Uma breve radiografia da confusão constitucional brasileira
por Fábio de Oliveira Ribeiro
No início do século XVI, cá chegaram no litoral uns portugueses maltrapilhos, fedidos, barbudos e com um aspecto doentio. Algumas décadas depois eles começaram a trazer para cá negros da África para produzir açúcar com tecnologia árabe a fim de abastecer mercados europeus. Portanto, podemos dizer que o Brasil nasceu global.
Todavia, nossa maior virtude tem sido também nossa maior maldição. A escravidão deixou marcas profundas na sociedade brasileira, que os privilegiados preferem não deixar cicatrizar. Os índios que não foram exterminados fugiram do litoral para o interior onde passaram a resistir ao avanço do empreendimento colonial. A riqueza gerada na colônia foi transferida para Europa, deixando nos brasileiros a impressão de que eles nunca poderão criar uma potência para desfrutá-la.
Em 1624 os holandeses começaram a invadir o Brasil, que na época estava sob o domínio do Rei da Espanha (1580 e 1640). Em 1648, após um longo período de guerra de secessão (1568 a 1648) a Holanda conseguiu finalmente se libertar do domínio espanhol. Portanto, a guerra travada pelo controle do Brasil foi um desdobramento global de uma guerra europeia.
Ao invadir a colônia portuguesa sob controle espanhol, os holandeses privaram seus inimigos de recursos empregados na guerra de secessão. Eles também desestabilizaram o arranjo político que permitiu a submissão de Portugal à coroa da Espanha.
À paz entre as potências europeias se seguiu a intensificação do conflito no Brasil. A guerra terminaria aqui apenas em 1654, ou seja, 14 anos depois de Portugal ter recuperado sua independência. Vitoriosos em dois conflitos, os Portugueses se libertaram do jugo espanhol na Europa e da interferência holandesa no Brasil.
Em 1808 a família real chegou ao Brasil fugindo das guerras napoleônicas. A permanência dela mudou substancialmente o universo político na Colônia. D. João VI foi obrigado a retornar para assegurar o poder em Portugal. Depois que ele partiu, o movimento pela independência começou a ganhar força e acabou sendo vitorioso sob a liderança de D. Pedro I.
Nosso primeiro imperador caiu em desgraça, abdicou em favor do filho e foi lutar na terrinha para recuperar o trono português que havia sido usurpado pelo irmão dele. D. Pedro I morreu em Portugal em 1834 com apenas 36 anos de idade. Se tivesse sobrevivido, talvez ele ficasse tentado restaurar a submissão do Brasil ao império português após consolidar seu poder em Portugal. Mas isso é apenas uma especulação plausível feita levando em conta a personalidade energética, autoritária, altiva e ativa do filho de D. João VI.
Desde então, essa dinâmica (sujeição dos conflitos internos aos conflitos externos) tem deixado marcas profundas na realidade brasileira. A república velha caiu no momento em que o fascismo começou a dominar a Europa. Getúlio foi derrubado pouco depois de o Brasil participar da vitória sobre o Eixo. A Constituição de 1946 foi corroída pela Guerra Fria e, após algumas tentativas fracassadas de golpe, substituída por uma ditadura militar.
O regime militar sobreviveu duas décadas. Mas foi desmantelado por causa da crise da dívida externa que havia saído de controle em razão dos aumentos do preço do petróleo. A redemocratização consolidada em 1988 começou a chegar ao fim assim que a China passou a desafiar a liderança global dos EUA.
Até 2015 nós tínhamos uma constituição que era mais ou menos respeitada pelo Judiciário. Ela foi esvaziada pelo lavajatismo e pelo golpe de estado de 2016 disfarçado de Impeachment. O enterro da Constituição Cidadã ocorreu quando o STF impediu Lula de disputar a eleição de 2018 desrespeitando decisões do Comitê de Direitos Humanos da ONU.
Juristas renomados comemoraram a anulação das condenações de Lula. Alguns chegaram a dizer (e até a acreditar) que a decisão do STF restabeleceu o Estado de Direito. Mais cauteloso, entendo que a Constituição Cidadã já morreu e foi substituída por seu Zumbi. Todavia, por uma questão retórica, prefiro chamar o Zumbi de “geringonça constitucional”.
O processo constituinte colocou fim a um período de incerteza ao promulgar o texto da constituição que regeria as relações entre os cidadãos, entre as autoridades dos diversos órgãos estatais e entre cidadãos/autoridades e o Estado. De maneira geral, podemos dizer que a Constituição Cidadã criou um ambiente de segurança jurídica.
A principal característica dessa “geringonça constitucional” que substitui a Constituição Cidadã é ser imprevisível. Afinal, ela vem sendo escrita pelo STF caso a caso e nunca é possível saber antecipadamente qual norma da constituição de 1988 será respeitada ou desprezada em cada julgamento.
Um detalhe importante não pode ser omitido: a substituição da CF/88 pela “geringonça constitucional” ocorreu no momento de intensificação da disputa entre norte-americanos e chineses pela conservação/aumento de influência no Brasil. Se levarmos em consideração as declarações emitidas por chefes de estado durante o G7, a instabilidade internacional está longe de chegar ao fim. Portanto, é uma tolice acreditar que a turbulência em nosso país chegará ao fim na próxima eleição presidencial.
Muito pelo contrário. Ao dizer abertamente aos jornalistas “Eu sou a Constituição”, Bolsonaro acrescentou um complicador à confusão constitucional brasileira. Na prática ele substituiu a “geringonça constitucional” por uma constituição absolutista semelhante à das monarquias europeias do século XVII.
Todo poder emana do presidente, a vontade dele é soberana. A distinção entre legalidade e ilegalidade depende apenas da sujeição ou não às decisões presidenciais. Não por acaso, Bolsonaro chama o Exército de “meu Exército” e ameaça colocar os militares nas ruas sempre que o STF profere uma decisão que ele considera inadmissível.
O Congresso Nacional se entregou aos desvarios presidenciais e se recusa a julgar o presidente genocida. A maioria dos parlamentares foi comprada.
As investigações que ameaçam a familícia provocam terremotos no comando da Polícia Federal. Augusto Aras se recusa a confrontar o sistema de poder criminoso que assaltou o poder, obrigando o STF a desrespeitar a norma constitucional que outorga ao MPF o monopólio do poder/dever de denunciar crimes. O Conselho Federal da OAB acusou Bolsonaro de diversos crimes, mas foi ignorado.
Semana passada , a CPI da Covid anunciou que pretende enviar o relatório da investigação para o Tribunal Penal Internacional. Isso significa apenas uma coisa: o reconhecimento de que o sistema de justiça brasileiro (a PGR e o STF) estão em colapso e que a constituição absolutista de BolsoNero entrou em vigor sem que ele realmente precisasse movimentar tropas.
Esqueçam as bobagens que os professores de Direito Constitucional tem falado. Essa é a verdadeira situação em que nós nos encontramos. Desde que Maquiavel publicou suas obras, sabemos que a tarefa de quem observa a política é ver os fatos como eles são (e não como eles deveriam ser). A vida política do Brasil não é mais regida nem pela Constituição de 1988, nem pela “geringonça constitucional” criada pelo STF. Essa verdade factual precisa ser reconhecida, caso contrário a tendência será a perpetuação de uma situação que a maioria da população não deseja.
A força da reação advém do conhecimento. Quem alimentar ilusões nesse momento apenas facilitará o avanço do autoritarismo e a perpetuação do regime absolutista comandado pelo capitão genocida imprestável e meio louco.
Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.
Este artigo não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN
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