No Estado de exceção a caminho da ditadura, por Xixo Piragino

"Ninguém deverá ser preso até o ‘trânsito em julgado’, isto é, o fim de qualquer possibilidade de mudança de veredito por uma corte mais alta ou suprema".

No Estado de exceção a caminho da ditadura

por Xixo Piragino

Há trinta anos quando foi promulgada a Constituição Brasileira e o país encerrava a ditadura empresarial-militar de vinte e um anos e nós, jovens e os de juventude acumulada[1], estávamos com os corações cheios de esperança e as mentes cheias de sonhos de construir um novo Brasil.

E isso fazia parte de um caminho.

Desde a década anterior, sucessivos movimentos com a participação da população, manifestando-se nas ruas, num consenso da ideia de um Brasil livre, democrático, diverso e justo para todos, nos mobilizava desde a luta contra a carestia[2], passando pela anistia, pelo fim da ditadura e por eleições diretas para presidente, entre outros.

Com essa mobilização, entramos num processo constituinte, contando com a participação popular através dos Comitês Pró-Participação Popular na Constituinte, oferecendo emendas democráticas, peças fundamentais para transformar a Constituição Brasileira de 1988. Assim, ela foi apelidada carinhosamente de Constituição Cidadã.

Em contraponto, o processo de formação da Assembleia Constituinte não foi o ideal, já que o mais adequado teria sido eleger apenas Constituintes e não deputados e senadores Constituintes, em 1986. Tal fato implicou uma distorção, isto porque quando feitas as propostas vinculadas às esferas de representação, estes (que continuariam com seus mandatos após a promulgação da Carta) construíram um modelo de sistema político não isento de interesses particulares. Mesmo considerando a revisão planejada cinco anos depois, em 1993, e o plebiscito no qual se definiu o nosso regime político. Isto é, uma Constituição promulgada que apontava para um regime parlamentarista e que fortaleceria os partidos e possivelmente os deixariam mais coerentes e enfraqueceria a ideia de “salvador da pátria[3]”, o que fortaleceria a nossa democracia. Porém, o trauma do parlamentarismo imposto em 1961, após a renúncia de Jânio Quadros, nos fez rejeitá-lo democraticamente e a força do presidencialismo foi o resultado da consulta popular.

Porém, todo esse processo uniu o país: políticos com posições partidárias e ideológicas contrárias se tratavam como “adversários”. Atualmente, o cenário é outro: declaram-se “inimigos[4]”.

Apesar de divergências mais pontuais, a Constituição foi promulgada com o povo esperançoso. No entanto, era possível observar algumas ambiguidades, a começar pela devolução do poder soberano ao Povo. De todo modo, o povo não pode aprovar diretamente, ao final do processo constituinte, através de um plebiscito, o texto da Carta Magna, como seria feito em qualquer democracia de alta intensidade.

O trabalho dos constituintes (que tinha um amplo espectro político e ideológico) foi de 19 meses e o fruto foi uma constituição longa – 245 artigos[5]– com muitos artigos com a necessidade de serem regulamentados através de leis complementares, mas que revelava um Brasil dinâmico e com a luta política feita dentro da seara democrática.

De qualquer forma, a Constituição, naquela altura recém-saída do forno, estabeleceu um pacto na sociedade brasileira como os colocados no seu Preâmbulo e nos primeiros cinco artigos que nos dizem quem somos, qual liberdade temos, quem tem o poder soberano, como vivemos e nos relacionamos e para onde queremos ir.

As cláusulas pétreas[6] expressas no Artigo 60 § 4º dão ao cidadão garantias fundamentais. Por essa razão, são imutáveis.

Assim, o Brasil tinha uma democracia de baixa intensidade pois país nenhum com esse grau de desigualdade pode ter uma democracia forte.

Mas o que estamos assistindo desde o golpe jurídico parlamentar de 2016, com o impeachment de uma presidenta eleita[7] sem crime de responsabilidade, já nos colocou num regime de Estado de Exceção. Temos saudades da democracia de baixa intensidade que vivíamos. Isso se mostra quando a Constituição deixa de ser respeitada e o ‘jeitinho’ brasileiro passa das ruas para as instituições. É o famoso “em nome disso”, deixa-se de cumprir o que garante a democracia: a lei maior, a Constituição, que nos norteia.

A censura é proibida no Brasil. Entretanto, já tivemos peças de teatro e exposições proibidas.

Ninguém deverá ser preso até o ‘trânsito em julgado’, isto é, o fim de qualquer possibilidade de mudança de veredito por uma corte mais alta ou suprema. Porém, há centenas de milhares aprisionados no Brasil sem o final de seu julgamento, inclusive um ex-presidente popular preso sem provas concretas.

Há liberdade de manifestação e liberdade política. Já temos repressão por parte dos organismos de repressão do Estado à manifestação, além de pessoas presas, processadas e agredidas pelo legítimo direito de se manifestar pacificamente.

A liberdade de imprensa é garantida, porém é farsesca. Na maioria dos grandes órgãos de comunicação temos a censura do dono da empresa jornalística, além de uma concentração da mídia fenomenal, única área no Brasil que nunca teve seus artigos constitucionais regulamentados.

Temos políticos e pessoas perseguidas que tiveram até que sair do país, sem que as autoridades competentes tenham qualquer ação para protegê-las e aí, sim, reprimir e levar aos bancos dos tribunais os agressores.

Sem falar na baixa resolução e, portanto, os órgãos do Estado vinculados à Justiça (polícias, Ministérios Públicos, Ministério da Justiça), não sendo quase nunca implacável no caso de assassinato de políticos, militantes e lideranças populares e do direito de minorias, indígenas e de defensores dos Direitos Humanos.

E para coroar – nesse país com espírito monárquico – agora estamos assistindo um ataque ao Supremo Tribunal Federal no qual figuras importantes públicas estão dizendo que devemos fechá-lo!

Como um deputado (filho do presidente que disse que mandava “um cabo e um soldado” para isso); uma líder do partido do governo eleita num partido até recentemente sem expressão, e que foram eleitos e cresceram à base de ‘fakenews’; um jurista que vem se equivocando e sendo autor de manobras jurídicas com sua empáfia se mostrando a serviço não de valores democráticos e, também, a namoradinha do Brasil, velha atriz de grande sucesso e popularidade, que só o obteve em novelas os personagens que foram inicialmente censurados pela ditadura passada.

A hipocrisia nacional não tem limites!

Quem pede o fechamento do Supremo Tribunal Federal, como esses listados anteriormente, está trabalhando para a volta da ditadura no Brasil.

Isto é, devemos lembrar qual é o papel do STF: ele é o guardião da Constituição Federal, isto é, quem pede para fechá-lo, está dizendo que a Constituição Federal de 1988 não vale para nada! Deve ir para o lixo! Está dizendo que voltamos ao triste passado de um estado sem democracia e sem direito. Se fossemos sérios no Brasil, esses todos deveriam estar sentados à frente da Justiça, respondendo por essas declarações.

É bom lembrar que a democracia não permite tudo. Tudo que atenta contra ela deve ser fortemente reprimido. Isso é o Estado Democrático de Direito.

Entretanto, caminhamos para uma ditadura. O presidente está dizendo isso em várias ocasiões e de diversas formas e ainda apoiado pelos seus que acreditam que a Terra é plana.

Ele está seguindo claramente a cartilha do grande capital internacional. Inclusive na forma como intervir na sociedade criando mais discórdia[8].

E, assim, vale eliminar o “inimigo[9]“!

Afinal, não podemos virar uma Venezuela. Por essa razão, é que já entregamos a base de Alcântara, não somos mais soberanos na Amazônia, nas próprias palavras do presidente, venderemos o Pré-Sal daqui a alguns meses. Porém, o risco é nos transformarmos numa Colômbia, pois a eliminação dos inimigos lá, que foram massacrados e dizimados, criou vários grupos de guerrilheiros que lutaram e não reconheciam mais nenhum dos poderes constituídos, e mantém o país fraturado até hoje, apesar de ser um país incrível e com um povo espetacular.

Para os donos do poder atual, Deus é o caminho de tudo. Não precisamos de democracia, precisamos de Deus. Deus cuidará de todos. Não importa se passaremos mais fome, se teremos mais brasileiros morando nas ruas, se vai aumentar a miséria. Não precisamos fazer nada, Deus cuida de tudo e está acima de tudo.

Porém, o Deus desses líderes não é o mesmo que o nosso, não é do Deus espiritual que eles falam. É o Deus dinheiro que não tem o valor da solidariedade, da fraternidade, da igualdade. Só tem o valor do livre mercado e do lucro: esse sim o ‘supremo’ a ser defendido!

 

[1]                     Como gosta de expressar a nossa querida Profa. Maria Victoria Benevides

[2]                     A luta contra a carestia foi o Movimento Custo de Vida (MCV) da década de 1970, com protagonismo das mulheres e que se colocava frontalmente contra a política econômica do regime empresarial-militar que arrochava o salário dos trabalhadores e elevava os preços dos produtos, principalmente dos alimentos.

[3]                     Vale lembrar que o primeiro presidente eleito, Fernando Collor de Melo, após a promulgação da Constituição era o próprio “salvador da pátria”, o “caçador de marajás”. Através de um marketing político e a manipulação da mídia, vendeu para a população a ideia que ele era o novo apesar de ser de uma velha elite política coronelesca. Mais uma vez, a população foi enganada, como já tinha sido no discurso e golpe de 1964 que tirou um presidente eleito (vice-presidente era eleito na época), João Goulart, acusado de comunista (nos mesmos moldes de hoje) por defender a soberania nacional e querer enfrentar algumas das desigualdades aqui instaladas.

[4]                     Inimigos enfrentamos na guerra onde vale até matar!

[5]                     Já “remendada” – como diria o Professor Fábio Konder Comparato – 107 vezes sem que o soberano saiba o que está sendo modificado e aprove diretamente.

[6]                     Cláusula pétrea é um artigo da Constituição Federal que não pode ser alterado. Uma cláusula é um artigo de uma lei, é parte do texto jurídico que define direitos ou obrigações. Pétrea é um adjetivo para aquilo que é como pedra, imutável e perpétuo.

[7]                     Infelizmente os deputados e senadores constituintes rejeitaram o mecanismo de democracia direta chamado RECALL, que garantiria um processo mais justo e democrático e, portanto, traria mais estabilidade política ao país em 2016. Recall é um referendo revogatório de mandatos dos executivos e legislativos, no qual a população participa diretamente retornando às urnas, num processo que garante o debate de quem defende o político em manter seu cargo e também de quem quer retirá-lo.

[8]                     Assistam o filme “O fim do sonho americano / Réquiem of American Dream” no qual o ativista Noam Chomsky descreve a forma de agir do grande capital e as 10 regras para manter a supremacia do capital, que se confunde com a supremacia branca.

[9]                     É mais fácil hoje eu ser perseguido, caluniado ou atacado do que esses que vem afrontando a nossa democracia irem responder por isso. Virou arriscado hoje expressar opiniões, como neste texto!

Redação

2 Comentários

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  1. sei que não ajuda muito,
    mas parabéns pela
    coragem do seu texto…
    realmente, dá medo de falar ou de expressar
    sentimentos de indignação diante de
    tantas infamias contra o povo….

  2. Desde sempre, no Brasil, a prisão de um réu acontecia após o pronunciamento da 2ª Instancia. Não havia o STJ, Supremo Tribunal de Justiça somente STF.

    Com apenas 11 componentes, é impossível para o STF revisar e dar a última palavra sobre TODOS os casos penais que tramitam no Brasil.

    Assim a legislação conferia ao Recurso Extraordinário, no caso um recurso ao Tribunal Superior o EFEITO DEVOLUTIVO que dá às decisões do Supremo Tribunal a possibilidade de “fazer mudanças na sentença” embora somente quanto à aplicação do direito sem, contudo, re-examinar as provas ou a condenação, sem contudo dar a este o EFEITO SUSPENSIVO, ou seja, não podia suspender o andamento do processo nem suspender a aplicação da pena.

    O motivo é fácil de se entender. Se fosse dado ao recurso extraordinário o efeito de suspender a aplicaçao da pena o Tribunal Superior seria inundado com recursos com os réus querendo simplesmente protelar a prisão ou, dada a morosidade da tramitação do recurso neste tribunal, até conseguir a prescrição da pena.

    Isso funcionou bem, até 2009, mesmo com o advento da Constituição de 1988. O inciso LVII do art, 5º tratava sobre ser culpa e transito em julgado; o inciso LXI permitia as prisões antes do transito em julgado desde que fundamentada a decisão, deixando a fundamentação para a legislação infra-constitucional, no caso, o Código de processo Penal.

    O Código de Processo Penal dava os fundamentos para as prisões ANTES DE TRANSITADO EM JULGADO. Dentre eles a prisão preventiva, a prisão provisória e, como o Recurso extraordinário não tem efeito suspensivo, a prisão apos a 2ª Instancia pelo art. 637:

    Art. 637. O recurso extraordinário não tem efeito suspensivo, e uma vez arrazoados pelo recorrido os autos do traslado, os originais baixarão à primeira instância, para a execução da sentença.

    Aí, no auge do escandalo do mensalão, os neo-constitucionalistas do STF, defensores dos corruptos, numa decisão por apenas 1 voto de diferença, proibiram a prisão e instauraram o caos no STF.

    Com a suspensão da aplicação da pena pendente apenas de um protocolo de recurso aos tribunais Superiores, o STF foi inundado com recursos, habeas corpus, etc chegando a inacreditáveis 100 mil recursos por ano. Com apenas 2 turmas e trabalhando menos de 9 meses por ano, não dá para julgar nem 1 centesimo disso.

    Começaram a pipocar decisões monocráticas, conflitantes, fora que o STF, virando revisor de todas as causas penais, perdeu a sua função de guardião da Constituição e virou o guardião da impunidade.

    Isso perdurou até 2016 quando, vendo o verdadeiro caos que o STF se tornou, numa decisão de 7 a 4, o STF reestabeleceu a situação vigente desde 1941 não permitindo que um recurso aos tribunais superiores suspender a aplicação da pena.

    Com a prisão do Lula, contudo, o STF flerta com o desastre. Se voltar a proibir a prisão antes do transito em julgado nem 100 ministros do STF dariam conta dos recursos, as decisões monocráticas voltariam a se multiplicar e o STF se desmoralizaria por completo, como, aliás, já está acontecendo hoje.

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