Conservadorismo atávico, por Marcelo Miterhof

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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da Folha

Conservadorismo atávico, por Marcelo Miterhof

Se os preços sobem porque o salários se elevaram mais que a produtividade, a desigualdade é reduzida

A estagnação tem aguçado o conflito distributivo gerado pela inclusão social. Com isso, muitas manifestações conservadoras ganham traços caricatos. Contudo, é proveitoso reconhecer que o conservadorismo brasileiro tem em geral se sofisticado.

Uma de suas expressões modernas é que o crescimento precisa ser “equilibrado”. Em particular, é difundida a tese de que a inflação é tudo o que importa. Toda inflação seria sempre ruim, principalmente –e este é o pulo do gato– para os mais pobres.

Porém, se os preços sobem porque os salários se elevaram mais que a produtividade, a desigualdade é reduzida e isso é bom para os mais pobres. Trata-se de um ajuste de preços relativos, normal em economias de mercado. A distribuição gera crescimento, que é a principal alavanca da produtividade.

Se o câmbio se deprecia porque o juro alto foi reduzido, há inflação de custos. Tentar contrabalançá-la por inteiro com a redução dos demais preços exige forte ajuste fiscal e reversão da queda do juro, levando à recessão e à concentração de renda.

Outro sintoma da crença num crescimento “equilibrado” ou “com qualidade” é que a bandeira ambiental, originalmente progressista, foi apropriada pelos conservadores.

O que está em jogo no Brasil é a superação do conservadorismo atávico. Em sua raiz estão uma elite sem identificação com o restante da população, concentração de riqueza e de renda e uma estrutura produtiva pouco diversificada e de baixa produtividade.

Como se sabe, a colonização portuguesa foi marcada pela exploração de recursos naturais a partir de um uso sem paralelo da escravidão. Para o Brasil, foram traficados 5 milhões de africanos, mais de dez vezes o ocorrido nos EUA.

A elite não deixou de se atualizar quanto às novidades liberais norte-americanas e europeias. No século 19, a escravidão já era tida como imoral, embora “necessária”. No pós-Guerra, a industrialização criou novas atividades e permitiu incluir imigrantes voluntários e seus descendentes. Entretanto, foi feita sem reforma agrária, sem buscar universalizar os serviços públicos, sem visar ao consumo de massa etc.

Não foi desfeita a armadilha da concentração. Ao limitar o mercado, ela foi um entrave ao desenvolvimento, deprimindo o aproveitamento das escalas técnicas e o potencial inovador da indústria nascente. Porém continuou sendo de certa forma útil para garantir a poucos o padrão de consumo que era abrangente nos países centrais.

A redemocratização criou o clima político para começar a mudar tal quadro. Porém, quando nos últimos anos a inclusão social ganhou fôlego, a transição não tem se mostrado fácil numa sociedade partida, cuja elite se acostumou a compensar a carência de bens públicos com a abundância privada de serviçais.

O crescimento econômico tem um papel contraditório. Do ponto de vista das rendas individuais, mitiga as pressões da redução da desigualdade. Mas os primeiros efeitos do crescimento inclusivo são a elevação do consumo popular e o encarecimento dos serviços que a elite estava acostumada a usufruir. A infraestrutura e os serviços públicos demoram a melhorar, sendo em alguns casos sobrecarregados pela inclusão.

É que o crescimento não é um fenômeno de equilíbrio. Ele se dá do jeito que for possível, usando mão de obra pouco qualificada ou técnicas atrasadas, esgotando a infraestrutura existente etc. Os desequilíbrios criados são solucionados pela própria sustentação do crescimento, que gera recursos e oportunidades de investimentos e abre possibilidades de desenvolvimento tecnológico.

A “qualificação” do crescimento significa travá-lo, levando junto a inclusão. A preocupação exagerada com a inflação é uma maneira de tomar como interesse de todos o que é interesse da elite. Isso pode soar cínico e, às vezes, é mesmo. Mas é também uma sofisticação do conservadorismo, que traz mais espaço para mudanças.

Se o interesse coletivo conta, é possível discutir iniciativas internacionalmente aceitas: usar o núcleo da inflação no regime de metas para expurgar choques temporários; adotar períodos mais longos que um ano para seu cumprimento, pois os efeitos da política monetária tendem a ser mais demorados; e deixar de apontar o centro da meta, firmando compromisso só com uma faixa para a inflação, já que mudanças civilizatórias alteram os preços relativos.

A freada à direita pode ser moderada.

MARCELO MITERHOF, 40, é economista do BNDES. O artigo não reflete necessariamente a opinião do banco. Escreve às quintas-feiras nesta coluna.

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

7 Comentários

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  1. Nassif
    Creio que ainda

    Nassif

    Creio que ainda estamos na fase da conquista, logo, a quantidade nos leverá a qualidade.

    O processo é irreversivel.

  2. Muito bom o artigo

     

    Marcelo Miterhof,

    Você às vezes aparece aqui no blog de Luis Nassif fazendo comentários então eu faço o meu diretamente para você. Ontem quando li o seu artigo na Folha de S. Paulo pensei mesmo em enviar um email para você não só por congratula pelo seu belo artigo como também para reforçar a idéia pela qual eu tenho feito campanha ultimamente de que a esquerda deveria tomar à frente para mostrar a superioridade da defesa do pleno emprego sobre a defesa da inflação baixa.

    Um dos meus argumentos consiste em mostrar que a defesa do pleno emprego é uma luta da solidariedade porque o desemprego atinge só alguns ou mais precisamente atinge o outro e não a mim, enquanto a luta pela inflação baixa é uma luta individualista, pois a inflação alta atinge a todos e portanto é uma luta em que a pessoa está vendo principalmente o seu interesse.

    Em um texto como o seu que fala da inflação e da distribuição de renda caberia fazer uma espécie de homenagem a Ignácio Rangel e reproduzo a seguir o trecho do artigo dele “Inflação e distribuição da renda” publicado no jornal Folha de S. Paulo de 08/11/1988 e que eu reproduzi em comentário que enviei quarta-feira, 04/05/2011 às 23:56, para Luis Nassif junto ao post “De um leitor das crônicas” de quarta-feira, 04/05/2011 às 21:00, e originado de uma correspondência de Noel Sobrinho para Luis Nassif. O endereço do post “De um leitor das crônicas” é:

    https://jornalggn.com.br/blog/luisnassif/de-um-leitor-das-cronicas

    E o trecho do artigo de Ignácio Rangel “Inflação e distribuição da renda” vai reproduzido a seguir:

    “”O perfil de distribuição da renda e da riqueza está se deteriorando, em função da brutal aceleração inflacionária . . . Urge, portanto, interromper esse processo, promovendo-se a estabilidade dos preços”. Trata-se de passagem do artigo “A inflação brasileira e a teoria da inércia” do professor José Júlio Senna (Folha, 30.10.88)

    Essa passagem comporta, como venho insistindo, um equívoco maiúsculo, que não mereceria reparo, de tão encontradiço que é, não fora o fato de integrar uma peça pejada de coisas sapientes, a propósito desse outro mito, também tão encontradiço, da inercialidade, como causa eficiente da inflação. Uma aceleração fazendo-se por força da “vis inertiae” contrariando tudo o que sabemos de inércia, tanto na física da natureza, como na física da sociedade.

    Mas a denúncia de um erro não justifica outro erro. O professor Senna fica a dever-nos uma explicação de porque e como a inflação promove a desigualdade na distribuição da renda. Uma explicação que vá além do fato notório de que, se os preços sobem, sem concomitante elevação do salário, este declinará, em termos reais tornando mais desequilibrada a distribuição da renda, fato que toda dona-de-casa sabe ou julga saber.

    Para começar, devo dizer que não é minha intenção dourar a pílula da inflação. Mas também não devemos cair no equívoco oposto de atribuir-lhe tudo o que não presta em nossa vida nacional. A inflação é como a febre num organismo vítima de uma infecção: uma resposta do sistema econômico a um mal profundo. Em nossa experiência contemporânea sobrevém, ordinariamente, como uma defesa do sistema contra a recessão. Como discuti suficientemente em meu livro “A Inflação Brasileira”, de 1963, agora em 5ª edição, a desvalorização da moeda importa numa penalização da retenção de ativos líquidos, via pela qual promove investimento que não se faria se a moeda fosse estável.

    Ora, seria esdrúxulo supor que algo que promove investimentos, criando empregos, por isso mesmo, isto é, por efeito do aumento dos investimentos, pudesse resultar em redução relativa da folha salarial. Os salários caem, proporcionalmente à renda, quando o poder de barganhar dos trabalhadores declina, o que não acontece, ao contrário, quando crescem os investimentos”.

    E cabe também reproduzir um memorável parágrafo da lavra de Antonio Delfim Netto e que saiu no artigo “Metas inflacionárias” publicado no Valor Econômico de terça-feira, 04/10/2011 e que foi transformado aqui no blog de Luis Nassif no post “As metas ionflacionárias, por Delfim Netto” que pode ser visto no seguinte endereço:

    https://jornalggn.com.br/blog/luisnassif/as-metas-inflacionarias-por-delfim-netto

    E o trecho do artigo de Antonio Delfim Netto que, diga-se de passagem, eu não canso de reproduzir é o que se segue:

    “A igualdade de oportunidade é objetivo fácil de ser enunciado, mas esconde enormes problemas conceituais e práticos. De qualquer forma, deve começar com a chance de todo cidadão ganhar a vida com o seu esforço. De todos os desperdícios de recursos naturais de uma sociedade, nenhum é mais injusto, mais prejudicial à integração social e à autoestima do cidadão, do que negar-lhe a oportunidade de viver honestamente e sustentar a família com o resultado de seu trabalho”.

    Um parágrafo de beleza e profundidade ímpares e que sempre me fez desconfiar de que não trata de frase da verve de Antonio Delfim Netto. E mesmo que seja também não o redime dos malfeitos dele durante a ditadura e nem dos malfeitos posteriores. Ainda assim é triste ver que uma frase dessa é dita por uma pessoa da direita e ler tanta gente da esquerda (A Miriam Leitão, por exemplo, para mim é uma pessoa da esquerda) tecendo loas a inflação baixa e a transformando no principal objetivo da política econômica.

    Clever Mendes de Oliveira

    BH, 12/12/2014

    1. Clever e demais

      Clever e demais comentadores,

      Agradeço pela leitura da coluna e pelos elogios. Como vcs devem imaginar, uma coluna que trata de um jeito não convencional sobre a inflação é alvo de críticas pouco amistosas.

      Há algumas semanas já tinha usado o termo “inflação do bem” para fazer referência ao aumento acima da média dos serviços, um fruto da distribuição de renda. Claro, houve muitos xingamentos. Embora me divirta em alguma medida com eles, tomo sua particular violência como um sinal da imaturidade do país em discutir o tema da inflação.

      Tivemos uma experiência hiperinflacionária que evidentemente marca esse comportamento. Mas já temos mais de vinte anos de estabilização. Já é hora de lembrar que hiperinflação é um fenômeno raro, que nem de longe corremos esse risco atualmente.

      Por essas e outras, escrevi em 2013 uma coluna sobre o Rangel, o maior economista que passou pelo BNDES, o lugar aonde trabalho.  Boa parte do artigo se referia a um texto do Rangel na Folha, sob o título “O papel da inflação”.  Isso foi em 1990, e plena hiperinflação! Rangel, sim, era corajoso para debater. Usei tbm o livro “Inflação Brasileira”. Mas essa passagem saborosa dele que vc destacou eu não me lembrava.  Se tivesse visto antes, poderia ter usado na coluna desta semana. Fica para uma próxima.

      um abraço,

      Marcelo Miterhof

    2. Muito interessante

      Muito bom o artigo e igualmente o comentário.

      Nunca havia pensado por esse lado sobre o tema da inflação x emprego.

      Certamente, a perda do emprego, ao levar o ganho mensal de X para zero, para aquele trabalhador, é equivalente a uma inflação de 1000% ao mês. Sem dúvida o desemprego é muito mais relevante em termos de tirar das famílias a capacidade de sustento, moradia, saúde e educação do que a inflação!

      Posto isso, gostaria de avançar um pouco mais: a inflação dos serviços.

      Claro ficou o motivo da elevação dos preços dos serviços, tendo em vista o aumento da demanda, em função da distribuição de renda, e a manutenção da oferta. No que se refere à demanda, ou seja, ao acesso aos serviços por parcela maior da população, muito se falou em uma suposta ‘discriminação’ pelos ‘ricos’ aos ‘pobres’ que ali estão, usufruindo, em tese, dos mesmos serviços. Que os ricos estariam incomodados em dividir espaços etc.

      Analisando tal fato, não vejo guarida ou verdade. Primeiro que os verdadeiros ricos (Classe A) podem até usufruir dos mesmos tipos de serviços, mas em locais e níveis diferentes. Os caras vão de primeira classe, jato particular, hotéis com suítes a R$ 1.000,00 a diária, shoppings caríssimos etc. Não há esse contao tão próximo.

      Tem-se, então, os ‘falsos ricos’, que seriam aí a classe B e os que já eram da C. Aqui sim, talvez haja algo a se analisar. O que percebo, e isso tem sido bem nítido, é que os recém chegados à chamada classe C, ao terem a oportunidade de experimentarem produtose serviços aos quais antes não tinham acesso, acabaram por aceitar ‘qq coisa’. Não apenas contribuíram para o preço aumentar como tb para a queda do nível do serviço. A explicação é simples e lógica: ‘vc não quer este pão murcho, problema seu, tem quem queira’. Obviamente o ‘pão’ e o ‘murcho’ são apenas metáforas para qq produto/serviço de qualidade duvidosa e pior que a de costume, antes da nova classe C.

      Infelizmente, estamos num país onde produtos e serviços não são pensados e oferecidos para ter qualidade intrínseca. A qualidade é um diferencial competitivo, e num mercado com demanda alta, não é preciso esse diferencial, a princípio.

      Aí pergunto:

      – pq sempre fizeram questão (a mídia) de divulgar a suposta aversão dos ricos aos novos consumidores sem nunca citar a queda inegável do nível de atendimento?;

      – qual o tempo estimado para que a oferta ajuste á demanda e a qualidade volte a subir?

      Abraço a todos!

  3. Precioso! Obrigada.
    Precioso! Obrigada a todos pelo tempo e esforço dedicadoss no detalhamento e exemplificação. Precisamos desenvolver o entendimento sobre assuntos econômicos e a linguagem clara e os múltiplos exemplos vão, aos poucos, promovendo uma melhor assimilação e suavizando a aridez às vezes presente dependendo do tema.

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