Tabata Amaral e a disputa pela racionalidade política, por Caio Peçanha

Não se trata de corrigir o funcionamento de determinadas peças a fim de sanar uma distorção, mas de questionar a própria utilidade da maquinaria. Não basta discordar na palavra, é preciso reformular a linguagem, o desejo.

Foto Luís Macedo – Câmara dos Deputados – modificada

Tabata Amaral e a disputa pela racionalidade política

por Caio Peçanha

Passei algumas tardes inquieto com todo o debate em torno da figura da deputada Tabata Amaral. Fico incomodado com a pobreza crítica de grande parte da esquerda, cujos argumentos mais parecem rótulos tais quais “traidora do povo” e afins. No fundo, termos como este soam apenas como modo de bloquear a reflexão acerca de nossos próprios equívocos. Depois de ler a coluna da parlamentar na Folha de São Paulo, no final de semana passado, no entanto, fico mesmo tentado a colocar minhas inúmeras discordâncias no papel.

O texto-defesa da pedetista, pretensamente intitulado de “a ousadia de ir além das amarras ideológicas” é uma terra árida de pensamentos. Para Tabata, há na esquerda dois polos distintos: um radical e outro de tendência moderada (centro-esquerda, ou coisa que o valha). Um representa a velha política, com suas aspirações apaixonadas e intransigentes, marcada por certa incapacidade de diálogo, por pensamentos que, no fundo, careceriam de conexão com a realidade; o outro manifesta uma nova concepção do campo, ligada à procura de um debate desapaixonado, frio, cuja principal expressão é o diálogo técnico acerca de pautas econômicas junto a uma defesa das liberdades individuais.

Formada em Harvard, a deputada faz o corte entre as duas posições, situando-se numa centro-esquerda interessada em promover uma discussão “racional”, com análise objetiva do que funciona ou não, do que é ou não efetivo para “melhorar a vida das pessoas”; e, portanto, acima da ideologia (entendida pauperrimamente como adesão a grandes narrativas – utopias). Do outro lado está a parcela da esquerda que não sabe debater, que desconhece o dado X, que grita no plenário, que acredita em comunismo. Em suma, figuras da racionalidade e seu oposto. Racionais aqueles que conseguem perceber o que deve ser feito na economia, obedecer ao pragmatismo, aos dados (“olha, isso não funcionou em lugar algum do mundo”). Tautologia pura, cantaria Caetano, “o certo é dizer que o certo é certo”.

Dito isso, afirmaria que a crítica de esquerda erra ao mirar esforços no voto da parlamentar. No final das contas, isso talvez seja o menos importante. Excluído este deslize, por tal lógica, ainda seriam obrigados a considerá-la uma companheira em função da adesão a lutas multiculturais. A parcela que assim raciocina, entretanto, parece incapaz de criticar seu próprio modo de atuação ao longo das últimas décadas. Deveríamos, desta forma, trazer a discordância para o nível do conceito e, assim, pensar o que significa ser de esquerda.

Como nos lembraria Jacques Rancière, a política não tem a ver com “o conjunto de processos pelos quais se operam a agregação e o consentimento das coletividades, a organização dos poderes, a distribuição dos lugares e funções e os sistemas de legitimação dessa distribuição”. Noutras palavras, a política não é um processo de gestão a ser conduzido por quadros técnicos como Tabata. Neste sentido, para o pensamento de esquerda, a pedetista se equivoca duplamente: num primeiro momento ao identificar o par política-administração (esvaziando consequentemente uma contradição que, em nossa concepção, habita o seio do social) e, logo em seguida, ao dizer que essa é uma nova tendência.

Deve ter passado os últimos 25 anos numa caverna a deputada Tabata Amaral. O Brasil viveu durante 6 governos PSDB-PT um exemplo singular dessa lógica. O presidencialismo de coalizão sempre teve seus alicerces em um sistema de controle do horizonte de transformações sociais como contrapartida da adoção mais ou menos rígida de certo receituário econômico. A esquerda que a parlamentar agora chama de irracional (PT) não teve problema algum em “propor um diálogo acima da ideologia” e aprovar uma reforma da previdência em 2003.

Tal feita, Tabata não deixou de ser de esquerda por ter votado a favor da reforma. Ela nunca foi. É mais um exemplo patente da total falta de imaginação política de nosso campo, hoje restrito à empunhadura de meia dúzia de bandeiras multiculturais incapazes de vislumbrar uma alteração efetiva em nossa realidade. Falta aos economistas de plantão compreender que o povo brasileiro já percebeu as limitações dessa “negociação acima da ideologia”: se elegeu aquele cuja imagem mais facilmente se opunha ao sistema (no nível das aparências). Ou alguém poderia ressuscitar a figura de Marina, a fim de exemplificar o destino dessa tendência “pragmática” da “nova política” de 30 anos atrás?

Contra a pobreza de reflexão latente no texto da deputada, a esquerda deveria insistir nos sonhos, pois, como advogariam, cada qual a sua maneira, teóricos como Rancière e Badiou, a política é uma discordância fundamental, constitutiva. Não se trata de corrigir o funcionamento de determinadas peças a fim de sanar uma distorção, mas de questionar a própria utilidade da maquinaria. Não basta discordar na palavra, é preciso reformular a linguagem, o desejo. Neste sentido, todas as vezes em que discutirmos “economês”, nesses termos, a questão vira um verdadeiro “lugar de fala” (“olha, você desconhece esse dado, você não leu o livro tal”). A discordância está no conceito: liberdade, para eles, é a escolha entre os termos. Para nós, é a reformulação do próprio problema, é forjar uma resposta tida como irracional. Não temamos, portanto, sermos tidos como infantis. Vale o mote de 68, “sejamos realistas, peçamos o impossível”.

Redação

3 Comentários

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  1. O Jorge Paulo Lehmann criou essa menina para tranformar esquerda em direita. O resto é papo furado.

    “É mais um exemplo patente da total falta de imaginação política de nosso campo, hoje restrito à empunhadura de meia dúzia de bandeiras multiculturais incapazes de vislumbrar uma alteração efetiva em nossa realidade.” – Fale por você, eu e muita gente nunca deixamos de lado a pauta político econômica-trabalhista para ficar nos masturbando com “identitarismo”. Desculpe a grosseria, mas é papo reto.

  2. André, eu acho incrivelmente; que penso exatamente o que vc. expôs ! Achei o artigo do Caio, ideias em zig zag, uma hora fala uma coisa, outra hora fala outra coisa ! Querem que esquerda tenha um pensamento maleável, discutido no chá das 5 das senhoras britânicas ! Ora, ora, nossa direita é nazifascista, apoiada por uma justiça que age igual, a uma que foi toda enforcada em Nuremberg !!!!!!!!!!!!

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