Retorno às aulas: Não pode ser como antes, por Arnaldo Cardoso

Há muitos também que rejeitam a própria ideia de “retorno ao normal” pois mesmo antes da pandemia, nada estava “normal”.

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Retorno às aulas: Não pode ser como antes

por Arnaldo Cardoso

Depois de quase dois anos de aulas presenciais suspensas no Brasil em função da pandemia da Covid-19 e dos obstáculos enfrentados para a vacinação no país, a atual queda na taxa de transmissão do SARS-Cov2 está permitindo o retorno às aulas presenciais. O momento merece comemoração, mas especialmente, reflexão sobre seus significados e responsabilidades.

Além das mais de 600 mil mortes no Brasil e quase 5 milhões em todo o mundo, as marcas deixadas por essa pandemia são das mais variadas ordens. Muito já se disse que não há possibilidade de retorno ao “normal” de antes. Há muitos também que rejeitam a própria ideia de “retorno ao normal” pois mesmo antes da pandemia, nada estava “normal”. Vivíamos um tempo fora do eixo, que a pandemia só agravou aquele “mal-estar na civilização”, para dizer o menos.

Se neste 15 de outubro de 2021, data em que se costuma comemorar o Dia do(a) Professor(a) muitos estão convencidos do papel fundamental desse profissional para a vida das sociedades livres e com desejo de presente e futuro, nestes dois últimos anos, no Brasil e no mundo, em graus variados, não poucos foram os acontecimentos que nos levaram a indagar “Por que estamos cada vez mais estúpidos?”. Foi com essa indagação que Lorenzo Malone, publicou em setembro de 2020 no jornal italiano La Repubblica um artigo iniciado com a seguinte colocação/provocação: “Duas coisas são infinitas: o universo e a estupidez humana, mas ainda tenho dúvidas sobre o universo”.

Ao abordar as “cinco leis sobre a estupidez”, o autor dá destaque para a quinta delas e salienta “o estúpido é o ser mais perigoso que existe. Sim, principalmente quando tem a oportunidade de dirigir a vida dos outros, quando com suas decisões tolas condiciona o futuro de muitos, enfim, quando está no comando”. Esses dois anos de grave crise sistêmica global deram tristes mostras disso.

Malone continua “a inteligência sempre se alimentou das mesmas coisas: conhecimento, curiosidade, cultura, compartilhamento. São as únicas armas de que dispomos para combater a ignorância e a consequente estupidez. Uma batalha sem fim, pois “infinito é o número de tolos”, frase que encontramos até no livro bíblico do Eclesiastes”.

Ao mesmo tempo em que vimos o desfile da estupidez, durante a pandemia vimos também a intensificação dos usos das novas tecnologias, acelerando processos de digitalização e datificação de várias instâncias da vida. Importantes soluções foram encontradas graças ao atual estágio de desenvolvimento tecnológico. No caso da educação, foram as ferramentas de informação e comunicação que permitiram, para uma considerável parte de crianças e jovens, a continuidade de rotinas escolares através de plataformas digitais de comunicação. O EAD (Ensino a Distância) e aulas on-line já eram praticados desde muito tempo em modalidades específicas de ensino, mas com a necessidade do distanciamento social, isso foi implementado em grande escala. Certamente houve aprendizados importantes e também questões estão postas para serem pensadas e equacionadas.

Para os entusiastas da tecnologia o contexto foi propício para a defesa da aceleração, padronização e aprofundamento de processos. Diante das críticas de uma automação da educação, de exclusão do tempo e do espaço para a criatividade e para o desenvolvimento de relações humanas, o que se viu foram propostas de ampliação dos jogos em ambientes virtuais, apostando na simulação da realidade como “exercício lúdico” e cativante para os jovens.   

Sobre essa gamificação da vida, a série sul-coreana “Round 6”, da Netflix, gigante mundial do streaming, a seu modo promove o debate ao mesmo tempo em que fatura milhões. A série vem ocupando o topo nos rankings das séries mais vistas nos Estados Unidos, Reino Unido e outros países como o Brasil.

Jogos em processos seletivos de empresas, simuladores de negócios, aplicativos utilizados em campanhas políticas fartamente apoiadas por algoritmos, recursos de inteligência artificial e disparos automáticos de fake news já vinham configurando as “novas formas do real” sem qualquer filtro ético por parte dos “físicos e engenheiros do caos” – expressão cunhada pelo intelectual ítalo-suíço Giuliano Da Empoli –.  

Nas últimas décadas, intelectuais das Ciências Sociais – campo de conhecimento sistematicamente atacado e visto como desnecessário pelos defensores do “tempo útil” como o princípio orientador de todas as coisas – como o filósofo francês Jean Baudrillard vem se dedicando ao estudo das relações entre o real, o virtual e o hiper-real.

A mencionada série da Netflix nos coloca diante da seguinte questão “Se ganhar dinheiro significa a luta pela sobrevivência na competição do mercado, por que então não representar a luta pelo dinheiro também como um game?”. Nessa direção vale lembrar a capa da renomada revista inglesa The Economist que em 2011 estampou a frase “O Mundo Todo é um Jogo”.

No cenário distópico constituído por um vírus desconhecido e altamente letal circulando em todo o globo, negacionistas da ciência, déspotas arrogantes de sua ignorância governando nações populosas e um bando de abutres buscando oportunidades de ganhos fáceis e substanciais em setores de negócios pouco regulados, caracterizaram aquilo que tem sido chamado de “tempestade perfeita”.

Merece nota o fato de que a série “Round 6” assim como o filme Parasita vencedor do Oscar em 2020, são produções sul-coreanas que retratam a situação de uma sociedade marcada pela desigualdade social, especulação financeira e imobiliária, endividamento de indivíduos e famílias e o esvaziamento ético e moral, daquela que foi apontada como exemplo do liberalismo que impulsionou economias de mercado dos chamados “tigres asiáticos”. Economias abertas, atrativas ao investimento internacional com maciços investimentos em formação de mão-de-obra qualificada com forte ênfase em tecnologias e finanças.

Na suposta igualdade de condições dada aos competidores representada na referida série, todos são manipulados e buscam também manipular os seus competidores, fazendo prevalecer  a lei do mais forte ou apto, onde o acesso privilegiado a alguma informação e o extravasamento da crueldade são normalizados.

A eliminação de um competidor, ou seja, sua morte, só aumenta o valor do prêmio a ser disputado pelos sobreviventes. As mortes são “externalidades negativas” em linguagem de mercado ou, como filosofou um certo governante latino-americano “todos nós iremos morrer um dia”.

Fazendo justiça a pensadores de séculos passados, parece necessário resgatar que a educação costumava ser entendida como um meio para a elevação do espírito humano, para o desenvolvimento de indivíduos e sociedades livres e prósperas.

Aqueles que perseveram na crença desse conceito de educação ressaltam que a pandemia da Covid-19 realçou de forma insubornável o fato do destino coletivo comum.

Estamos diante de questões decisivas e inadiáveis. As respostas que dermos definirão o futuro da humanidade, especialmente de nossos jovens.  E há fortes indícios de que, dependendo dos valores que orientarem essas respostas, poderá não haver vencedores.

Arnaldo Cardoso, sociólogo e cientista político formado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) é escritor e professor universitário.

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

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