A força dos Kirchner

Rapidinho, porque hoje a minha carga de trabalho hoje está especialmente cruel.

Estive na Argentina durante todo o processo que culminou com a eleição do Kirchner, e participei ativamente primeiro na oposição ao governo dos farrapos da velha Argentina representados com brio pelo duende Duhalde, e depois na campanha contra as eleições que levaram o Néstor Kirchner ao poder – não contra a pessoa do Kirchner, que pessoalmente me parecia duplamente inofensivo, por parecer inofensivo em si e por não ter a menor chance de se eleger – mas pelo boicote ao processo eleitoral, que para um amplo setor  da sociedade argentina pareciam ser o caminho mais seguro para trazer o inominável (toc, toc, toc!) de volta ao poder.

Ficou provado que estávamos enganados, e que tínhamos subestimado tanto o poder da munição reunida contra o inominável (toc, toc, toc!), que o fez renunciar a concorrer no segundo turno apesar de ter a eleição praticamente garantida, quanto a capacidade do Néstor Kirchner, depois de eleito , de captar o sentimento das ruas e pô-lo em prática no governo, cooptando fatia após fatia de um movimento que estava naturalmente contra ele. Até mesmo pela fragilidade do seu mandato, conquistado com 22% dos votos devido à renúncia do inominável (toc, toc, toc!), o presidente recém-eleito teve de se curvar às exigências de um movimento que já havia derrubado quatro presidentes em três semanas e forçado a convocação de eleições gerais para tentar contê-lo. E parece ter gostado dos resultados, porque adotou essas exigências (basicamente, o calote da dívida externa e o julgamento dos responsáveis pela repressão) com o entusiasmo de um neófito, e fez uma presidência considerada excelente no final do mandato por 70% dos argentinos.

Não fiquei aqui para acompanhar o primeiro governo do casal K, mas uma das coisas que se diziam logo depois de o Néstro Kirchner ser eleito era que, na verdade, quem ia governar era a senadora Cristina. Seria o governo KK, que tem aqui o mesmo sentido que aí. Hoje dizem o mesmo, só que ao contrário, e dito por outros setores da sociedade. O fato é que a Cristina Kirchner tem vida política própria, em grande medida independente da do marido, e sabe muito bem defender-se quando atacada, como bem sabem muitos dos que o tentaram. Se, por um lado, a capacidade de articulação política do falecido ex-mandatário, a quem ela havia delegado essa função, vai fazer falta nos meses que antecedem as próximas eleições, por outro lado a tendência é que os vários setores da esquerda em geral e do peronismo em particular, com exceção dos que já estão na oposição de fato desde sempre, cerrem fileiras ainda mais vigorosamente no apoio à viúva, resultando em que ela saia fortalecida dessa tragédia que foi a morte prematura do marido. A minha expectativa é que os setores liderados pelo Pino Solanas e pela Elisa Carrió baixem o tom das críticas ao governo, apresentando uma frente não digo unida, mas menos dividida, contra a “ameaça de retrocesso”, e que a Cristina Kirchner termine o mandato com relativa tranquilidade. Antes mesmo de o velório do ex-presidente começar oficialmente, as manifestações de apoio à presidente jorram de todas as partes do lado esquerdo do espectro político argentino, e a multidão que se acumulou na Plaza de Mayo e nas ruas adjacentes para homenagear o falecido é uma demonstração de que não faltará apoio popular, de tácito a ativo, ao governo.

No que toca as relações com o Brasil, a Cristina Kirchner sempre foi considerada a metade mais “pró-Brasil” do casal por todas as pessoas com quem converso sobre o assunto na Argentina, e a perspectiva de eleição da Dilma no Brasil, com quem a presidente argentina tem em comum a militância juvenil na clandestinidade (e que é tratada por certos setores da sociedade argentina exatamente nos mesmos termos que a Dilma), é um fator não desprezível de aproximação.

Luis Nassif

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