Como a cultura e os hábitos chineses influenciam contra o coronavírus

Um fato curioso é que na cultura chinesa há uma ideia de que o país é uma grande família, um coletivo para o qual devemos ser sempre leais

Por Gilberto Carvalho

O que a China fez, meu amigo?

Ao entrar na terceira semana de quarentena, os brasileiros começaram a entender o que os chineses (e os estrangeiros que vivem por aqui) passaram durante essa dura primeira fase da batalha contra um vírus resistente e extremamente veloz.

Logo no início da primeira semana, conversei seriamente com parentes e amigos no intuito de passar um pouco da nossa experiência direto do “futuro” e como foi importante o esforço coletivo, a atitude solidária e a disciplina para que, em pouco mais de dois meses, a vida começasse a voltar ao normal.

Numa dessas conversas, um amigo confessou não compreender como um país de dimensões continentais e mais de um bilhão de pessoas conseguiu manter a população sob controle durante todo esse período.

Começamos a discutir diversos pontos e pude afirmar algumas questões muito práticas, como a velocidade de execução dos planos, as medidas extremas na cidade de Wuhan e, na sequencia, em toda a província de Hubei, isolando-a do resto do país. Razão pela qual a região concentrou mais de 80% dos casos e mais de 95% das mortes relacionadas a COVID-19.

Outro ponto relevante que observamos foi o quanto o olho do Estado está sempre atento e como existe uma fobia da população em relação à punições. O monitoramento e o rastreamento, que já eram constantes, foram ampliados. Voluntários auxiliavam no controle de fluxo nos condomínios e ruas, medindo temperatura e barrando quem não deveria circular pelo local.

Por ser uma questão complexa, queríamos ir além daquele simplismo de apenas apontar o fato da China ser um país com regime autoritário e regras menos flexíveis que outras nações de dimensões similares como a razão para o sucesso do movimento de isolamento e o consequente estancamento da disseminação do vírus.

Existem fatores antropológicos envolvidos e, durante o nosso papo, tive a oportunidade de refletir sobre a sociedade na qual estou inserido e sua cultura, além das pessoas com as quais eu me relaciono e observo nos meus anos de China.

Eu tenho muitos colegas chineses, sou líder de um time de chineses e sou subordinado a chineses, assim pude observar, desde dentro, uma sociedade que confia em seus líderes, não apenas nos líderes políticos. Por aqui tem-se a convicção de que as pessoas que estão no poder farão o melhor possível para o bem da população diante de uma situação crítica. Vale dizer que o apoio não é ilimitado e incondicional, como mostrou a comoção nas mídias sociais após a morte do médico de Wuhan, que tentou alertar para o risco do vírus. Ainda assim é um padrão muito acima do resto do mundo, com um raro senso de lealdade.

Essa confiança na figura do líder, o respeito à autoridade, na minha visão, tem uma origem mais confucionista do que comunista, pois acredito ser anterior a fundação da República Popular da China.

Toda essa predisposição para aceitar e seguir regras determinadas, evidentemente, é muito apreciada pelo Partido Comunista, que sabe utilizar desse advento para mobilizar massas em torno de um objetivo, ou uma guerra, como foi encarada a luta contra a COVID-19. Muitas vezes a propaganda, para os ouvidos estrangeiros, parece um discurso raso, mas nutre o patriotismo e incute na população o sentido de missão, os motivando para enfrentar os desafios em períodos complexos.

Um fato curioso é que na cultura chinesa há uma ideia de que o país é uma grande família, um coletivo para o qual devemos ser sempre leais. Podemos ver isso refletido na palavra país, que em mandarim é 国家 (guojia). Sendo que 家(jia) significa família.

É possível observar uma diferença bem importante na visão de um chinês e um ocidental sobre a relação entre o indivíduo e o coletivo. Os asiáticos enxergam que o interesse coletivo tem um peso maior na comparação com as liberdades individuais. Isso influencia diretamente na maneira que a população encara certas restrições. Acredita-se que o cumprimento das regras é um sinal de respeito aos demais e com isso preservamos a saúde, o bem-estar e a segurança de toda a comunidade.

Mas na luta contra a epidemia era claro que havia também um senso de autopreservação, ligado à saúde. Esse é o fator que conecta os chineses ao restante do mundo. O que os diferencia é a disciplina e determinação.

É importante lembrar que estamos falando de um povo que passou por grandes provas e grandes privações. Ainda há muitas pessoas que viveram o período da Revolução Cultural entre os que estiveram em isolamento. São pessoas que não desistem facilmente e com uma grande tolerância a sacrifícios.

Também vejo o empirismo ajudando neste momento de crise, pelo fato dos chineses terem passado por uma outra epidemia há 18 anos. A SARS ajudou na incorporação de novos hábitos, ampliados agora, além de prepará-los psicologicamente para um período longo de restrições.

Mesmo com toda essa experiência e disciplina o caminho é longo, tortuoso e ninguém sai incólume. Casos de divórcio, violência doméstica e insanidade mental aumentaram muito nos últimos meses. Apesar disso, por aqui, esses obstáculos são percebidos como feridas de uma guerra pelo bem do povo. Qualquer restrição, controle rígido ou quebra de privacidade são encarados com grande espírito público. O cidadão sente-se parte de uma grande família que luta pela sobrevivência.

E à medida que as notícias chegam e mostram as dificuldades de outros países na contenção dessa disseminação, um sentimento de confiança aflora, confirmando que o sacrifício não foi em vão e que, mais uma vez, os líderes estavam certos.

Meu amigo já não estava mais na linha nesse momento…

…e eu só queria dizer a ele que a guerra ainda está longe de acabar!

Redação

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