Samba ou funk, Brasil reprime manifestações culturais de origem negra e periférica

Ao longo da história, cultura e religiões de matriz negra ou africana foram tratadas com violência pelas autoridades, que se empenham em impedir a ocupação do espaço público

Foto: CRIS ISIDORO/DIADORIM IDEIAS

Sugerido por Jackson da Viola
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Do samba ao funk, o Brasil que reprime manifestações culturais de origem negra e periférica

Por GIL ALESSI

Do El Pais

Após a comoção pelo massacre somada aos vídeos divulgados na Internet com policiais agredindo jovens rendidos com barras de ferro, o governador João Doria (PSDB), até então defensor de ações da PM, ensaiou nesta quinta-feira um recuo. Ele admitiu rever as práticas de abordagem e protocolos da polícia, e se disse “chocado” com as imagens divulgadas. Inicialmente o tucano havia inocentado os agentes antes mesmo do início das investigações, dizendo que a PM não havia tido responsabilidade pela tragédia e que apenas perseguiu criminosos em uma moto que dispararam contra a viatura (nenhuma imagem desta perseguição veio à tona até o momento da conclusão desta reportagem).

Ao longo da história do Brasil, mudou o ritmo, dos tambores, pandeiros e atabaques para a batida eletrônica grave. Mas há continuidade na repressão de manifestações culturais de matriz africana e negra (capoeira, candomblé e samba) ou periféricas (rap nos anos de 1990 e 2000 e funk atualmente) com empenho e violência. “Se no passado o sambista foi classificado como vagabundo, nos dias atuais a pessoa que se diverte no baile ou o artista do funk podem ser classificados como marginais, ou pior, traficantes”, explica Lourenço Cardoso, professor do Instituto de Humanidades da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab).

Um caso emblemático de criminalização apontado pelos que acompanham o tema é o do artista de funk DJ Rennan da Penha, criador de uma das maiores festas do gênero do Brasil, o Baile da Gaiola, no Rio. Ele foi condenado por associação ao tráfico de drogas em um frágil processo duramente criticado pela Ordem dos Advogados do Brasil e por defensores dos direitos humanos. Ele se entregou em abril e foi solto em novembro.

Jovens periféricos ocupando o espaço público são um dos estopins da violência do Estado contra esta parcela da população, diz Márcio Macedo, professor do Departamento de Gestão Pública da Fundação Getúlio Vargas-EAESP. “A repressão ao funk e aos fluxos está bem próxima do tipo de repressão aplicada pelas autoridades a manifestações como a que ficou conhecido como ‘arrastões’ nas praias cariocas, ao rap nos anos 1990 e 2000 e à histeria que se deu aos chamados ‘rolezinhos’ em shopping centers”, afirma Macedo. Para ele, “a mídia, de certa maneira, auxilia na promoção de uma imagem de espetacularidade desses jovens, com a criação de um certo pânico moral: uma pessoa ou grupo de pessoas que emergem e são definidas como uma ameaça aos valores societários e interesses da ordem social”. Ou seja, o baile funk é sempre associado apenas a uso de drogas, consumo de bebidas alcoólicas por menores de 18 anos, sexo desenfreado e outros comportamentos considerados inaceitáveis por parte da população. Nunca como uma opção de lazer —por vezes a única além do bar— nestes bairros periféricos. Também estão longe de serem movimentações marginais em termos de dinheiro. Nos fluxos muitas vezes nascem os grandes sucessos do gênero que se impõem nos ranking dos mais ouvidos das plataformas digitais e atraem produtoras milionárias do ramo. O crescimento das festas e o pancadão em alguns bairros de quarta a domingo, como o baile da Dz7, em Paraisópolis, não crescem sem tensão com o entorno e mesmo iniciativas de gestões anteriores para tentar disciplinar horários e ocupação como os chamados “permitidões” não foram completamente bem sucedidas.

Mas não é de hoje que negros ocupando o espaço público são motivo de preocupação para as autoridades e para parte da elite branca. Mario Augusto Medeiros da Silva, professor do departamento de sociologia da Unicamp, menciona um artigo escrito por Paulo Duarte (1899-1984), colunista do jornal O Estado de São Paulo, em 17 de abril de 1947, reproduzido em parte a seguir: “Os comícios de todas as noites na Praça do Patriarca e as concentrações também à noite de negros agressivos ou embriagados na rua Direita e na Praça da Sé [região central de São Paulo], os botequins do centro onde os grupos se embriagam, já estão provocando protestos (…) as famílias evitam passar”. A resposta para este problema? Um pouco de repressão e polícia, escreveu o jornalista. “O que mudou de 1947 até o massacre de Paraisópolis? Muito pouco com relação ao tratamento dado às populações negras e brancas pobres”, diz Silva.

Em bairros onde não existem opções de lazer, como ocorre na maioria das periferias brasileiras, a rua é uma das poucas opções. “A cidade de São Paulo é segregacionista com relação a pobres e pretos, aqueles que são historicamente considerados sub-humanos. As opções de lazer são hiper-concentradas em bairros específicos nas regiões central e oeste. Então o baile ocorre na rua, organizado de forma mais ou menos autônoma, sem custo de ingresso. Quem frequenta são pessoas que buscam lazer, o que é legitimo. São trabalhadores ou não, não importa, que ocupam o espaço da rua, que e o único possível para eles”, explica Silva.

Mesmo com toda a repressão o samba resistiu, e se consolidou ao longo do século passado como um dos grandes símbolos da cultura nacional. Os fluxos de São Paulo estão determinados a seguir o mesmo caminho, ao menos do ponto de vista da persistência. Apesar das bombas e prisões, continuam acontecendo, oferecendo uma opção de lazer barata, ocupando o espaço público e infernizando a vida de vizinhos com o barulho, muitas vezes de quarta e a domingo. Apesar do luto, em Paraisópolis a comunidade organizou um baile neste sábado em homenagem aos nove mortos. “Vão de branco”, diz o cartaz. Segue o baile.

Redação

4 Comentários

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  1. Mentira e puro coitadismo, exceto os abusos da polícia.
    Funk e bailes funk têm imagem ruim não por ter negros e pobres, mas por ter:

    1) músicas com pobreza harmônica.
    2) músicas com pobreza intelectual e com incentivo à traição conjugal e à sexualização precoce.
    3) bailes com sexo explícito em público pelos próprios ouvintes (confundem boate com casa de sexo/swing).
    4) bailes em terrenos de milicianos ou com gente ligada a eles.

  2. O poder público articula a polícia na manipulação do perigo, a mídia produz o discurso da violência que deságua na narrativa do medo, o geógrafo Milton Santos sacou há tempos esse arranjo sórdido. Por aí, enquanto o genocídio da população negra não for concluído, o esquema demonizador vai ser este.

  3. O fantástico livro de João José Reis retrocede anida mais do que o autor do artigo, ele mostra que já durante o período do Brasil Colônia e do Brasil Império que tanto os negros (os que eram nascidos no Brasil) como os africanos (os que tinham nascido na África) era vedada qualquer atividade que representasse a cultura do oprimido.
    A cultura popular sempre foi considerada uma forma de resistência e nem isto era tolerada, o medo das classes médias brancas era sempre o especto do Haiti, pois este havia corrido o branco do país e montado o seu próprio governo, que se transformou num país miserável devido às indenizações que deveriam pagar a França (que veio a ser perdoada somente no fim do século XX), o tal de “Liberté Égalité et Solidarité” só valia para o branco, francês e continental, isto é comprovado a medida que a escravidão foi extinta na Revolução Francesa no continente mas continuava nas colônias.

  4. Há uma diferença crucial. No passado, as áreas onde havia rodas de samba não eram dominadas por facções criminosas. Havia tão somente a rejeição àquele estilo de música e de vida. Isso é passado. O funk, como estilo musical, tem até bastante aceitação na classe média, embora alguns lamentem isso (basta ver o prestígio que funkeiros têm na mídia).

    De resto, o funk nada tem de cultura africana ancestral. É uma invenção dos guetos norte-americanos que chegou aqui.

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