Aborto: médicas feministas detalham os problemas na Portaria 2282

Portaria do Ministério da Saúde cria viola sigilo médico, ataca o psicológico da vítima e cria exigências "para burocratizar o processo e dificultar o acesso ao aborto previsto em lei"

Imagem: ilustração de campanha pelo aborto legal. Fonte: GAP-Grupo de Arte Político

Da Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras

Nota pública da Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras sobre a Portaria No. 2.282 de 27 de agosto de 2020 do Ministério da Saúde que dispõe sobre o Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS

Nós, da Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras, vimos a público nos manifestar contrárias à Portaria 22832 do Ministério da Saúde, exigindo sua imediata revogação para evitar danos irreparáveis aos direitos e à saúde das mulheres.
Como já é sabido, o aborto é permitido em três situações no Brasil: em caso de risco de morte materna, se a gravidez é decorrente de estupro (Artigo 128 do Código Penal, desde 1940) e, mais recentemente, em gravidez com feto anencéfalo (ADPF 54/2012). Apesar da parcimônia dessas indicações, esses casos contemplados pela Lei representam uma redução de dano para milhares de mulheres que se encontram em situação de violência sexual, quer sejam casos crônicos de violência sistemática ou casos agudos de violência pontual.

Essas mulheres grávidas que procuram a Unidade de Saúde com a demanda do aborto legal por estupro muitas vezes o fazem buscando discrição, driblando seus agressores com quem ainda convivem ou têm vínculos de subsistência. Atrelar ao atendimento em saúde a notificação compulsória à autoridade policial à revelia da vontade da mulher vitimada, como requer o artigo 1o. da Portaria 2.282, fere um dos compromissos mais sagrados do relação médico / paciente, o compromisso de sigilo, além de expor a referida vítima a situações nas quais seu risco pode ser agravado.
O atendimento em saúde para interrupção de uma gestação traz em seu âmbito uma urgência que difere do tempo que uma mulher violentada cronicamente requer para construir uma rede onde se sinta fortalecida o suficiente para denunciar o seu agressor. A linha de cuidado em saúde na violência sexual deve ter como foco principal o bem estar da muher e não o processo de investigação criminal do seu agressor.

A inclusão de um médico anestesiologista na equipe multiprofissional que confere legitimidade ao laudo técnico, conforme reza o inciso 3 do artigo 4 da Portaria 2282, é descabida, visto que o procedimento de aborto deve ser conduzido com uso de medicamentos, que, salvo exceções, é suficiente para causar o esvaziamento completo de todo o conteúdo uterino, não sendo necessário agregar sedações ou bloqueios anestésicos na grande maioria dos casos. Acresce uma exigência adicional para burocratizar o processo e dificultar o acesso ao aborto previsto em lei. Parecer do anestesiologista, ademais, não é necessário para procedimentos obstétricos usuais em maternidades. Havendo indicação eventual de um procedimento cirúrgico, é dever do anestesiologista realizar a anestesia.

O artigo 8o. da Portaria 2.282 promove adicionalmente requintes cruéis oferecendo à mulher com demanda de aborto a visualização do embrião / feto através da ultrassonografia, uma medida que só teria a finalidade de trazer culpa e desassossego para aquela pessoa já tão fragilizaada emocionalmente. É óbvio que tal “oferta” visa unicamente a incentivar as vítimas a desistir do aborto, embora existam evidências de que isso não faz com que desistam e apenas aumenta dor e sofrimento.

Nós da Rede Feminista de Ginecologia e Obstetrícia entendemos que o Relato Circunstanciado, o Parecer Técnico, os Termos de Compromisso e de Consentimento Livre e Esclarecido devem ser obtidos durante uma linha de cuidado respeitosa e condizente com a gravidade da situação. O estupro por si só pode ser um trauma insuperável. Por que agregar a esse processo mais risco, dor e sofrimento?

Embora seja desejável e sintamos a falta de protocolos atualizados de manejo para atendimento a vítimas de violência sexual e provisão dos serviços de aborto previsto em lei, também nos parece que a participação do Ministério da Saúde deve se restringir à elaboração de normas técnicas, não lhe cabendo legislar, nem passar por cima de leis já existentes e da própria Constituição Federal.

A Portaria 2282 pode ser questionada sob várias perspectivas, incluindo aspectos bioéticos e jurídicos, que irão dificultar ou impedir o seu cumprimento. Mesmo assim, é urgente que seja revogada e quaisquer dos seus efeitos sustados. para garantir o pleno funcionamento dos serviços de aborto previsto em lei e evitar que mulheres apavoradas com tantas exigências e que não querem abrir mão do sigilo deixem de procurar esses serviços.

Nenhum direito a menos!
Redação

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