Barroso e seu iluminismo obscurantista, por Fábio de Oliveira Ribeiro

O que juristas como Barroso chamam de iluminismo fundador é na verdade a construção jurisprudencial de um autoritarismo típico dos regimes medievais

Aqui mesmo no GGN disse que a Lava Jato existe no abismo entre o Espetáculo e o Direito (veja aquie que aquela operação provocou uma inversão na hierarquia judiciária, pois um juiz de primeira instância passou a exercer um poder maior do que o outorgado às instâncias acima dele (veja aqui).


Fenômeno dramático jurídico, a Lava Jato transferiu o poder de julgar para a mídia (mais aqui, aqui e aqui)
. Esse fato é evidenciado pela primeira sentença condenatória de Lula. Ao julgar o caso do Triplex, Sérgio Moro deu um valor probatório extremo à matéria jornalística do jornal O Globo acusando Lula de ter recebido aquele apartamento como pagamento.

Nunca é demais lembrar que:

Ao condenar Lula, Sérgio Moro disse que não teve tempo de ler todos os documentos dos autos. Todavia, ele teve tempo de ler matérias jornalísticas e citá-las ao longo de centenas de páginas.

Matéria jornalística só é meio de prova quando a questão em discussão é a ofensa criminosa ou passível de indenização feita pelo jornal. Nos demais casos, a matéria de jornal não tem valor probatório por si só.

Se o jornalista enuncia um fato (a propriedade e posse de um imóvel) e o registro de imóveis prova que o proprietário é outro deve prevalecer o documento público. Aplica-se também uma regra simples de Direito Civil: o documento particular não faz contra terceiro prova do fato que enuncia. Ele só pode fazer prova contra quem enunciou o fato e assinou o documento.

Qualquer juiz mequetrefe conhece estas regras. Portanto, devemos considerar a hipótese de que Sérgio Moro é menos do que um juiz mequetrefe. Curiosamente ele acredita que tem mais poder que a lei, a doutrina e a jurisprudência. Todavia, isto só se tornou possível por causa do julgamento do Mensalão pelo STF.

LEIA MAIS: Do julgamento do mensalão à condenação de Lula

A transferência do poder dever de julgar do Judiciário para a imprensa continua sendo estimulado por Luís Barroso. Sempre que afirma que o STF “deve corresponder aos sentimentos da sociedade”, aquele Ministro do Tribunal sugere a submissão do Sistema de Justiça à “opinião publicada”. A opinião pública sobre a seletividade política e a péssima qualidade da imprensa não vem ao caso, pois a crítica não é capaz de construir a realidade em que o Judiciário pretende se espelhar. Enquanto os juízes de primeira instância citam matérias jornalísticas para condenar, os desembargadores nunca mencionam críticas ao jornalismo para absolver o réu injustamente condenado.

A verdade que predomina é aquela preconizada pelo:

…discurso punitivo insipiente inerente à criminologia midiática, [que] considera a tutela dos direitos fundamentais como meros obstáculos à efetividade da sanção penal.

A distorção da realidade pertinente aos direitos fundamentais realizada pela ideologia punitiva que macula o discurso hegemônico engendra a difusão de uma percepção que se distancia do tão almejado equilíbrio entre efetividade da coerção e proteção dos direitos fundamentais, imprescindível no Estado Democrático de Direito, onde ‘os fins nunca justificam os meios, devendo portanto, a eficácia da coerção penal ser buscada com ética e respeito ao conteúdo mínimo dos direitos e garantias fundamentais’ (BEDÊ JÚNIOR; SENA, 2009, p. 24).

Hodiernamente nos deparamos constantemente com uma visão deturpada dos direitos fundamentais, responsável por impedir que os enxerguemos como conquistas históricas e por passarmos a concebê-los apenas como empecilhos à intervenção punitiva no interior de um ‘Estado fraco’ e incapaz de conter o avanço da criminalidade.” (Criminologia Midiática, Raphael Boldt, Juruá Editora, Curitiba, 2013, p. 145/146)

Sempre que está diante das câmeras de televisão, Luís Barroso sempre ataca o “garantismo à brasileira” e diz que precisamos refundar o Brasil com base nos princípios do iluminismo. A má-fé intelectual dele é semelhante à dos Ministros do governo Bolsonaro que dizem que o nazismo foi um movimento de esquerda.

O garantismo foi uma conquista do iluminismo, movimento que se colocou frontalmente contra a expansão do crime de “lesa majestade” durante a Idade Média.

A crítica movida por Beccaria à noção do crime de lesa-majestade e à sua previsão em um ordenamento penal vai muito além dos limites conceituais do próprio delito, atingindo, de forma contundente, os regimes que o instituíram. Estes, para o marquês italiano, são por natureza tirânicos e regidos pela ignorância. Isto porque somente estes tipos de regimes conseguem confundir ‘os vocábulos e as ideias mais claras’, dando esta denominação, e, consequentemente, a pena máxima a ‘delitos de diferente natureza’.” (O Estado e seus inimigos, Arno Dal Ri Júnior, Editora Revan, Rio de Janeiro, 2006, p. 167/169)

Não por acaso, já em 2006, Dal Ri alertava que:

Além dos típicos mecanismos da doutrina de segurança nacional, o cerne da política de segurança pública baseado no ’Law and Order’ tem apresentado também algumas outras estratégias significativas. A atuação da mídia na construção da imagem do novo inimigo e como instrumento de propagação do pânico situa-se entre elas. Devido à necessidade de ser politicamente credíveis e rentáveis, como acontecia com as políticas de segurança nacional, as campanhas em favor da nova segurança pública se apoiam-se em medidas espetaculares cobertas com primor pela mídia jornalística. Tenta-se, deste modo, provar que a ação do governo deve ser rápida e forte, prescindindo dos vínculos impostos pela legalidade.” (O Estado e seus inimigos, Arno Dal Ri Júnior, Editora Revan, Rio de Janeiro, 2006, p. 358/359)

A preservação dos vínculos entre o Sistema de Justiça e a legalidade são essenciais. Eles derivam tanto da exigência constitucional de respeito ao princípio da legalidade (art. 37, caput, da CF/88), quanto da obrigação funcional imposta aos juízes pela Lei Orgânica da Magistratura Nacional (art. 35, I). Quando esses vínculos são rompidos ou corrompidos é impossível ao cidadão que se tornou vítima de perseguição jornalística e penal seletiva e política exercer a garantia constitucional prescrita no art. 5, II, da CF/88.

Juristas punitivistas como Luís Barroso, que acreditam no direito sagrado dos barões da mídia de julgar, condenar e obter o do Judiciário encarceramento injusto de líderes políticos que eles consideram inimigos dos seus próprios interesses econômicos, também são capazes de confundir “os vocábulos e as ideias mais claras”. O que eles chamam de iluminismo fundador é na verdade a construção jurisprudencial de um autoritarismo típico dos regimes medievais.

Antes de Montesquieu, Beccaria e Marat demolirem os fundamentos jurídicos do crime de lesa-majestade, a Lei não era um princípio geral e abstrato, o crime poderia ser atribuído sem provas, as penas eram extremamente severas e quase sempre o tipo penal acabava sendo redefinido no ato da sentença para se ajustar às provas que foram obtidas mediante tortura. Não por acaso quase todas essas características podem ser encontradas na condenação de Lula no caso do Triplex. Se levarmos em conta as palavras de Luís Barroso me parece evidente que ele está mais inclinado a manter essa condenação em nome do suposto iluminismo do que a revogá-la em razão dela ser neobscurantista.

Barroso gosta de dizer que a justiça é mansa com os ricos e dura com os pobres. Na verdade, desde o julgamento do Mensalão (marco inicial do processo de desconstrução dos princípios constitucionais do Direito Penal) os juízes têm sido extremamente duro com os líderes políticos dos pobres para que os ricos possam desfrutar um controle cada vez maior de um Estado mais manso.

Os ricos devem 450 bilhões de reais à previdência? A lógica reformista adotada pela imprensa é endossada candidamente pelos Ministros do STF: o melhor é perdoar a dívida e reformar o INSS para prejudicar os segurados mais pobres. Não é possível fazer isso por causa de alguns líderes dos trabalhadores? Nenhum problema. Eles podem ser removidos da arena política através da destruição seletiva do Estado de Direito.

O iluminismo obscurantista de Luís Barroso deve ser entendido dentro do contexto geral em que estamos. Após o golpe “com o Supremo com tudo” a tortura se tornou virtuosa, as demonstrações de racismo passaram a ser toleradas, a terra se tornou plana, Bolsonaro virou mito, Olavo de Carvalho foi promovido a intelectual, Jesus aparece na goiabeira, execuções policiais devem ser legitimadas e o Ministro da Justiça tem um conge em Massachuchis. Nossa decadência é tão completa que até o Vietnã já está exportando mais do que o Brasil. Impossível dizer quando e como será interrompida essa realidade paranoico crítica alimentada diariamente pela imprensa e realimentada pelo obscurantismo judiciário.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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