Revanche, por Wilson Ramos Filho

O Brasil bolsonaro se vinga das, imaginárias ou reais, humilhações a que suas mediocridades foram expostas desde o fim da ditadura

Revanche

por Wilson Ramos Filho

Ainda em 1974 o economista Edmar Bacha criou a metáfora da Belíndia. A concentração de rendas propiciada pela ditadura acarretava que parte da população tivesse padrão de vida similar à da Bélgica, parte vivia como na Índia. Havia, segundo o autor, dois Brasis no mesmo território.

O Golpe de 2016 interrompeu o ciclo neodesenvolvimentista que aproximava as massas despossuídas (Índia) daquele mínimo aceitável de condições de vida digna (Bélgica). A mudança de projeto político operada por Temer, a prisão do Lula (líder nas pesquisas) e o impedimento de sua candidatura pelo judiciário, permitiram uma divisão de outro tipo na sociedade brasileira. Surgem dois Brasis, diferentes, antagônicos, em todos os espaços sociais, desde as famílias até as mais tradicionais instituições. 

Sem buscar as causas, retendo-nos apenas aos fatos, constata-se que aprofundou-se no Brasil a divisão da população entre duas visões de mundo, correspondentes a opostas propostas de “maneira de existir” em sociedade.

O resultado eleitoral apenas corroborou a existência desses dois Brasis. E as forças políticas que venceram o pleito agora tentam impor o modo de vida e os valores que defendem à outra metade da população, encontrando resistência.

O Brasil bolsonaro cuida de bolsonarizar a sociedade como um todo, colonizando os derrotados, impondo a sua maneira de existir. Trata-se uma pretensão totalizadora, que não admite dissidências ou defecções, legitimada pelas urnas. O projeto do Brasil bolsonaro é total, mais que autoritário. É totalitário.

As mais recentes pesquisas de opinião descortinam a existência desses dois Brasis, dessas duas maneiras de existir. Metade apoia as primeiras medidas governamentais, metade as reprovam. Metade concorda com a Reforma da Previdência e a flexibilização do uso de armas, metade as rejeitam. Metade quer um Estado-mínimo, metade quer o Estado controlando a voracidade do capital.

Essa divisão, em porções quase equivalentes, não corresponde à divisão entre as classes sociais, entre quem compra e quem precisa vender a força de trabalho para sobreviver. Há um “capitalismo cultural” que captura a subjetividade de diversos setores populares que, pela lógica, deveriam se opor à maneira bolsonara de existir. Funcionários públicos neoliberais, trabalhadores que apoiam o corte de direitos trabalhistas, homossexuais aplaudindo a Damares, advogados defendendo privilégios à magistratura que, violando direitos, os oprime, só para ilustrar de que se fala.

O Brasil dos medíocres vive sua redentora revanche. Assiste-se à glamourização da ignorância e da estupidez.

A metáfora da sala de aula bem ilustra os dois Brasis. Nos governos anteriores a Temer, o prestígio social estava com os alunos “bem comportados”. Com o Golpe quem passa a dar as cartas é a “galera do fundão”, bagunceira, candidata à reprovação. Com Bolsonaro quem está no comando é a galera que havia sido expulsa do colégio, com o apoio da turma do fundão. E vêm à desforra destruidora.

Sobram vagas nas faculdades públicas. Nem de graça os jovens optam pelo ensino superior. Nas instituições de ensino privadas mais da metade das vagas não são preenchidas. Estudar para que? Para ser motorista de Uber ou para trabalhar em empregos precários ou terceirizados?

Dois em cada três jovens até 30 anos está em desemprego. Teriam tempo para se dedicar às suas formações universitárias. Mas por que o fariam? Não são tolos, vêem a realidade pela ótica bolsonara. Depois da Reforma Trabalhista a maneira de existir, subordinada, vendendo tempo de vida, mediante contratos de trabalho, perdeu atratividade. Com a “carteira verde e amarela”, pior ainda.

Reforma Previdenciária? Tanto faz. Pelas regras da “nova CLT” não se aposentariam de nenhum modo.

O Brasil que perdeu as eleições, aquele dos alunos bons e medianos que se esforçavam imaginando um futuro melhor, segue lutando contra a destruição dos direitos sociais, contra o Estado de Exceção, pelo retorno dos direitos e garantias individuais, por uma melhor divisão de renda na sociedade. Do outro lado está o Brasil bolsonaro, que desdenha da cultura, do saber, dos estudos, dos valores da igualdade e da solidariedade, essas “coisas de petralhas”.

A galera que foi expulsa do colégio junto com a turma do fundão e com os barnabés da Direita Concursada constituem um novo Brasil que coexiste, no mesmo território, com o Brasil que existia anteriormente, ao tempo em que superar a Belíndia era prioridade governamental.

O Brasil bolsonaro se vinga das, imaginárias ou reais, humilhações a que suas mediocridades foram expostas desde o fim da ditadura. Goza os prazeres da revanche, ainda que ao custo de seus próprios interesses. Como se não houvesse amanhã.

PS: a imagem da revanche dos medíocres é minha. O grande achado, a do “pessoal que foi expulso da escola”, é de Normando Rodrigues. Fica o crédito.

Wilson Ramos Filho (Xixo), doutor, professor universitário (UFPR/UFRJ)

Redação

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