta e/ou comendo lixo, mas essa verdade factual não é encarada como uma evidente violação dos objetivos republicanos (a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da pobreza e a promoção do bem-estar de todos). Desligada da realidade nacional e totalmente submetida aos interesses dos banqueiros, a economia brasileira já não atende a necessidade programática prescrita na Constituição Cidadã de garantir a todos uma existência digna.

Ao criticar a teoria do Estado de Kant, o filósofo Arthur Schopenhauer disse que:

“… o Estado não pode de nenhum modo ser dirigido contra o egoísmo, no sentido geral e absoluto da palavra; pelo contrário, é precisamente do egoísmo que nasce o Estado, mas de um egoísmo bem compreendido, de um egoísmo que se eleva acima do ponto de vista individual até abarcar o conjunto dos indivíduos, e que, em uma palavra, tira a resultante do egoísmo comum a todos nós. Servir esse egoísmo é a única razão de ser do Estado, partindo do princípio, todavia – hipótese legítima -, que ele não pode contar, da parte dos homens, com a moralidade pura, com um respeito do direito inspirado em motivos completamente morais. De outro modo, aliás, o Estado seria uma coisa supérflua. Não é contudo, ao egoísmo que o Estado visa, mas apenas as consequências funestas do egoísmo, visto que graças à multiplicidade dos indivíduos, todos egoístas, cada um está exposto a sofrer no seu bem-estar; é este bem-estar que o Estado tem em vista.” (O mundo como vontade e representação, Arthur Schopenhauer, Contraponto, Rio de Janeiro, 2001, p. 362).

Numa passagem de suas Observações sobre o sentimento do belo e do sublime, Kant afirma que muitos homens “… têm seu tão amado eu fixado diante dos olhos como o único ponto de referência para seus esforços e… buscam fazer girar tudo em torno de seu interesse próprio, como em torno de um grande eixo. Nada pode ser mais vantajoso do que isso, pois esses são os mais diligentes e prudentes; eles dão suporte e solidez ao todo, pois, enquanto não queiram fazê-lo servem ao bem comum”. (citado por Hannah Arendt em  Lições sobre a filosofia política de Kant, Relume Dumará, Rio de Janeiro, 1994, p. 22).

Comentando essa passagem, Arendt afirma que em Kant pode ser vista uma “… convicção de que nenhuma conversão moral do homem, nenhuma revolução em sua mentalidade é necessária, exigida ou esperada a fim de produzir uma mudança na política para melhor.” ( Lições sobre a filosofia política de Kant, Hannah Arendt, Relume Dumará, Rio de Janeiro, 1994, p. 22).

Apesar das considerações feitas por Hannah Arendt, a semelhança entre a filosofia política de Kant e a de Schopenhauer é apenas aparente. Enquanto um presume que a esfera pública subordina a esfera econômica e faz uma distinção clara entre as consequências do amor de si e as da moralidade, o outro submete a arena política ao egoísmo transformando-o na razão do Estado desde que este tenha em vista o bem-estar de todos.

Nos últimos anos, a política brasileira passou por uma revolução neoliberal reacionária que esvaziou o conteúdo da Constituição Cidadã. O novo sistema de poder, que algumas vezes opera dentro da legalidade e outra funciona à margem das regras constitucionais digo isso pensando especificamente no genocídio pandêmico, no aumento da fome e no orçamento secreto) atende apenas o egoísmo de alguns, todos demais estão sendo abandonados à própria sorte.

Os interesses egoístas dos barões da mídia, banqueiros, políticos, militares, membros do Sistema de Justiça passaram a ter uma legitimidade extra-constitucional. O egoísmo dos desempregados, famintos e miseráveis está sendo tratado como “caso de polícia”. Os ataques de Augusto Aras à defensoria pública sugere que as vítimas da barbárie neoliberal institucionalizada não terão nem mesmo acesso à justiça.

Portanto, podemos concluir que nós já estamos vivendo no pior dos mundos. Além de removerem da vida pública/política os fundamentos kantianos do Estado criado em 1988, os inimigos da democracia não são capazes nem mesmo de reconhecer as vantagens políticas da institucionalização do egoísmo generalizado schopenhaueriano. Quando um aumento desnecessário do bem-estar de alguns depende da ampliação do mal-estar do maior número de pessoas o sistema todo pode entrar em colapso e implodir.

Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Fábio de Oliveira Ribeiro

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