Semidistritão, tomada de três pinos e jabuticaba, por Luis Felipe Miguel

Semidistritão, tomada de três pinos e jabuticaba

por Luis Felipe Miguel

Ao criticar a proposta do chamado “semidistritão”, Bernardo Mello Franco a chama de “a nova tomada de três pinos”, por ser “uma solução tupiniquim, de autoria desconhecida, que ajudará seus poucos criadores a se dar bem às custas da maioria”.

É comum falar mal da tomada de três pinos e realmente a mudança do padrão do plug causou e ainda causa aborrecimentos, mas a crítica vulgar que Franco reproduz é baseada em desinformação. O padrão que o Brasil adotou não é exclusivo. Pelo contrário, é o padrão proposto pela Comissão Eletrotécnica Internacional para se tornar universal. Além do Brasil, já está em uso em países como Suíça e África do Sul.

A mudança não é despropositada. Visa ampliar a segurança e evitar choques elétricos, que são a terceira causa de mortalidade infantil por acidente no Brasil. Mais de mil pessoas morrem por ano, no país, em consequência de choques. Houve erros na implantação no novo padrão, seja de comunicação, seja por permitir ganhos descabidos de certas indústrias, mas tenho a impressão de que muito da grita contra a tomada de três pinos veio de uma desinformação deliberada, no contexto da promoção do desgaste do governo Dilma Rousseff.

Franco também apela para outra metáfora surrada: o semidistritão seria uma “jabuticaba”, apresentada como símbolo de algo que só existe no Brasil. Há um curioso eurocentrismo nessa observação. A jabuticaba não existe só no Brasil; também está presente no Paraguai, na Argentina, na Bolívia. Seu “pecado” é não existir nos países no Norte.

O problema do semidistritão não é existir só no Brasil, como a jabuticaba mítica da comparação. Muita coisa que só existe no Brasil é muito boa: chorinho, paçoca, pão de queijo. Se olharmos com atenção para a vida política dos países centrais, com personalização das disputas, crescente irracionalidade do debate, ampliação das desigualdades, força cada vez maior da xenofobia e do racismo, redução da possibilidade de exercício da soberania popular, domínio do capital financeiro etc., temos que relativizar a ideia de que o caminho é imitá-los.

O problema do semidistritão não é ser ideia brasileira. É ser um sistema eleitoral ruim, apoiado em premissas contraditórias, cujos efeitos previsíveis são a oligarquização ainda maior da elite política, a depauperação do debate público, a destruição dos partidos e a ampliação do poder das igrejas e do crime organizado. É um sistema que aumenta os custos de governabilidade, sem ampliar, muito pelo contrário, a representatividade.

O chamado “distritão” (tecnicamente, “voto único não transferível”) transforma a disputa eleitoral numa corrida maluca entre os candidatos. Ganham os que obtêm mais votos, independentemente dos partidos. Vendido como forma de valorizar o voto popular, na verdade ele amplia o desperdício de sufrágio. Vamos supor que o candidato A obtenha 100 mil votos e se eleja. O candidato B também se elege, na última vaga, com 10 mil votos. Ora, isso significa que 90 mil votos dados a A foram despediçados: ele só precisava de 10 mil para obter a cadeira. No sistema proporcional, hoje em vigor, esses 90 mil “extras” ajudam a eleger correligionários de A. O distritão destrói de vez a solidariedade intrapartidária.

O semidistritão, que ainda não tem nome técnico (sugiro “voto único não transferível parcialmente bagunçado”), acrescenta ao modelo o voto de legenda. Agora posso escolher votar num partido, não num candidato; os votos de legenda serão divididos igualmente entre todos os candidatos de cada legenda. O voto de legenda vale, assim, uma fração do voto nominal em candidato. O efeito não é forte o suficiente para restaurar alguma solidariedade intrapartidária, mas destrói o único mérito do distritão, que era sua inteligibilidade intuitiva. Voltamos a ter um sistema em que um candidato com menos votos nominais (mas cujo partido teve mais votos de legenda ou lançou menos candidatos e assim distribuiu cotas maiores da votação em legenda para cada um) ganha a vaga de outro, que obteve maior votação.

Qualquer um dos dois sistemas amplia a imprevisibilidade das consequências do voto e dificulta um comportamento racional por parte dos eleitores. Tenho incentivos para transferir meu voto de um candidato preferido muito popular, cuja vitória seria “segura” (com o que meu voto seria desnecessário, inútil, inutilizado), para uma segunda opção,com chances eleitorais mais incertas. Mas se muitos fizerem o mesmo, o candidato de vitória antes tida como segura ficará sem mandato. Com o voto de legenda, é pior ainda. Somente uma antecipação muito precisa da votação provável de todos os candidatos daquele partido permitiria julgar se o voto na legenda é produtivo ou não.

Não vejo em que a pobre jabuticaba pode ser acusada de tantos defeitos.

[Em tempo: quem conhece mais do que eu diz que a adesão da África do Sul ao padrão da Comissão Eletrotécnica Internacional é balela. Então ficam Brasil, Suíça e Liechtenstein.]

Luis Felipe Miguel

2 Comentários

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  1. Parabéns Luis Felipe Miguel

    Parabéns Luis Felipe Miguel por abordar esse tema de maneira leve, e com isso, desmistificar, pondo a nú a falsificação que atribui equivocadamente como gatimonhas típicas do sub-desenvolvido povo brasileiro, autoria de tais bobagens.

    Sabe-se que certa parcela da classe média-triunfal da bananolândia, padece de vigoroso complexo de vira-lata. Dai, a tamanha reverberação de falácias como a da jaboticaba e demais abordadas em seu texto, repercutirem assim.

    Imagino o transtorno dessa gente, caso um sabotador, resolvesse provocá-los, plantando um pé de jaboticaba em Miami.

    Orlando

  2. Folha de SP plagiou o Blog:

    Postagem de ONTEM:

    Golpe: o que está por trás do tal “Distritão MISTO”

    Por Núcleo Duro

    – Uma conta de chegada:

    Como voto em legenda é um fenômeno de grande centro/ Sudeste/ Sul, devem ter rodado uma simulação com esse “distritão misto” e visto que assim colocam mais uma meia dúzia em SP/ MG do PT.

    Isso é conta de chegada pra acomodar o PT de SP!

    A questão é que o PT ~não~ é mais “governo federal” e provavelmente não deixarão que haja ~expectativa~ disso em 2018 na hora da eleição (“Lula Presidente”), para chegar a influenciar o voto pro Legislativo onde há tendência “governista”/ fisiológica.

    (“grotões”)

    Então, suponho que o PT deverá perder muito mais gente nos grotões do que seria compensado em SP e MG por meio desse “distritão misto”.

    *

    – Não renovação via grana:

    Dificulta-se a renovação MESMO no Sul, Sudeste.

    Deve-se lembrar que vem associado a financiamento público ~e~ limite de autofinanciamento. E o financiamento público depende da ATUAL força política.

    *

    – Cláusula de barreira:

    Quem não ultrapassa a barreira mas se elege teria direito a participar de Comissão?

    Se não tiver, melhor entregar o mandato (!)

    Comissão é onde 90% do processo legislativo se faz.

     

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