O capo de capa preta saiu do armário, por Cesar Monatti

Tribunal Fascista – Itália, século XX

O capo de capa preta saiu do armário

por Cesar Monatti

O conjunto dos cidadãos de uma democracia, isto é, o povo de uma nação democrática, deve ter seus direitos individuais garantidos pela constituição, que, por sua vez deve ser obedecida pelos seus representantes eleitos e protegida pela mais alta instância de seu poder judiciário.

Esta situação equilibrada, no entanto, só é garantida se prevalecer a soma das escolhas individuais, que se traduz em uma maioria numérica e  que, só assim, pode causar o impacto político suficiente para que suas as decisões sejam seguidas pelos poderes instituídos.

Quem diria que, até há pouco tempo, essa descrição enciclopédica sensaborona representava, com um tolerável grau de correlação, o ciclo que se vivia no Brasil há cerca de três décadas.

Na medida que o princípio da maioria, observado em qualquer democracia digna deste título, foi vilipendiado por meio de um golpe de estado pós-moderno no país, os demais cânones do sistema passaram a ser solapados em ritmo acelerado, até redundar na conjuntura escabrosa em que, os mais protegidos, sobrevivemos, e os excluídos desde sempre são mortos em cada vez maior número.

Entre os preceitos fundamentais da democracia que foram eivados pelo golpe, por mais ultrajante que possa parecer, está justamente a soberania do arbítrio da maior parte dos cidadãos brasileiros.

Não tardou para que raiasse no horizonte do Brasil um sucedâneo brandido por um membro ‘iluminista’ da mais alta corte do país: o sentimento social (sic).

É possível depreender-se que este ‘novo’ princípio seja o equivalente, num linguajar menos influenciado pela poética de Dom Tomás de Noronha, àquilo que foi chamado por outros autores de ‘vontade comum’.

Esta vontade, por sua vez, seria a expressão de um substantivo coletivo abstrato de qualidade monolítica e diáfana que representa, como se isso fosse possível no mundo concreto, todos os indivíduos de uma nação, o povo.

Como é sabido desde os tempos do Velho Testamento que sequer uma quantidade de dois indivíduos pode ter uma vontade comum, faz-se imprescindível a intervenção de um intérprete dessa vontade e este, por via de regra, é um líder – vale lembrar, neste contexto, um líder não eleito.

Por uma consequência lógica, se o líder é quem traduz a vontade comum e ele não é eleito, os cidadãos que se tornam desprovidos de seu poder de delegação, não têm mais, à vista dessa nova condição, a possibilidade de atuar como força política.

A partir de então, eles são invocados e convocados apenas de forma seletiva, como anotaria o douto líder em tela: pars pro toto. E aqueles cidadãos da parcela escolhida por ele – enfim, a eleição perfeita! – se limitam a representar numa ficção teatralizada o papel coadjuvante de “o povo”.

No cenário pós-moderno do golpe, esta teatralização está livre das gambiarras obsoletas das velhas assembleias e da própria presença física dos novos atores nas praças.

A TV e a internet passam a ser a forma de aceitar, incluindo-se vídeos tomados com o celular na horizontal e comentários hidrófobos nos portais da internet, a apresentação da resposta irracional de um seleto grupo de cidadãos, essa que passou a ser chamada “sentimento social”, com o sacríficio da ancestral vox populi  daquele latinório tão caro aos magistrados.

Ora, uma vez dotado dessa validação pela voz do povo, o líder está com o corpo ungido e o ânimo preparado para a luta greco-romana-palestrada em combate mortal, contra todos, pero no muchos, governos e parlamentares eleitos culpados por “…um programa, um modo de conduzir o país com um nível de contágio espantoso que envolvia empresas públicas e privadas, agentes públicos e privados -membros do executivo iniciativa privada”.

É imperioso, sem trocadilhos, anotar a adoção fundamentalista por Sua Excelência, o novo líder, em recentes manifestações públicas da – consideradas as “…possibilidades semânticas oferecidas pelo texto” e prescindindo de interpretá-lo “…de maneira alinhada com a sociedade” – 13ª característica típica do ideário e da práxis fascistas, pontificados por Umberto Eco, no seu ensaio de 1996, de tantas e tão frequentes remissões nesta quadra sombria do país e do mundo.

O capo de capa preta mandou os escrúpulos às favas e abraçou, de uma vez por todas, galhardamente como sempre foi seu feitio, o “populismo qualitativo” como substituto da democracia representativa que as atribuições de seu cargo o obrigam a defender, sem se repugnar com o inconfundível e pútrido “odor do fascismo eterno” exalado pela própria escolha.

 

Redação

1 Comentário

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  1. Ah, tá…
    Sendo assim quero que o meu sentimento também seja levado em conta, pois faço parte da sociedade. Mesmo não sendo aquele sentimento a que sua excelência se refere.

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