Um nove de outubro sob nuvens fascistas, por Daniel Gorte-Dalmoro

Um nove de outubro sob nuvens fascistas, por Daniel Gorte-Dalmoro

Sigur Rós me deixa um pouco à flor da pele. Um pouco mais, na verdade, porque à flor da pele já ando com a situação do país – eu e tantos amigos meus. O ódio, a burrice, a cegueira e a desumanização  do outro encarnado num candidato militar mal treinado e de raciocínio precário. Sua derrota dia 28 será apenas barrar o desastre total, dar força para uma possível resistência. A mobilização permanente deverá ser a tônica dos próximos tempos, sob o risco de cairmos no totalitarismo neofascista-neoliberal. Uma das nossas missões para tão logo encerre as eleições: fazer as pessoas serem capazes de enxergar. Enxergar o outro como um próximo, um igual, o outro como um ser humano – talvez, antes, ser capaz de fazer a pessoa enxergar a si própria como um ser humano, e não qualquer fantasia rota de super-homem (no sentido nietzschiano) que usa para encobrir sua mediocridade, seu ressentimento, sua frustração em não ser o que o espetáculo diz que deveria ser e ela finge encarnar.

São duas da tarde, já conversei pelo facebook, já mandei um calaboca pelo facebook, já expliquei que política é algo mais complexo que voto na urna, já li muita coisa, compartilhei, escrevi. Agora me dedico a preparar o boletim mensal do Serviço Pastoral dos Migrantes, parte de meu trabalho voluntário de quase quatro anos. São notícias de coisas pequenas, de banalidades das quais a vida é feita: uma reunião aqui, uma missa acolá, um encontro, uma mística com alguns migrantes e imigrantes, um apoio, uma acolhida, um protesto. No meu tempo de faculdade, diria que esse tipo de ação não era para mim, que isso beirava a insignificância, na minha fantasia de que eu deveria me dedicar a uma grande ação – pensamento infantil quebrado pela ação do tempo bem aproveitado, transformado em experiência e maturidade. Muitos dos meus amigos de antanho me olham estranho quando falo do meu trabalho na igreja, e eu sei porquê, e logo explico: sigo ateu, tanto quanto sempre fui, talvez até mais, mas se for buscar uma ação social que eu concorde 100%, me restaria agir sozinho ou em algum grupelho minúsculo, em ações estéreis – mas que poderiam me fazer convencer as paredes do quarto e dormir tranquilo. Prefiro conviver com a diferença, abrir mão de crenças secundárias da minha parte em nome de uma ação um pouco mais efetiva. Uma ação que vise um mundo mais justo e humano – sigo um “humanista ingênuo”, como me acusavam na faculdade, definitivamente eu não soube me tornar um adulto responsável e por isso sigo em lutas “idealistas”.

Uma dessas notícias que subo para o boletim é do recebimento, por parte de imigrantes que fazem curso de português em Manaus, de um kit com apostila, caderno, lápis, borracha, caneta. Há duas fotos que acompanham a brevíssima descrição. Nelas, 25 pessoas, a maioria negra, mostram suas pastas coloridas – pastas simples, dessas compradas em qualquer papelaria, sem qualquer personalização -, muitas sorriem para a foto, fazem sinal de positivo, algumas se escondem atrás dessas mesmas pastas. Estão ali, orgulhosas de uma caneta, um lápis, uma borracha, um caderno e uma apostila de português. Uma caneta simples, um lápis simples, uma borracha simples, um caderno simples e uma apostila de comunicação e expressão em português e cultura brasileira. Não é um diploma universitário, não é o carro do ano, não é um jantar em algum restaurante de chef que eles ostentam para a câmera. É um kit de cinco reais e aulas que não dão certificado. É quase nada. E mesmo sendo quase nada, para essas 25 pessoas vale muito, vale um fio de esperança com a qual pretendem tecer uma nova vida, por isso mostram suas pastas e seus sorrisos. E por um instante tentam esquecer das agruras que passaram para chegar nesse quase nada que é tanto, é motivo de orgulho, e das dificuldades homéricas que certamente ainda terão pela frente, até terem uma vida digna, uma vida humana – uma vida que não seja sobrevivência.

Olho para a rua chuvosa, nesta terra que pariu o neofascista Dallagnol, falso profeta de deus. Meus vizinhos babam ódio, fazem promessas falsas para um deus que abominam, idolatram a morte, invejam o amor e a vida, mesmo a miserável – que ainda assim é pulsante. Trocaram sua humanidade pelo carro do ano (e agora nutrem a ilusão de que uma arma poderá substituir seu genital murcho ou seco), e precisam aniquilar os “inferiores” porque estes jogam na sua cara, com sua simples existência, que o pacto com Mefistófeles era facultativo – e o que ganharam nem de perto equivale ao que pagaram. Por isso acham muito cem reais no Bolsa Família, acham absurdo dar comida a quem tem fome, livros para quem quer aprender, oportunidade para quem quer se dedicar. Meus vizinhos são infelizes, são pobres coitados com as prestações em dia, uma vida que nunca foi de verdade e dificilmente chegará a ser, perdida em obrigações que a máscara de um “cidadão de bem” coage. Votam no Bolsonaro e fingem não perceber que estão na fila para o campo de extermínio tanto quanto os que odeiam.

09 de outubro de 2018

Redação

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