Reafirmação da Ordem, por Jean Pierre Chauvin

Reafirmação da Ordem, por Jean Pierre Chauvin

É possível (para não dizer provável) que um terráqueo habituado a mirar a superfície das coisas, acredite que tudo vai bem (“dentro do possível”, como diz). Especialmente se este ser de dois olhos, duas orelhas, narinas e boca habitar da órbita dos tucanos (não; não me refiro à Amazônia). Neste caso, qualquer noção de anomalia estará bem distante, soterrada pelas vozes que chegam dos familiares, dos jornais patronais, dos bancos, das empresas, do dentista, do médico, do taxista que o carrega etc.

De fato, a padaria que o sujeito frequenta continua a servi-lo prontamente, com seu expresso com leite e pão com manteiga, pela manhã. O Campeonato de Futebol brasileiro já voltou, após um mês de alienação mega-blaster, graças aos desencantos da Copa; os “caixinhas” eletrônicos continuam a receber e liberar cédulas; o mercado e a farmácia estão abertos; o transporte coletivo circula; quase todos os seus amigos têm emprego (se não, empresa); o seu canal de TV continua a preencher o tempo com novelas surreais e notícias que estimulam novas formas de ódio.

É sob essa capa de “normalidade” que coisas grotescas acontecem. Num dia, é o sujeito que alonga a fila enquanto diz, teatralmente (para ver se os os clientes o acompanham na oratória) que “o mal do país” é provocado pelo partido vermelho; noutro, é a mulher, na fila do cinema gratuito, que gostaria de vomitar na cara de nossa única mulher Presidenta; no terceiro, é o rapaz que, ao avistar outros terráqueos a descer a “sua” rua, detona qualquer esperança de democracia e legalidade: “vai ter golpe, sim!”, gritou um desses, quando se estava por votar o Impedimento de Dilma Roussef…

O famigerado “homem de bem” talvez acredite que, sob a aparência bem cuidada de quase todos, a caminhar apressadamente, a economia certamente está a girar (afora mendigos, pedintes, crianças no semáforo, jovens nas portas de lojas e restaurantes) e assim, sairemos “do buraco” em que o referido partido teria nos lançado.

Não fosse a intervenção militar no Rio, a tomada de poder pelo ex-vice-presidente (cujos planos nunca estiveram alinhados com os da presidenta que o elegeu) e a gestão enxuta e privatista do ex-prefeito (que sequer disfarça o seu discurso violento e excludente, à base das chamas e mangueiras de incêndio, sob os viadutos), teríamos ficado para sempre no “fundo do poço”, pois esse bando de “comunistas” precisa ser dizimado.

O discurso de alguns pré-candidatos à Presidência da República está forrado de lugares comuns. Certamente haverá alguma arte em afetar modéstia e interesse pelo povo, enquanto lhe tira direitos básicos que deveriam ser assegurados pelo Estado. E assim, na ilógica resignada do terráqueo paulistano, que não dispensa o shopping, o sanduíche e o celular, o mundo reduz-se ao tamanho do que (não) vê.

Debaixo do leve e sujo manto da pseudo-ordem (“a ditadura não mexia com gente de bem”), do trabalho para todos (“só não trabalha quem não quer”), da sentinela moralista (“faça o que é certo”) e da crença cega de que o futuro continua a ser a meta do Brasil, o cidadão paulista troca qualquer reflexão sobre o rumo das coisas por uma casquinha de sorvete em promoção.

“Está tudo em ordem”, ele pensa. As instituições – que tão bem conhece – continuam a servir café, bolo, torta, empada, quibe e coxinha, coca-cola e milkshake. Fora da ordem estão estes “vagabundos” que só fazem beber cachaça e dormir, atrapalhando o sossego ou o negócio das gentes.

Para essa turma de terráqueos não haverá assunto mais importante, senão aquele que lhe diz  máximo respeito: a negociata na empresa, a conquista amorosa, o tédio mortal “quando não se tem nada para fazer”. Arriscar-me ia a sugerir que esses daí enxergam ainda menos que as toupeiras. Estas, ao menos, sabem como cavar buracos para além da superfície e viver em meio à terra, em contato direito com minhocas, sementes e raízes.

Daí a importância de ter viço, feito flor que recém brotou; de ser radical, feito planta que não quebra; não perder a capacidade de andar com (ou, ao menos, entre) os humildes (ou seja, caminhar próximo do húmus). O problema maior é que as coisas nem sempre poderão ser resolvidas no plano das ideias ininteligíveis ou das belas metáforas; daí a necessidade de romper a superfície aparentemente bem-comportada do “homem de bem”.

Tomara que, dia desses, não seja tão “normal” topar com um exército de desempregados nas ruas; que os mendigos estejam, todos, abrigados das intempéries, igualmente a salvo do ódio dos cidadãos que ainda têm emprego. Que seja normal discutirmos política em vez de transformar togados em heróis ou converter bate-papo em agressão.

Decerto haverá alguma vantagem em permanecer na superfície dos eventos, onde o refrigerante “mata a sede”, o pseudohamburguer “está em promoção”, a roupa “é mais barata”, o “mérito é sempre de quem sobe”, já que “o mundo é dos espertos” e o meu dinheiro é limpo, pois “lucrei de modo justo”. Isso tudo porque “tem gente que só vê o lado ruim das coisas”.

Quanta cegueira no verbo “ver”.

Redação

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