Sim, eu já recebi em consulta um gay que queria se curar, por Rita Almeida

Sim, eu já recebi em consulta um gay que queria se curar

por Rita Almeida

Eu já recebi, no meu consultório, demanda para curar um homossexual.

Foi há bastante tempo, nos meus primeiros anos de clínica. Não havia nem indício dessa discussão sobre a tão falada “cura gay”. Me lembrei desse caso madrugada passada, depois de dormir indignada com a liminar do Juiz do Distrito Federal, Waldemar Cláudio de Carvalho, em favor da “terapia psicológica de reversão sexual”, reiteradamente condenada pelo Conselho Federal de Psicologia.

Depois daquela pergunta clichê: “O que te trouxe até aqui?”, o sujeito em questão me disse que seu objetivo com o tratamento era deixar de ser homossexual. Me disse ainda que tinha se consultado com um psiquiatra e que pediu a ele medicações para inibir seu desejo sexual. O médico lhe deu a receita, mas sugeriu que ele procurasse um psicanalista e, por isso, ele estava ali, diante de mim.

Eu era uma psicóloga iniciante e aquele tipo de demanda me pareceu muito inusitada (e foi mesmo, nunca mais recebi algo semelhante). Eu estava avisada que a análise poderia livrar aquele sujeito de muitas coisas, menos do próprio desejo, mas, como ainda nem sabia nada sobre o desejo dele, me mantive em silêncio e deixei que falasse. Não disse que aceitava ou que recusava seu pedido de cura, apenas me dispus a escutá-lo.

Inicialmente, a análise girou em torno do “sintoma” que o sujeito trouxe como demanda inicial: sua atração por pessoas do mesmo sexo. Ele me relatava o sofrimento e a culpa que nutria cada vez que cedia ao seu desejo, especialmente por estar vinculado a uma religião com preceitos morais muito rígidos. Lutava com todas as suas forças contra tal desejo.

Levei o caso para o meu supervisor, intrigada, exatamente, com fato do sujeito considerar seu desejo sexual como doença a ser tratada, o que eu, de modo algum, tomava como um problema em si. Entretanto, o supervisor, sabiamente me atentou que ali não importava a minha opinião, mas, sim, a do analisando, e como este trazia sua orientação sexual do lugar de um sintoma naquele momento, era a partir disso que eu precisava escutá-lo. Eu disse: a partir disso.

E assim eu fiz. Partindo do tema inicial trazido, pudemos criar um laço transferencial que possibilitou um trabalho de análise, que não foi muito longo – ele encerrou quando percebeu que o tratamento não cumpriria sua expectativa inicial. Nesse sentido, houve trabalho suficiente para que a demanda primeira fosse desconstruída, e sua perspectiva de mudança de orientação fosse perdendo a importância para dar lugar à outras questões, outros sintomas e outras possiblidades. Ser ou não gay deixou de ser sua única via de representação no mundo.

Não posso dizer que o processo de análise levou o analisando em questão a “sair do armário” como era esperado (talvez mais por mim do que por ele). Todavia, durante aqueles meses, ele pôde “retirar muitas coisas do armário” a fim de deixá-lo mais leve e arejado. Sair dele, talvez, tenha se tornado apenas uma questão de tempo. Tempo que seria o dele, não o meu, obviamente.

Trouxe esse caso pra dizer uma coisa importante: Algumas pessoas, eventualmente, irão procurar profissionais “psi” para “curá-las” de sua orientação sexual, e não podemos culpá-las por isso, especialmente porque nossa sociedade é intolerante, violenta e preconceituosa para com os homossexuais.“Sair do armário”, portanto, não é uma tarefa simples, exige um esforço subjetivo que causa angústia e sofrimento, travessia que muitos não suportarão fazer ou não farão sem ajuda. Assim sendo, “sair do armário” não deve ser tratado apenas como uma bandeira universal dos gays, é preciso ser tomado também naquilo que é possível para cada um, a cada situação. Qualquer psicoterapia que se pretenda ética deverá estar atenta a isso.

Por fim, ainda que com todo o meu assombro diante da tal liminar e da necessidade de vir aqui defender o óbvio, o que me levou escrever este texto foi a fala do advogado Leonardo Loiola Cavalcanti, responsável pela apresentação da Ação Popular. Após a decisão do juiz ele diz: “Todos os psicólogos podem atender os homossexuais egodistônicos, aqueles que não se aceitam em sua orientação sexual, sem o receio de serem punidos pelo Conselho Federal de Psicologia. Viva a liberdade científica e o direito do consumidor!”

Primeiramente, é importante deixar bem claro para a sociedade que nós, psicólogos, podemos e devemos atender a todos os que nos procuram, independentemente da orientação sexual, da queixa inicial ou do tipo de demanda. Portanto, não pode haver nenhum tipo de restrição em acolher alguém que se nomeie como um “homossexual egodistônico”. Também, não há nenhum problema no fato de um sujeito demandar tratamento para se esquivar do próprio desejo – em última análise, todos estamos embaraçados com nosso desejo. O problema é quando um profissional, avisado do preço subjetivo a ser pago por este tipo de alienação, se dispõe a usar sua prática clínica para silenciar o desejo de alguém. E é lamentável, ainda, que uma questão dessas, que deveria orbitar no campo da ética de uma profissão, extrapole para os tribunais e seja solucionada com judicialização.

Mas a frase final do advogado é preciosa para que possamos compreender de que lugar nasce esse tipo de decisão bizarra. É ingenuidade acreditar que ela seja motivada, simplesmente, por um moralismo retrógrado. A frase escancara o tipo de discurso que está em jogo em nossa sociedade: a ciência a serviço do capital.

O psicanalista Jacques Lacan já nos avisava do risco do discurso capitalista, aquele no qual o consumidor está no comando. Quando quem agencia um discurso é aquele que pode pagar pelo produto/mercadoria, toda a ética, toda lei e todo laço se desfaz em nome do capital. Resumindo: se eu sou um consumidor, então tudo deve ser permitido em prol do meu objetivo de consumir, ainda que isso coloque por terra qualquer compromisso ético ou com o laço social.

Numa sociedade engolida pelo discurso capitalista tudo se torna mercadoria a ser consumida. Sendo assim, liberdade que o advogado comemora com um “viva” é a liberdade de consumir a ciência, ainda que isso se faça ao preço de consumir o próprio desejo dos sujeitos.

Rita Almeida

Rita Almeida

8 Comentários

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  1. Texto Rita Almeida
    Já atendi pessoa Trans até a conclusão de seu processo transsexualizador. Nosso papel é mesmo o de fazer companhia a quem nós procura, até que seu projeto de vida se concretize. É pra isto, têm os que atravessar com estas pessoas, seu mundo é o mundo onde se encontra! Ufa! Mas vale a pena.

  2. Bom dia. Perfeita sua

    Bom dia. Perfeita sua opinião. Os homossexuais são angustiados por inúmeras pressões. E sabemos que é impossível desfazer a escolha sexual que se faz na infância. Se houvesse aceitação, não se pensaria em uma excrescência chamada “Cura Gay”. E mais do que nunca, como bem já sinalizava Lacan, vemos a ciência devotada ao capital. O que é lastimável!

  3. não por acaso uma profissão

    não por acaso uma profissão de estado, a de juiz, é regiamente paga: está a serviço da regulação, não da emancipação, para lembrar Boaventura Santos. ciência a serviço do capital é truísmo dizer: tornou-se tecnologia e tecnologia para bisbilhotar e fazer guerra, ou seja, matar. não há neutralidade, nem neste comentário. 

  4. Essa tal de cura-gay vem

    Essa tal de cura-gay vem tomando forma com a ascenção dos falsos-crentes, que, em nome de Deus, sentem-se donos da vida dos seus fiéis, e, afora tantas barbaridades provocadas nos cultos aos incautos, uma tem sido essa: de entenderem que hossexualidade é coisa do cão, ou uma doença malígna, que precisa de apoio terapêutico. Vale dizer que temos visto gente, como Dallagnol, um procurador da República, fazendo política dentro dessas igrejas, e, como ele, outros tantos em evidência em diversas áreas iportantes, comprando essas ideias, ou fingindo que as compram, porque, a maior parte dos que dominam esses fieis, estão, em verdade, pensando no seu próprio futuro, visto que deles nasce a riqueza dos comandantes dos templos. É o caso do jogador Kaká e a ex-esposa, que já tem igrejas fora do Brasil; ou de Neymar, que, embora um curtidor de baladas, comedor de mulheres bonitas, tem aparecido na mídia com coisas como uma faixa de 100% Jesus para se dizer o crente, quando está na mesma linha de outros, visando seu futuro numa igreja sua, sob seu comando, sendo mais um a alienar as massas, enquanto lhes rouba o pouco que possuem com mentiras e sonhos irrealizáveis.

    O mais penoso que assisto em toda a minha vida sobre essas pessoas que vivem no armário por tantas décadas, ou até por toda a sua vida, é o fato de carregarem um culpa horrível, sendo muito infelizes, mas, que guiados pela opinião social, ou pra não ofender os pais; a família, partem para o bissexualismo, aí não só permanecendo mais culpado e infeliz, como promovendo sua miséria humana a outros. É o caso de um homem que se divide sexualmente, mesmo sabendo gostar mais do outro. Casa com uma mulher para manutenção de aparências; e se um dia é chegado para a esposa descobrir que foi enganado, vem o desespero, o ódio. 

    Um dia foi reportado na televisão o caso de uma senhora portuguesa, que morava no Centro do RJ, e vivera quase 04 décadas com seu único marido. Com a morte dele, ela foi procurada para se submeter a um exame de AIDS, quando descobriu ser soroposivo. Na sequência, descobriu também a identidade do marido morto. Ele fora um bssexual a vida inteira, que contraiu a doença e a manifestou à companheira fiel. Esses casamentos oportunistas existem, e sempre existirão. Portanto, melhor que a sociedade se conscientizes, e a justiça proteja esses diferentes, porque o mal maior está no não reconhecimento, e não o contráio.

     

  5. Os evangélicos usam a justiça

    Os evangélicos usam a justiça para poder curar gays.

    O que eu quero saber, porém, é outra coisa.

    Quando a justiça católica começará a autorizar o tratamento rigoroso e à moda antiga dos hereges evangélicos?

  6. Esse artigo é revelador sobre o assunto

    http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/outros-destaques/siga-o-dinheiro-%e2%80%93-o-que-esta-por-tras-da-%e2%80%9ccura-gay%e2%80%9d/

    Siga o dinheiro – o que está por trás da “cura gay”

    por Congresso em Foco | 21/09/2017 07:30
    CATEGORIA(s): Direitos Humanos, Fórum, Outros destaques

    Por Leonardo Rossetto*

    Eu quero apresentar um aspecto bem menos moral e mais pragmático da questão da “cura gay”. Chama “follow the money“. O Pastor Malafaia tem um escudeiro na Câmara: o deputado Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ). Isso nem é segredo.

    A coitadinha da psicóloga que entrou com a ação pela “cura gay” não é só psicóloga: é assessora do deputado Sóstenes.

    Agora vamos fazer uma breve cronologia:

    2011 – Malafaia investe numa rede de clínicas de recuperação;

    2012 – Silas Malafaia investe mais ainda em clínicas de recuperação;

    2013 – Marco Feliciano (PSC-SP) entra na chefia da Comissão de Direitos Humanos (CDH) da Câmara (meu Deus do céu, PT…) e por pedido de Malafaia aprova o projeto da cura gay. Sim, foi NO MEIO daquela bagunça das manifestações;

    2014 – Pr. Eurico (PHS-PE), outro da bancada jihadista evangélica, reapresenta o projeto da cura gay;

    2015 – com Cunha presidente da Câmara, Marco Feliciano reapresenta DE NOVO o projeto da cura gay.

    Depois de terem o mesmo projeto arquivado três vezes, a bancada evangélica decidiu que o jeito seria apelar pro Judiciário. E daí finalmente acharam um juiz que fosse conservador o suficiente pra tomar uma decisão que os agradasse

    Bem, mas o que isso tem a ver com as clínicas de recuperação do Malafaia? É relativamente simples:

    Vocês lembram no começo do ano quando o Dória queria levar a Cracolândia inteira pra clínicas de recuperação pagando diária para as clínicas? Isso geralmente ocorre com o conveniamento de clínicas para recuperação de dependentes junto à prefeitura ou ao estado. A clínica apresenta documentação, é conveniada e o estado paga mensalmente a quantidade de diárias de internação estabelecidas em contrato.

    Cientista social aponta conexões entre interesse da bancada evangélica no projeto da “cura gay” e compra de clínicas de recuperação pelo pastor Silas Malafaia

    Pois bem, qual é o pulo do gato? Com a cura gay, pessoas poderão ser levadas pelos pais ou parentes num Centro de Referência de Assistência Social (Cras) ou num Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) buscando tratamento de reversão sexual. Daí o governo vai ter que credenciar clínicas que façam esses tratamentos, afinal é um direito de todos e dever do Estado.

    Na hora de credenciar essas clínicas, quem estará lá todo feliz credenciando suas clínicas em busca de grana pública pra cura gay?

    SILAS MALAFAIA

    Não é coincidência que o lobby pela cura gay tenha começado logo após Malafaia montar a sua rede de clínicas de recuperação.

    Vocês entenderam que Malafaia é muito mais perigoso que um mero pastor extremista? Ele quer usar a cura gay para captar dinheiro público. Por trás de todo moralismo há um motivo tacanho e hipócrita, não adianta. O do Malafaia é ganhar mais dinheiro.

    Jesus: “é impossível servir a Deus e ao dinheiro”.

    Paulo: “O amor ao dinheiro é a raiz de todos os males”.

    Esses trechos da Bíblia Malafaia não lê

    Enfim, tá aí o esquema exposto.

     

    * Leonardo Rossetto é cientista social, mestre em Planejamento Territorial e especialista em Políticas Públicas. Define-se como cristão.

  7. Não sou filiado a nenhuma

    Não sou filiado a nenhuma igreja ou grupo religioso. Minha religião a pratico pessoalmente, sem imposições. Mas, no momento constato um aumento exponencial do preconceito e generalização contra as pessoas que praticam a fé filiando-se a uma denominação dita evangélica. Ora, a rejeição ao homosexualismo não é e nunca foi exclusividade dos evangélicos, outrora chamados “protestantes”. Em quase todos os grupos religiosos, de origem cristã ou não, há essa rejeição, Por que os defensores das decisões do Conselho de Psicologia não discutem de forma razoável, científica e preferem partir para a demolição dos religiosos menos protegidos? Seria falta de embasamento científico para defesa de seus pontos de vista ou mero preconceito? Essa discussão, que neste momento poderia ser esclarecedora, por conta dos que abominam a chamada “cura gay”, seja lá o que isso signifique, prefrem a baixaria em suas argumentações, a desconstrução dos oponentes (que nem mesmo estão se manifestando), que a discussão séria.

    Pessoalmente abomino posicionamentos como aqueles dos “pastores” Silas Malafaia, Marco Feliciano e outros do mesmo baixo nível. Mas isso não deve motivar a colocar todos os demais que professam sua fé no mesmo patamar desses citados. Vamos discutir com sabedoria? Essa baixaria não ajuda em nada aqueles que buscam o sexo de forma não convencional.

    Católicos romanos, judeus, muçulmanos e outras tantas religiões não aceitam o sexo que não seja entre homem e mulher. Se é para atacar os oponentes, qual a razão de serem poupados?

     

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