O ofício de “reality maker”, por Sergio Saraiva

Aplainando contradições e desconsiderando fatos incômodos: como a grande imprensa enxerga o “Brasil cor-de-rosa” no “pós-Lula”.

O ofício de “reality maker”, por Sergio Saraiva

Em 28 de janeiro de 2018, o domingo seguinte à condenação de Lula em segunda instância, o dono da Folha de São Paulo em um dos seus artigos, que elegantemente tem o cuidado de publicar no caderno de cultura do seu jornal – distanciado do primeiro caderno onde ficam os artigos de política dos seus empregados – regala-nos com uma aula de equilibrismos intelectual e retórico e de exercício do eufemismo conveniente.

A começar pelo título ”Lula no ostracismo”, não deixa dúvidas do quanto há de desejo em seus escritos. E, no entanto, vê Lula interferindo nas eleições a partir de sua cela. Óbvio está que, se alguém é capaz de mesmo encarcerado comandar a campanha eleitoral de seu partido e emitir “ondas de alta frequência emocional”, esse alguém não está em ostracismo.

De que a decisão do tribunal que condenou Lula é acertada, o dono da Folha não tem dúvidas – ou talvez tenha e muitas, mas é um equilibrista.

Lula é culpado por domínio do fato. E ainda acrescenta a culpabilização dos “investimentos vultosos” recebidos pelos filhos de Lula – o dono da Folha se escusa de citar a sua vultuosidade – o pagamento às suas palestras, tratado maliciosamente de “transferências”; e nos sonega qualquer palavra sobre as “transferências” a outros palestrantes – de Dellagnol a Obama, passando por FHC – que também fazem palestras remuneradas, Brasil e mundo afora. E claro, o tríplex que o dono da Folha dá de barato que é de Lula.

Aqui, no entanto, começam o equilibrismo e os eufemismos. Nas palavras do próprio articulista:

… há algo de modesto nos bens transferidos a Lula e de mesquinho na escolástica judiciária do debate em torno deles… comparado aos magnatas da corrupção descobertos pela Lava Jato…”.

‘E faz sentido … a exasperação com a demora nos processos contra outros figurões políticos, do PMDB e do PSDB, beneficiados pela lentidão do foro especial”.

“… é notório que havia um elemento corporativo atrelado à decisão, já que revogar a sentença-símbolo do juiz Sergio Moro teria sido equivalente a desdizer toda a Operação Lava Jato e desautorizar seus heróis”.

Frias Filho – o dono da Folha – não aborda a ausência de provas materiais que comprovem que o tal apartamento é de Lula ou que demostrem qual favor Lula teria feito para recebê-lo, mas louve-se Frias Filho, elencar esse rol de “questiúnculas” com relação à condenação de Lula já é se expor mais do que o recomendado.

E quanto há de desejo em um texto que vê Alckmin “galvanizando o establishment – os economistas liberais, a direita moderada e os conservadores civilizados” – e sua virtual eleição com os votos do “eleitorado, cansado de tantos fogos de artifício, e que, portanto, faria uma escolha moderada e sóbria”?

Alckmin ou Huck – “o outsider conhecido do público e lançado diretamente ao centro da arena”. Esse tratado como plano B do conservadorismo, caso a “anódina, mas galvanizante” candidatura de Alckmin não vingue.

Alckmin é o “santo da Odebrecht” e corre processo contra ele no STJ – em segredo de justiça como convêm à tucanos. Em seus governos há de privataria a Paulo Preto e a roubo de merenda de criança, passando por vários massacres. Nenhuma palavra sobre isso ou sobre sua inviabilidade eleitoral, comprovada nas pesquisas da própria Folha. Huck poderia ser o novo Collor e ter até o seu “PC Farias” na sua proximidade com Aécio Neves e os sócios de ambos. Silêncio.

E seguem os devaneios: “a melhora que estará em curso na economia deve disseminar um fator de bem-estar relativo na população”. O pior da reforma trabalhista e do teto de gastos públicos ainda não foi sentido. Há um enorme batalhão de desempregados – 12,2% – e subempregados – mesmo nas faixas mais altas da empregabilidade, que continuarão de assim para pior. Mas Frias vê melhoras que tirariam de Bolsonaro o discurso e o segundo turno.

Outra pérola de Frias:  “com Lula fora de cena, mas atuante no pano de fundo, talvez seja menos crispado um processo eleitoral que se previa belicoso. Com Lula, nas palavras do próprio Frias, “emitindo ondas de alta frequência emocional ao comandar, alojado numa cela, a campanha de seu preposto”? Como isso se daria?

E finalmente o diagnóstico da nossa crise que passou na janela de Frias e ele não viu ou não quis ver: “… do ponto de vista da democracia, é preferível que as correntes mais exaltadas se organizem e concorram como as demais a eleições periódicas, disputando parcelas do poder de acordo com as normas, em vez de tramar contra o regime democrático e procurar sabotá-lo por métodos violentos”.

Desde a insubmissão de Aécio Neves ao resultado das urnas em 2014 e todo o processo de impeachment até a iminente cassação de Lula, só o que a direita fez, inclusive através das páginas do próprio jornal de Frias, foi “tramar contra o regime democrático e procurar sabotá-lo rompendo as normas” agindo com os métodos que tivesse à mão, inclusive os métodos violentos. Violência física e judicial, quando não a primeira através da segunda. Com o concurso de elementos do STF e do TSE.

E Frias atribui ao PT as tais correntes mais exaltadas?

Com Dilma ainda no poder, estaríamos caminhando para uma sucessão democrática na qual não seria de espantar o fim do ciclo petista no governo federal. Mas democrática e soberanamente decidido pelo povo. O jornal de Frias ajudou a sabotar a democracia brasileira. Eis a crise política que realimenta e agrava a crise econômica.

Agora, qual a legitimidade de um presidente eleito sem a participação plena de Lula? Como tal presidente sem legitimidade buscará junto ao povo o “suor e lágrimas” necessários a vencermos a crise dupla?

Disseminaremos no plano federal o método Alckmin de governar? Bons negócios para os amigos, violência policial contra os protestos e reivindicações populares, intimidação judicial dos manifestantes e blindagem nos tribunais e na mídia? Transformaremos o Brasil em um “grande São Paulo”? Com os mesmos resultados do “crescimento econômico paulista” obtido pelo PSDB de São Paulo, desde há mais de 25 anos? Haverá a mesma classe média obtusa a apoiar tal governo?

Qual a viabilidade de algo assim?

“Reality makers”

Note-se que não vi no texto de Frias má-intenção ou a tentativa de um estelionato ideológico. Creio-o sincero, inclusive nas suas dúvidas expressas e em suas contradições inapercebidas. E isso é o mais me perturba. Trata-se do dono do maior jornal do Brasil. E os outros grandes jornais que consultei na semana foram pelo mesmo caminho – algo mais delirante, um deles.

A partir de que mundo fazem suas análises?

PS: a Oficina de Concertos Gerais e Poesia oferece a sua distinta freguesia um variado estoque de pão-pão e queijo-queijo.

Redação

4 Comentários

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  1. Basta substituir os ‘?’ por ‘.’
    “Disseminaremos no plano federal o método Alckmin de governar? Bons negócios para os amigos, violência policial contra os protestos e reivindicações populares, intimidação judicial dos manifestantes e blindagem nos tribunais e na mídia? Transformaremos o Brasil em um “grande São Paulo”? Com os mesmos resultados do “crescimento econômico paulista” obtido pelo PSDB de São Paulo, desde há mais de 25 anos? Haverá a mesma classe média obtusa a apoiar tal governo?”

    Excelente as usual.

    1. O que sobraram de leitores da FSP o são

      sem dúvidas. Como sempre foram mais antenados que os da OESP e do GLOBO, dá para imaginar o grau de letargia intelectual destes. Chose de loques 

  2. O rei está nu!
    So não acredita aquele míope que se esconde dizendo que a roupa está lá, que só está difusa pela “realidade” de vossa alteza.

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