O jornalismo profissional da Folha de S. Paulo, por Gustavo Conde

Hoje, o jornal Folha de S. Paulo destaca uma pesquisa ainda não publicada (portanto não chancelada por um corpo editorial científico) a respeito de como o “jornalismo profissional” eleva a probabilidade de um leitor “não se deixar levar por fake news”.

O jornalismo profissional da Folha de S. Paulo, por Gustavo Conde

Começo com a leitura crítica de uma notícia.

Essa história de a OMS enviar uma delegação para a China para “investigar a origem do coronavírus” parece aquele velho delírio romântico do século 19 de filólogos querendo investigar a “origem das línguas” (um equívoco metodológico já superado). Como a OMS e o Ocidente como um todo fracassaram no combate à pandemia – e foram humilhados pela competência da China -, eles precisam criar algum factoide, mostrar “algum serviço”.

Só para constar: o número diário de mortos nos EUA neste momento equivale ao número total de mortos na China desde o início da pandemia até aqui, na casa dos 4 mil.

Há, portanto, o temor subscrito de os dirigentes da delegação da OMS levarem cepas novas do vírus para o país que é referência máxima no combate à pandemia (aliás, não foi fácil eles agendarem a visita – por razões óbvias).

Que a China tome cuidado e, se necessário, coloque a delegação de quarentena.

Dito isso, vamos ao que interessa.

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Hoje, o jornal Folha de S. Paulo destaca uma pesquisa ainda não publicada (portanto não chancelada por um corpo editorial científico) a respeito de como o “jornalismo profissional” eleva a probabilidade de um leitor “não se deixar levar por fake news”.

O estudo tem uma série de problemas. Envolve cessões de assinatura da própria Folha, financiamento de uma consultoria parceira da Folha e números frágeis, justificados à exaustão por um texto que faz ginástica sôfrega para tentar explicar a metodologia inédita (e confusa).

Vejamos um trecho:

“No grupo que não recebeu a assinatura, 65% dos entrevistados consideraram como verdadeiro ao menos um dos textos com teor falso, na segunda rodada de entrevistas. No grupo que recebeu a assinatura, o percentual dos que acreditaram em ao menos uma fake news foi menor, 46% dessa amostra, diferença estatisticamente significativa.”

Os percentuais são muito próximos e o universo de leitura ao qual o leitor é exposto é muito limitado. Não é pesquisa séria.

Ver um jornal estalar autoprogaganda explícita em seu frontispício – depois de, dentre outras tantas coisas, publicar uma ficha falsa da ex-presidente Dilma Rousseff e se desculpar com cinismo – soa desespero.

Mas, faz parte do universo “jornalismo brasileiro”, um gênero à parte no mundo da (des)informação.

Um leitor contumaz da Folha perguntaria: mas o que isso tem a ver com a China?

Fácil.

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Oferecer uma notícia sobre a visita da OMS à China sem a mínima contextualização é equivalente a publicar ‘fake news’. Com uma contextualização enviesada, cheia de ‘apagamentos’, pró-Ocidente, também.

Os ilustres pesquisadores ignoraram, portanto, a dimensão semântica dos enunciados, ou seja, postulam o objeto principal de sua pesquisa (a saber, o texto) como decorrente de uma língua ‘transparente’, matemática, de significado único.

A rigor, anularam a dimensão da interpretação de texto e todas as suas complexidades.

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“Jornalistas profissionais” em massa vêm trabalhando com uma concepção de linguagem do século passado, completamente alheia às pesquisas contemporâneas no campo.

O habitat semântico deste conceito de “profissional”, solene e artificialmente associado ao ‘jornalismo’, é o mesmo daquele que associa ‘política’ a ‘profissional’. Um ‘político profissional’ é como um ‘jornalista profissional’, ou seja: ele está a serviço de si próprio (ou do patrão e/ou do operador).

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Peço vênia para sugerir um protocolo simples de checagem de credibilidade: o jornalismo profissional brasileiro deveria se perguntar como um país do tamanho do Brasil pôde alçar o posto de um dos piores países do mundo no combate à pandemia (lembrando: são 203 mil mortos, em modo ‘subnotificação’, com viés de alta).

De quem são os créditos por essa péssima gestão? Do governo profissional?

A resposta é: de todos nós, inclusive do jornalismo.

Não existe país com governo genocida e jornalismo competente. Trata-se de uma impossibilidade lógica e técnica.

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Já é hora de superarmos a ilusão de que o jornalismo brasileiro é uma dimensão à parte da miséria gerencial e conceitual de nossos “governos”. Um jornalismo que se fiou e se fia na distorção dos fatos na esteira da dicção neoliberal não pode ser celebrado como um valor em separado, que contrasta com a crise humanitária inédita que devasta um país inteiro.

A zona de conforto técnica que impera nas redações no que diz respeito à qualidade discursiva dos textos atingiu um ponto de basta com a pandemia. Em desespero, o jornalismo busca explicações para sua própria existência.

Reduzir a complexidade de um mundo em convulsão à dicotomia “fake news” versus “verdade factual” é infantilizar demais o debate público sobre subjetividade e interpretação de texto.

As coisas são mais complexas – e sérias – do que isso.

Redação

2 Comentários

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  1. Falha não é aquele jornal que publicou A FICHA FALSA DE DILMA, que apoiou o golpe midiático-jurídico-parlamentar que roubou o mandato de Dilma, que apoiou a FARSA A JATO com o objetivo escuso de cancelar a esquerda brasileira e sua maior liderança? E acha que os outros é que publicam fake news? Tão de brincadeira…

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