As lições das urnas e a frente ampla, por Reinaldo Centoducatte

Há uma incompreensão e ausência de sensibilidade política, sobretudo de direções partidárias progressistas, quanto à necessidade histórica desse momento de se construir alianças no campo democrático

Por Reinaldo Centoducatte

As eleições municipais de 2020 no Brasil trazem lições que precisam ser devidamente aprendidas e analisadas na perspectiva do futuro da democracia. A postura política afirmativa, evidenciada por candidaturas não-alinhadas ao bolsonarismo, mostrou-se fragmentada, tênue, por um lado, porém, factível e necessária, por outro lado. Em várias cidades houve esforços de união das forças progressistas – Belém e Fortaleza, por exemplo, com êxito – e em outras, embora com as candidaturas não sendo vencedoras nas urnas – Vitória, Porto Alegre e São Paulo –, esforços mostraram um animador nível de unidade em torno de projetos de conteúdo democrático, plural e popular.

Uma importante lição que nos traz os resultados das urnas, e que é o grande desafio das forças progressistas e democráticas, é a construção de um movimento de massa para além de partidos, que envolva amplos setores da sociedade brasileira para o grande embate programado para 2022. A costura política deve passar pela formação de uma frente ampla pela democracia como eixo central para superar divergências pontuais ou mesmo históricas, que impedem a unidade do centro, da centro-esquerda e da esquerda. Isso ficou evidenciado no processo eleitoral. O ponto em comum deve ser a defesa da democracia e a posição clara contra os retrocessos que impõe ao país o bolsonarismo e as forças políticas, religiosas, econômicas e sociais que o apoiam.

Devemos trabalhar na construção de um movimento proativo e orgânico em defesa da democracia e das liberdades, em que prevaleça a tolerância e o diálogo político, e que esteja pronto para enfrentar a retórica conservadora, obscurantista e meritocrática que afirma a invisibilidade das diferenças e da brutal desigualdade social. Uma retórica que almeja o controle dos corpos e a extinção do pensamento crítico e progressista. Podemos constatar um avanço das forças de direita nesse último pleito. Porém, não podemos dizer que o bolsonarismo tenha saído vencedor. No campo conservador, é possível observar algum nível de fragmentação da direita em algumas cidades. Entretanto, em outras, soube se alinhar em torno de seus projetos locais.

É fato, contudo, que o campo da direita representado pelo bolsonarismo arbitrário, autoritário, demonizador e truculento perdeu força. Logo, devemos observar que há um sentimento antibolsonarista que deve ser potencializado, haja vista as derrotas importantes que sofreu em inúmeras cidades, sobretudo com os candidatos apadrinhados pessoalmente por Bolsonaro em São Paulo e Rio de Janeiro. O bolsonarismo, como expressão máxima desse movimento reacionário, foi derrotado. Contudo, tenhamos claro que ele ainda “respira” e se apoia no amplo e revigorado campo das forças conservadoras que saíram vitoriosas nos pleitos de novembro.

Começa a se desenhar uma melhor compreensão sobre a necessidade de se enfrentar as concepções atrasadas que ganharam musculatura com o advento do bolsonarismo, que antes o respaldaram em seu projeto de poder. Há, entretanto, uma incompreensão e ausência de sensibilidade política, sobretudo de direções partidárias progressistas, quanto à necessidade histórica desse momento de se construir alianças que fortaleçam o campo democrático. Esse engessamento impede ou reduz a nossa capacidade de articulação para o enfrentamento ao bolsonarismo, que é o adversário principal. Essa articulação progressista deve passar pelo respeito à diversidade e à multiplicidade política de suas representações.

A partir de um recorte regional, em que dois policiais civis declarados evangélicos comandaram projetos eleitorais bem-sucedidos em Vitória e em Cariacica – dois dos mais importantes colégios eleitorais do Espírito Santo – temos outra lição. Trata-se da necessidade de compreensão do papel desempenhado na cena política pelos inúmeros grupos neopentecostais e por militares e agentes das forças de segurança pública. Essa intervenção articulada e orgânica na agenda política brasileira precisa ser entendida pelo campo democrático, porque, invariavelmente, esses setores se sustentam em narrativas de costumes conservadores, com forte viés autoritário e punitivista.

A postura de estranheza e de negação da importância desses setores, ou mesmo o desconhecimento acerca da ontologia profunda que os mobiliza, nos afasta de qualquer possibilidade de diálogo com esses setores. O que apenas reforça preconceitos, ódios, ignorância e ressentimentos que retroalimentam toda uma engrenagem bizarra de esgarçamento da convivência social, da existência comum enquanto nacionais. A eleição de 2018 acentuou, de forma dramática, esse cenário, e o campo progressista precisa ter essa compreensão.

A ausência e omissão de lideranças do campo democrático no processo eleitoral, por outro lado, resultou na inviabilização de projetos progressistas, além de desnortear boa parte do eleitorado sensível às pautas democráticas. Num cenário assim, prevaleceu a relação política paroquial e populista. Trata-se, contudo, de uma conjuntura que se configura nacionalmente, com maior ou menor intensidade, dependendo da capacidade de articulação do campo democrático.

Nesse contexto, em cidades como Vitória e Cariacica, no Espírito Santo, o apoio popular acabou por se revelar insuficiente. Logo, fica evidente que é preciso canalizar e expandir o comprometimento popular com a democracia, e também o desejo – contido, às vezes – de rompimento ou de insatisfação com o projeto bolsonarista, que expõe concepções que negam a democracia. As eleições municipais demonstraram que a formação de uma frente ampla pela democracia é sim a alternativa política viável para o enfrentamento ao bolsonarismo. Apenas quando superada essa etapa negacionista e antipolítica, e quando os setores sociais progressistas se fizerem entender e se respeitar mutuamente pela via do diálogo, a disputa de diferentes projetos poderá se dar no oxigenado e saudável ambiente democrático.

Reinaldo Centoducatte é ex-reitor da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes)

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Redação

1 Comentário

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  1. Até quando iremos discutir está tal frente.
    Sempre se comenta da defesa da democracia, do fortalecimento do campo democrático etc e tal.
    É sempre se citam centro,centro-esquerda e esquerda.
    Poi bem,quem é quem nessa história?
    Quem e centro? Seriam aqueles que avistaram a democracia ao não aceitar o resultado das urnas em 2014? Ou seriam aqueles que defenderam o impeachment sem crime de responsabilidade? Ou ainda todos aqueles que se calaram e continuam calados diante da prisão arbitrária e ilegal do presidente Lula?
    Essa gente,ninguém se iluda,tem um lado:O lado deles,nada mais.
    Não há sentimento no mundo que,hoje pelo menos,suplanta o anti-petismo cultivado ao longo dos 14 anos que esse partido ousou governar o país para todos,inclusive os que covardemente o apunhalou.
    Esse sentimento jamais será suplantado sem um pedido de desculpas a sociedade brasileira, sem o STF reconhecer a parcialidade do camisa preta do Paraná, sem colocar atrás das grades a bandidagem lesa pátria.
    Sem isso ,caros colegas, somente uma revolução poderá restituir os direitos do povo brasileiro.
    Até este dia,tristemente, teremos de conviver com está escória e sua trupe miluco/miliciana.

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