Thermidor à brasileira, por Fábio de Oliveira Ribeiro

No Brasil, a tragédia do genocídio pandêmico não é capaz de produzir debates tão acalorados no parlamento e na imprensa quanto a peça Thermidor de Victorien Sardou.

Thermidor à brasileira… nem pensar, o Herodes da Casa Branca não permitirá

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Antes de começar, gostaria de ressuscitar aqui um interessante debate parlamentar ocorrido na França no final do século XIX que foi explorado num texto de Steven M. Beaudoin:

“Early in the session, two days after Thermidor’s suppression, Henry Fouquier and Joseph Reinach denounced the government for reversing its initial approval of the play. This reversal, they claimed, was politically motivated, sparked by the fear of an interpellation from the Extreme Left demanding to know not only how the censor could allow the presentation of such an anti-republican play, but also how it could do so when the venue for that play would be the famed and, more importantly, government-subsidized stage of the Comédie-Française.19 Furthermore, Reinach refused to believe that the government had no option but to suppress a play when confronted with a public disorder caused by twenty-five to thirty spectators. These viewers, he added, had the right to criticize the play but not to impinge on the liberty of the dramatic arts.

While these claims produced disdain from the Left and support from the Right, conflict truly erupted when Fouquier and Reinach turned their attention to the legacy of the Revolution. Like Sardou, they viewed the play not as a condemnation of the Revolution, but of Robespierre and the Terror. Consequently, they argued that the government was wrong to protect the false sanctity of Robespierre. Rather, it was essential to separate the glorious aspects of the Revolution from the tyrannical. Fouquier insisted that a choice had to be made between Robespierre and Danton: “…that Robespierre was the enemy and the evil genius of the Republic, or … that the evil republicans were named Barbarous and Danton, and that the true republic is dictatorship and Terror.”20 In his estimation, Sardou had chosen wisely. While Reinach admitted that Sardou’s play did not depict the dangers posed by the war and counterrevolution, he insisted that one could not forget the permanence of the scaffold, justice without deliberation, and the slaughter of women, children, and the aged. Finally, to those who felt that Thermidor insulted the Republic, he responded that the insult came from those who, taking the revolutionary tribunals for the Revolution, ignored the violent crimes of the Terror.

This view of the Revolution incurred the wrath of many on the Left who frequently interrupted Fouquier and Reinach with such exclamations as “You forget that these men saved France!” and “You would not be French without him!” The first formal response, however, did not assail this interpretation of the Revolution alone, but remained on the immediate question of censorship. Georges Leygues, Deputy for Lot et Garonne, objected to the use of the ComédieFrançaise, a subsidized stage, for “a long diatribe not only against the Terror, but also against the Revolution.” He likened Thermidor to an anti-republican political pamphlet. Quoting from the Rightist newspaper Le Gaullois, he justified the government’s measures by claiming that monarchists, in their own words, viewed the play as a call to action. But the clearest and most controversial response from the Left came from Georges Clemenceau, leader of the Radicals and by far the most dynamic man to approach the rostrum that day. As the saying went, “Everyone feared his pen, his tongue, and his sword,” and on this day he unleashed his verbal acumen. He claimed that the Chamber was mistaken if it believed the coming vote a statement for or against Robespierre or Danton. Attempts to divide the Revolution and accept or reject certain aspects were impossible. Nor did he believe that the Chamber could, by this vote, augment or diminish the Revolution’s legacy. “Gentlemen,” he declared, “whether we want or not, whether it please or shock us, the French Revolution is a block… a block from which we can separate nothing – because historic truth will not permit it.” This “truth” explained why Thermidor, because it rejected a part of the Revolution, slandered the whole. Furthermore, the Right’s appreciation of the play affirmed its counter-revolutionary content. Knowing it would be impossible to stage a defense of monarchy on a government-subsidized stage, the monarchists hid behind Danton’s memory. After all, he asserted, note who applauds Sardou’s efforts.

Clemenceau also reminded Reinach, who rejected the revolutionary tribunals in operation during the Terror, that they had both had recourse to a similar panel: the Haut Cour de Justice. The analogy surely attracted the attention of many in the Chamber. Like the revolutionary tribunals, when the Senate was convened as a High Court, most constitutional safeguards became impotent. It was an effective means of dealing with various crises and a means that the Third Republic’s politicians were not unaccustomed to using. In fact, the Assembly had recently reverted to this measure during the Boulanger Affair.21 Clemenceau claimed that he was not ashamed of his involvement in the suspension of certain individual rights when the Republic was endangered. The provision of a High Court had been established and used by men who had feared for the safety of the Republic and the country. Under critical conditions, the founders of the Third Republic and the politicians who followed them, like their predecessors during the First Republic, condoned such revolutionary measures. While Reinach, himself, took issue with this comparison, for many Deputies it was all the more uncomfortable for its accurate reflection of reality.”

http://www.afsp.msh-paris.fr/activite/groupe/grpp/grpp131010textes/s2beaudoin.pdf

Tradução:

“No início da sessão, dois dias após a supressão da peça Thermidor [Victorien Sardou], Henry Fouquier e Joseph Reinach denunciaram o governo por reverter sua aprovação inicial da peça. Essa reversão, afirmaram, foi politicamente motivada, desencadeada pelo temor de uma interpelação da extrema esquerda exigindo saber não apenas como a censura poderia permitir a apresentação de uma peça tão anti-republicana, mas também como poderia fazê-lo quando o local dessa peça seria o famoso e, mais importante, o palco da Comédie-Française subsidiado pelo governo. Além disso, Reinach se recusou a acreditar que o governo não tinha outra opção a não ser suprimir uma peça quando confrontado com uma desordem pública causada por vinte de cinco a trinta espectadores. Esses espectadores, acrescentou ele, têm o direito de criticar a peça, mas não de infringir a liberdade das artes dramáticas.

Embora essas reivindicações tenham produzido o desdém da esquerda e o apoio da direita, o conflito realmente eclodiu quando Fouquier e Reinach voltaram sua atenção para o legado da Revolução. Como Sardou, eles viram a peça não como uma condenação da Revolução, mas de Robespierre e do Terror. Consequentemente, eles argumentaram que o governo estava errado em proteger a falsa santidade de Robespierre. Em vez disso, era essencial separar os aspectos gloriosos da Revolução dos seus defeitos tirânicos. Fouquier insistiu que uma escolha deveria ser feita entre Robespierre e Danton: “… que Robespierre era o inimigo e o gênio do mal da República, ou … que os republicanos do mal foram chamados de Bárbaros e Danton, e que a verdadeira república é a ditadura e o Terror.” Em sua opinião, Sardou escolhera sabiamente. Embora Reinach admitisse que a peça de Sardou não retratava os perigos representados pela guerra e pela contra-revolução, ele insistiu que não se podia esquecer a permanência do cadafalso, a justiça sem deliberação e o massacre de mulheres, crianças e idosos. Por fim, aos que achavam que a peça Thermidor insultava a República, respondeu que o insulto vinha daqueles que, tomando os tribunais revolucionários da Revolução, ignoraram os violentos crimes do Terror.

Essa visão da Revolução gerou a ira de muitos da esquerda que frequentemente interrompiam Fouquier e Reinach com exclamações como “Você se esquece de que esses homens salvaram a França!” e “Você não seria francês sem ele!” A primeira resposta formal, entretanto, não atacou apenas essa interpretação da Revolução, mas permaneceu na questão imediata da censura. Georges Leygues, deputado de Lot et Garonne, se opôs ao uso da Comédie-Française, um palco subsidiado, para “uma longa diatribe não só contra o Terror, mas também contra a Revolução”. Ele comparou a peça Thermidor a um panfleto político anti-republicano. Citando o jornal de direita Le Gaullois, ele justificou as medidas do governo alegando que os monarquistas, em suas próprias palavras, viram a peça como um apelo à ação. Mas a resposta mais clara e controversa da esquerda veio de Georges Clemenceau, líder dos Radicais e de longe o homem mais dinâmico a se aproximar da tribuna naquele dia. Como diz o ditado: “Todos temiam sua pena, sua língua e sua espada”, e neste dia ele lançou sua perspicácia verbal. Ele alegou que a Câmara se enganou se considerou a votação próxima uma declaração a favor ou contra Robespierre ou Danton. As tentativas de dividir a Revolução e aceitar ou rejeitar certos aspectos eram impossíveis. Tampouco acreditava que a Câmara pudesse, com essa votação, aumentar ou diminuir o legado da Revolução. “Senhores”, declarou ele, “queiramos ou não, choque-nos ou não, a Revolução Francesa é um bloco… um bloco do qual nada podemos separar – porque a verdade histórica não o permite.” Essa “verdade” explicava porque a peça Thermidor, por rejeitar uma parte da Revolução, caluniava o todo. Além disso, a aprovação da peça pela direita confirmou seu conteúdo contra-revolucionário. Sabendo que seria impossível encenar uma defesa da monarquia em um palco subsidiado pelo governo, os monarquistas se esconderam atrás da memória de Danton. Afinal, afirmou ele, observe quem aplaude os esforços de Sardou.

Clemenceau também lembrou a Reinach, que rejeitou os tribunais revolucionários em funcionamento durante o Terror, que ambos haviam recorrido a um painel semelhante: o Haut Cour de Justice. A analogia certamente atraiu a atenção de muitos na Câmara. Como os tribunais revolucionários, quando o Senado foi convocado como Tribunal Superior, a maioria das salvaguardas constitucionais tornou-se impotente. Foi um meio eficaz de lidar com várias crises e um meio que os políticos da Terceira República não estavam acostumados a usar. Na verdade, a Assembleia reverteu recentemente a esta medida durante o Caso Boulanger. Clemenceau alegou que não tinha vergonha de seu envolvimento na suspensão de certos direitos individuais quando a República estava em perigo. A provisão de um Tribunal Superior foi estabelecida e usada por homens que temiam pela segurança da República e do país. Em condições críticas, os fundadores da Terceira República e os políticos que os seguiram, como seus predecessores durante a Primeira República, toleraram tais medidas revolucionárias. Embora o próprio Reinach discordasse dessa comparação, para muitos deputados ela era ainda mais incômoda por seu reflexo preciso da realidade.”

No Brasil, a tragédia do genocídio pandêmico não é capaz de produzir debates tão acalorados no parlamento e na imprensa quanto a peça Thermidor de Victorien Sardou.

Tudo se passa como se as mortes intencionalmente causadas por Bolsonaro não tivessem realmente ocorrido. Nem mesmo o relatório da CPI da COVID foi capaz de chacoalhar a opinião daqueles que controlam a opinião publicada.

A rejeição do genocídio pandêmico foi condenada ao isolamento. Ela ocorre nos blogues, mas estes não conseguem romper o véu de normalidade criado pela imprensa para proteger um presidente bestial e sua gangue de Ministros genocidas.

Salvo exceções (e eu gostaria de citar aqui o jurista Conrado Hubner), a grande imprensa trata a questão da vacinação infantil como se ela fosse passível de debate concedendo espaço exagerado àqueles que insistem em impedir a imunização de vítimas em potencial da pandemia. Enquanto o público é seduzido com uma cortina de fumaça, a pandemia volta a se alastrar e está prestes a se tornar incontrolável. O Ministério da Saúde parece apostar na maximização do número de mortes, pois nem adota medidas de restrição nem tampouco mantém um programa coerente e eficiente de testagem em massa da população.

O relatório da CPI da COVID está sendo minimizado pelo PGR. Apesar das provas coletadas pelos senadores, Augusto Aras ainda não ofereceu nenhuma denúncia criminal contra Bolsonaro. A negação da ciência, como arma política, ganha força justamente porque o PGR é devotado às tecnicalidades jurídicas.

No Twitter, um Desembargador do TJSP admitiu ter matado uma barata em sala de aula https://twitter.com/marcelo_semer/status/1479769932837658634?s=20. O espetáculo das 400 mil baratas mortas no Brasil com ajuda da pandemia não tem o mesmo potencial dramático, político e parlamentar da peça Thermidor de Victorien Sardou. Matar 400 mil baratas não faz de Bolsonaro um tirano mais sanguinário do que Robespierre? Bem… É evidente que não é crime humanizar baratas. Todavia, “baratizar” seres humanos não deveria ser uma tecnicalidade jurídica que precisa ser estudada melhor pelo PGR.

“Gente o mito só matou baratas…”

Os franceses debatem intensamente o Terror, mas a verdade é que eles também demoraram muito para interrompê-lo. Como disse Clemenceau, não é possível separar o Terror da Revolução. Ambos fazem parte do mesmo fenômeno histórico.

Nós estamos demorando muito para interromper a bestialidade do governo Bolsonaro. Mas isso não significa que ele faça parte de uma revolução. No máximo ele é parte do golpe de estado de 2016, que foi dado por parlamentares com ajuda de pastores evangélicos, jornalistas, militares e barões da mídia. A embaixadora dos EUA cumpriu um papel importante nesse episódio. Talvez isso explique a persistência da matança. As forças que derrubaram o PT não querem derrubar Bolsonaro. Elas preferem sacrificar as crianças brasileiras.

Conrado Hubner tem chamado o Ministro da Saúde de Queirodes. Isso é importante, mas não deixa de ser uma simplificação. Nesse momento o verdadeiro Herodes está tomando café na Casa Branca. E ele não fará nada para ajudar os brasileiros a representar seu próprio Thermidor. Não será possível arrastar Jair Bolsonaro do Palácio do Planalto direto para o cadafalso, pois o genocídio pandêmico não pode ser separado do golpe de 2016. Ambos fazem parte do mesmo fenômeno histórico que transforma o direito de exterminar pessoas num espetáculo tolerável pela imprensa.

Alguém viu Sérgio Moro criticar o genocídio pandêmico?

Ao que parece, o juiz suspeito que virou político provavelmente não tem dúvida de que seu ex-patrão está apenas exterminando baratas. Além disso, não podemos separar as tecnicalidades jurídicas importadas dos EUA por Sérgio Moro e as ilegalidades cometidas durante a operação Lava Jato do golpe de 2016. Um episódio não teria ocorrido sem o outro. Nesse sentido, o genocídio pandêmico pode ser considerado um desdobramento inevitável (e talvez desejado) do extermínio de empresas brasileiras. Fragilizada pelo desemprego e pela fome que foram causadas por Sérgio Moro, a população brasileira se tornou mais suscetível à pandemia.

Mas a grande imprensa não quer ver esse detalhe. O herói da Lava Jato não pode ser coautor da matança das crianças brasileiras que ficarão sem vacina. Segundo Clemenceau, a teatralização do Thermidor, por Victorien Sardou, foi útil à direita francesa e aplaudida pelos monarquistas.

A não dramatização jornalística do genocídio pandêmico parece está servindo muito bem à direita brasileira, pois uma parte dela não quer se livrar de Bolsonaro antes da eleição nem comprometer as chances eleitorais de Moro. A matança das crianças brasileiras continuará, pois ela é um legado legítimo do lavajatismo processual e midiático.

Deltan e Moro condenaram Lula sem que ele tivesse cometido qualquer crime para impedi-lo de ganhar as eleições em 2018. Nesse momento, as criancinhas brasileiras estão sendo condenadas à morte sem qualquer tipo de processo. Isso é essencial para garantir uma vitória de Sujo Moro na eleição de 2022? O decreto do Herodes na Casa Branca não pode ser desafiado pelo MPF? Desde quando a esquerda brasileira tem que se curvar aos caprichos infanticidas de um presidente norte-americano?

Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Redação

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador