Precisamos falar sobre o real, por Rogério Mattos

René Magritte, La Reconnaissance Infinie

Precisamos falar sobre o real, por Rogério Mattos

O descompasso entre economia e realidade no Brasil, acaba por produzir o efeito de não se vincular um significado político a uma realidade social. Como resultado, para a população de um modo geral, pouco importa na eleição entre um ou outro quadro. Passa a impressão de que tudo o que é imaginado acaba por apontar sempre para a mesma realidade.

É comum dizer agora que a reação ultra-conservadora atacou os fundamentos de realidade da população e levou o debate público a um mundo fantástico, sem ancoragem no cotidiano das pessoas. Por outro lado, existe outra crítica que aponta que o Partido dos Trabalhadores perdeu a eleição justamente por ter perdido o “debate real” para Jair Bolsonaro. Esse debate seria sobre os temas da segurança pública, por exemplo, ou sobre qualquer outro assunto menos abstrato do que a repercussão da capa da The Economist da “civilização versus barbárie”.

O seguidor de Funes, o memorioso, mais um dos nefastos personagens borgianos, não teria dificuldade de lembrar como José Serra procurou implantar no debate público os subtemas que fizeram o sucesso da campanha eleitoral vitoriosa em 2018, como o da mamadeira bolsonárica. Anos antes, chegou a aparecer uma ficha falsa de Dilma Rousseff, perigosa guerrilheira comunista, ateia e abortista, no jornal que oito anos depois iria denunciar fake news do candidato da barbárie. O jogo de cena da hipocrisia apontava para o crescente neomacartismo, fenômeno internacional que, por motivos variados, teve agora seu sucesso eleitoral – com e apesar da Folha de São Paulo.

Antes do início dessa era onde emergiu nas discussões públicas de modo cada vez mais acintoso o “perigo vermelho”, por causa do fracasso econômico do governo FHC, o falar franco, não demagógico, ganhou um espaço considerável, o que resultou nas vitórias de Lula para a presidência da república. Mas quanto desse franco falar deixou questões em aberto, sem poder atacar os problemas como um todo?

Já não se repetem mais as falácias de que os tucanos no poder resolveram o “problema macroeconômico” e os petistas atacaram a “questão social”. Seria um jogo cujo resultado foi o empate, ou seja, fórmula encontrada pelos setores conservadores para se proteger diante da evidência avassaladora de que a “macroeconomia” não fez o país crescer (mancha que durava por décadas), muito menos atendeu aos anseios mais imediatos da população vulnerável (problema mais antigo ainda). A continuidade da fórmula que criou a chamada “polarização” (outro termo do setor conservador), com destaque para o programa eleitoral de Dilma que mostrava os banqueiros tirando a comida da mesa da população durante a eleição de 2014, foi um porto seguro para as vitórias do PT em todas as suas eleições.

Claramente nunca se tratou de “polarização”, termo artificial diante do embate entre a aspiração popular e a política da elite. Num cenário eleitoral muito desfavorável, os primeiros 15 dias do 2º turno talvez tenham sido perdidos em entrevistas coletivas e acenos para o lado oposto dos “dois polos” tradicionais, o que se chama eufemisticamente de “centro-direita”. Depois a campanha de Haddad foi impulsionada um tanto artificialmente, num primeiro momento por causa da denúncia da Folha e num outro por causa do discurso inflamado de Bolsonaro para seus admiradores na av. Paulista. O discurso do PT foi definitivamente capturado principalmente depois da prisão e inelegibilidade de Lula. Só nesse terreno as fake news poderiam fazer efeito (apesar de Bannon ou da conspiração católico-sionista internacional, etc.), o que não quer dizer que mesmo em campo desfavorável não houvessem opções melhores.

O Real foi o que criou todo esse sistema de espoliação do patrimônio nacional, de guerra contra os pobres e de manutenção de taxas inflacionárias baixas ao custo da recessão econômica. Já se questionou praticamente de tudo, menos o Real, e se atenta talvez de forma muito difusa que “o fim da inflação” não corresponde automaticamente ao fim da carestia.

Desde que existe economia monetária, os soberanos livremente valorizavam ou depreciavam as moedas que circulavam em seu território, colocando mais ou menos quantidade de liga metálicas de valor quando da cunhagem das moedas. Um processo de enxugamento monetário como o visto no Brasil depois de 1994 só teve manutenção por atacar a demanda. Dentro dos padrões do livre-mercado tradicional, a supressão da demanda acarreta um aumento osmótico e relativo da oferta, diminuindo os preços. O Plano Real só teve sucesso por ser acompanhado de medidas econômicas recessivas, como a supressão do crédito e dos gastos públicos, a privatização e os juros elevadíssimos.  Uma coisa não pode ser vista sem essas outras: o que é óbvio, mas nunca se associam “essas coisas” com o Real.

Os dois mandatos de Lula e o primeiro de Dilma só tiveram sucesso por atacarem esse “pacotel”, diminuindo seus efeitos diretos sobre a economia, porém sem golpear seu coração, a questão da dívida pública. Os dois presidentes criaram linhas de fuga para contornarem o paradigma social criado pelo Real.

A época em que talvez mais se aproximou do centro da questão, quando se atacou os juros e os spreads bancários numa ação coordenada do Banco Central com os bancos públicos, foi logo sucedida pela guerra irregular moderna encarnada no verde-amarelismo que passou a ser insuflado a partir de 2013, e iniciou o processo de sítio do governo Dilma. Não por acaso também, o centro do debate da campanha de Haddad era a “reforma bancária”, nome tucano para a guerra sem quartel que o PT sabia que só sobreviveria caso a lutasse. O programa do PT simplesmente voltou a questão diante da qual parou ou foi paralisado.

Os liberais brasileiros tentaram, antes do Real, debelar a demanda através de ações diretas, seja com o congelamento de preços ou com  ataque ostensivo na capacidade de consumo da população via intervenção bancária. A fórmula dos juros elevados + privatização só teve sucesso numa época em que a sociedade acabou por se desesperar talvez nem tanto com o crescimento numérico dos preços, mas por sua incapacidade real de consumo, reproduzida em anos sucessivos de desindustrialização e abertura econômica. A isso se chama o fenômeno tradicional de carestia e não a “pós-moderna” luta contra a inflação.

A população talvez estivesse “aceitando tudo” para tentar acabar com a privação generalizada, ainda mais diante da primazia do mundo de consumo do pós-1989. Com isso, a miséria se agravou e boa parte dos ativos nacionais foram entregues às aves de rapina internacionais. O sistema da dívida hoje, frente ao qual novamente se levantam as bandeiras privatistas, é colossalmente maior do que no pré-Real, mesmo depois dos anos de administração bem sucedida da dívida (controle do caos) nos 12 anos do governo do PT. Contudo, nada disso foi o suficiente para o amadurecimento da população para o debate, para a contestação, desse verdadeiro dogma teológico da necessidade do Real. Este só se mantem por causa da manutenção da dívida pública, ilegal e corrupta.

Maria Lúcia Fattorelli sempre apontou para as debilidades desse sistema. Há não só análises do caso brasileiro (em muitos casos vetado por causa da recusa do Banco Central de fornecer dados sobre a dívida nacional), mas os casos concretos do que foi feito no Equador (onde, por imoral que era, se negociou a dívida para 30% de seu valor de face) e o caso alarmante na Grécia, onde o Banco Central Europeu emprestava dinheiro que caía em contas em paraísos fiscais que passavam aos gregos, em troca dos juros pornográficos, ações podres e não dinheiro vivo. Agora sua voz se junta a de Jessé Souza, que faz pesquisas empíricas de alta qualidade sobre a mentalidade da classe-média brasileira e a vida das classes precarizadas.

Deve ser formado um caldo cultural (sabe-se lá a que custo!) para que esses temas básicos, que atacam de frente e ressignificam o que se chama de corrupção, sejam postos de maneira enfática sobre a mesa. O Real deve ser enfrentado cada vez de forma mais direta, apesar do fardo pesadíssimo (talvez um interlúdio…) que a noção não de real, mas de fantástico, adquiriu com a eleição de olavos e bolsonaros. Somente assim podemos retomar a união, a revolução e o estado democrático, baseados no Brasil que se construída no pré-1964, processo reiniciado com as eleições de Lula e Dilma.

O Brasil do Real jamais foi o Brasil real.

Rogério Mattos: Professor e tradutor da revista Executive Intelligence Review. Formado em História (UERJ) e doutorando em Literatura Comparada (UFF). Mantém o site http://www.oabertinho.com.br, onde publica alguns de seus escritos.

Redação

2 Comentários

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  1. Boa noite Philipp! Sua opinião de nada serve se sua origem não vem da liberdade provinda de uma falsa independência ou morte! Vivemos hoje no Brasil uma falsa democracia montada e maquiada pela burguesia montada e fortalecida por ricos e poderosos articulados e lapidados por países igual ao seu especuladores e dominadores e mais sua origem é de sangue sugas que exploram os países emergentes até sacrificar-los até a morte, não venha aqui no Brasil querer expressar suas opiniões onde seus interesses parece ser de sarcasmos e xacota, um opnador moldado pela máquina comunista e terrorista quando não rege e manipula uma sociedade! Estamos em dias no Brasil onde religião e igreja estão mais do que poderosas estão se aproximando cada dia mais de Deus e isto nos dará a certeza de vitória e de um país mais próspero e virtuoso! Estamos tentando se libertar dos liberalismos e dos ideologistas do deixa a vida me levar! Queremos que os jovens respeitem suas origens e seus criadores, queremos que na escola se ensine a realmente ser honesto profissional e humano, não queremos ser mais um louco varrido socialista! Pegue sua opinião e volte para a Alemanha e aproveita a viagem e leve todos os socialistas para seu país e tente montar uma nova era política e vamos ver sua prosperidade alemã virar uma Venezuela ou Bolívia ou cuba! Pena que a amazônia não estará mais nas suas garras talvez seja o motivo de seus ódios !

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