Crise argentina: greve geral e visita de Bolsonaro nos jornais brasileiros

A cobertura da greve geral nos mostrou que os meios não têm interesse na crise argentina. Pouca atenção foi dada à piora dos indicadores sociais

Marcos Corrêa/PR

Por Beatriz Bandeira de Mello e João Feres Jr.

No Manchetômetro

No dia 29 de maio de 2019 Mauricio Macri lidou com a quinta greve geral desde que assumiu a presidência. Na semana seguinte, o presidente recebeu Jair Bolsonaro para um encontro bilateral. Nesta ocasião, Macri e Bolsonaro discutiram, entre outros temas, a proposta de criação de uma moeda única, opeso real. Ambos os eventos, apesar de significativos, repercutiram de maneira diferente na imprensa brasileira. Resolvemos, portanto, examinar como os meios enquadraram esses episódios analisando as publicações dos jornais O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo e O Globo entre os dias 28 de maio e 9 de junho.

A GREVE GERAL

A greve realizada no dia 29 contou com a participação das duas maiores centrais sindicais do país – a Confederación General del Trabajo (CGT) e a Central de Trabajadores de Argentina (CTA): aeroportos , estradas e serviços ficaram paralisados. A mobilização foi uma resposta à política econômica do atual governo, ao aumento crescente da inflação e à piora dos indicadores sociais.

Instituto Nacional de Estadística y Censos (INDEC) mostrou que, no último ano, o desemprego na Argentina atingiu a marca de 9,1%[1]. A inflação em 2018 ficou em 47% e a previsão é que chegue a 50% em 2019. A desvalorização do peso frente ao dólar enfraqueceu a economia e, de acordo com o INDEC, 32%[2]dos argentinos estão abaixo da linha da pobreza.  Em relação ao contexto em que Macri se elegeu, em 2015, houve evidente declínio da situação econômica e consequente deterioração da imagem política do presidente.

Naquele ano, os jornais brasileiros noticiaram a vitória de Macri como um “terremoto político”,[3] uma “reviravolta” e uma resposta ao “populismo irresponsável” dos anos Kirchner.[4][5] Em artigo de opinião publicado em 25 de novembro de 2015 em O Estado de S. Paulo,[6] Sergio Amaral elogiava o programa econômico do novo presidente. As promessas de liberalização do comércio e do câmbio associadas à redução do intervencionismo do Estado foram apresentadas de forma positiva como um contraponto ao “fracasso das políticas econômicas do kirchnerismo”. O discurso de sucesso promisso do programa liberal de Macri ecoou na grande mídia brasileira. A ode ao livre-mercado e ao novo presidente argentino parecia não ter fim.[7]

Um estudo publicado pelo Manchetômetro,[8] no entanto, mostrou que o humor dos meios com relação à política econômica de Macri mudou em maio do ano passado, quando o presidente teve que recorrer ao Fundo Monetário Internacional (FMI) para conter uma crise cambial. Na ocasião, a imprensa brasileira criticou o gradualismo da política econômica macrista, apontando que a mesma seria “insuficiente” para conter os problemas do país, como a alta inflação e o endividamento externo. Em contrapartida, os jornais ‘recomendaram’ políticas de ajuste mais severas. Contudo, naquele episódio, o presidente escapou das críticas, não sendo diretamente responsabilizado pelo fiasco econômico.

Um ano depois, quando o assunto foi a greve geral, a imprensa parece ter se desinteressado por cobrir a Argentina. Os jornais O Estado de S. Paulo,[9] O Globo[10] e Folha de S. Paulo[11] dedicaram, cada um, apenas uma reportagem à greve – todas publicadas no dia 30 de maio. O Estado relatou a piora dos indicadores econômicos, destacando o aumento do desemprego, da pobreza e da inflação, mas também pontuou um suposto viés político da CGT – “controlada pelo peronismo” – e o bloqueio de estradas por “grupos de esquerda”. O Globo manteve o tom adotado pelo Estado com relação aos indicadores sociais. No entanto, chamou atenção em sua reportagem a transcrição da fala do Ministro da Fazenda sobre as perdas financeiras provocadas pela greve. O Globo e Estadão chamaram a atenção para a proximidade das eleições presidenciais, sugerindo uma possível influência da crise sobre a disputa.

A Folha de S. Paulo manteve a ênfase na paralisação dos serviços, no esvaziamento das ruas e na participação de líderes sindicais nas manifestações. A coluna de Clóvis Rossi, publicada com o título “Greve afunda Macri ainda mais”, sugeriu um racha no governo Cambiemos – e uma suposta influência da crise nos rumos da eleição –, pontuando a queda da popularidade do presidente argentino. A chance de reeleição de Macri, descrito como “candidato de Bolsonaro”, embora questionada, não foi descartada no texto de Rossi.

De maneira geral, os jornais brasileiros minimizaram o impacto da greve, apontando inconsistências em sua organização e reforçando a participação de grupos de oposição ao governo. O foco dos jornais esteve no modo como a crise pode influenciar o resultado das eleições argentinas, posição consolidada durante a cobertura da visita oficial de Jair Bolsonaro ao país, como veremos a seguir.

A VISITA DE BOLSONARO

Na semana posterior à greve, Jair Bolsonaro esteve em Buenos Aires em sua primeira visita oficial à Argentina. Por ocasião do encontro, Macri e Bolsonaro realizaram um pronunciamento conjunto no qual defenderam o Acordo Mercosul-União Europeia e a abertura econômica, manifestando também certas  “preocupações” com a crise venezuelana. Bolsonaro disse temer o surgimento de “novas Venezuelas” na América do Sul.[12] Contudo, a fala do presidente brasileiro pareceu não levar em consideração a própria situação política e econômica da Argentina.

A mídia brasileira tratou a visita de Bolsonaro como uma tentativa, por parte de Macri, de obter apoio internacional ao seu governo e à sua política macroeconômica. Nos textos analisados, a preocupação com as eleições – mais precisamente com a chapa de Cristina Kirchner – foi um dos temas principais, ao lado das tratativas para consolidação do Acordo Mercosul-União Europeia e da proposta de criação da moeda comum entre Brasil e Argentina, o “peso-real”.

Em editorial publicado em 8 de junho,[13] o Estadão criticou a proposta de moeda única, dadas as “discrepâncias de natureza econômica” entre Brasil e Argentina. O jornal enfatizou a alta inflação e sugeriu que a proposta não passou de um “desejo do presidente brasileiro de dar apoio ao seu colega argentino” em uma possível tentativa de reeleição. No artigo de opinião “Bolsonaro, muito pitaco e pouca noção de governo”, assinado por Rolf Kuntz e publicado em 9 de junho, o tom foi o mesmo. No texto, o jornalista criticou Bolsonaro, chamando-o de “cabo eleitoral” de Macri, por uma suposta ingerência nos assuntos internos da Argentina. A crítica se estendeu à problemática atuação diplomática do chanceler Ernesto Araújo e do deputado Eduardo Bolsonaro e à proposta de moeda única, considerada “uma fantasia” dos governos argentino e brasileiro. Posição dissonante foi expressa na reportagem especial,[14] que apresentou o fracasso da política econômica de Macri como uma porta de entrada para o “populismo de esquerda” no país.

Na cobertura feita pela Folha de S. Paulo, chamou atenção o texto[15] publicado em 6 de junho contendo críticas do vice-presidente Hamilton Mourão à política econômica do presidente argentino e a coluna publicada por Clóvis Rossi, intitulada “O encontro das ilusões desfeitas”, que frisou o “desencanto” e o clima de “desconfiança” com relação ao governo associados à piora dos indicadores socioeconômicos. Rossi, no entanto, aproveitou a oportunidade para criticar o ‘populismo’ de Cristina Kirchner e frisar que as eleições serão o verdadeiro “julgamento” de Macri. Críticas ao presidente argentino foram reforçadas por Laura Carvalho em coluna intitulada “A vida como ela é”, publicada no mesmo dia.

O Globo também foi ligeiramente crítico com relação ao governo Macri. No entanto, como seus pares, o jornal apontou erros de governos anteriores e sugeriu que uma crise econômica poderia favorecer a vitória da chapa de Cristina Kirchner nas eleições. O jornal reforçou as denúncias de corrupção associadas a Cristina, indicando, porém, que estas poderiam não ser suficientes para frear uma possível vitória do kirchnerismo. A melhora na economia, portanto, seria decisiva para os resultados da disputa. A proposta de criação de uma moeda única foi classificada como “esdrúxula” por Merval Pereira[16] e “insustentável” por Miriam Leitão[17]. Em sua coluna, a jornalista foi abertamente contrária a Macri, expondo suas contradições e dizendo que o presidente abriu mão de um projeto liberal adotando medidas populistas.

CONCLUSÕES

A análise da cobertura da greve e da visita de Jair Bolsonaro à Argentina revelaram que o entusiasmo e a confiança observados no momento posterior à eleição de Macri perderam espaço para críticas à política econômica e dúvidas quanto a sua possibilidade de reeleição. Para os jornais brasileiros, o resultado das eleições na Argentina é central, dada a preocupação com o retorno do “populismo” associado a Cristina Kirchner.

Quanto a Cristina, as críticas, antes feitas a governos anteriores de maneira geral, agora se concentram nas denúncias de corrupção atribuídas à ex-presidente. A polarização Macri/Cristina é fomentada pela imprensa e ao que parece, mesmo que o governo atual tenha cometido “equívocos”, ainda há a expectativa de que a possibilidade de crescimento econômico possa dar a vitória a Macri, impedindo o retorno do kirchnerismo.

A cobertura da greve geral nos mostrou que os meios não têm interesse na crise argentina. Pouca atenção foi dada à piora dos indicadores sociais (desemprego, pobreza, desnutrição infantil), sendo o fator de maior relevância o impacto da crise sobre as eleições e, em menor escala, como as relações com o Brasil podem ser afetadas – posição reforçada nas publicações sobre a visita de Bolsonaro. As informações trazidas pela imprensa brasileira não têm o mesmo nível de detalhamento da cobertura da crise da Venezuela, por exemplo. Os jornais apresentaram os problemas econômicos da Argentina como resultado de fatores estruturais, sem atribuir a Macri e a seu governo liberal responsabilidade sobre a crise.

[1] Ministerio de Hacienda. Mercado de trabajo. Tasas e indicadores socioeconómicos (EPH). Informes Técnicos, vol. 3, n. 51. Disponível em < https://www.indec.gob.ar/uploads/informesdeprensa/mercado_trabajo_eph_4trim18.pdf>

[2] Ministerio de Hacienda. Incidencia de la pobreza y la indigencia en 31 aglomerados urbanos. Informes Técnicos, vol. 3, n. 59. Disponível em <https://www.indec.gob.ar/uploads/informesdeprensa/eph_pobreza_02_18.pdf>

[3] “Terremoto político na Argentina”. O Estado de S/ Paulo, 24/11/2015, p.2

[4] “Mudança na Argentina”. O Estado de S. Paulo, 24/11/2015, p.3

[5] “Dois pra lá, dois pra cá”. O Globo, 12/12/2015, p.22

[6] “O efeito Macri”. O Estado de S. Paulo, 25/11/2015, p.2.

[7] “De freio a motor”. Folha de S. Paulo, 29/11/2015, p.2

[8]Argentina e FMI: cobertura da grande mídia brasileira. Disponível em <http://www.manchetometro.com.br/index.php/publicacoes/serie-m/2018/05/24/argentina-e-fmi-cobertura-da-grande-midia-brasileira/>

[9] “Macri enfrenta 5ª greve geral em seu governo” O Estado de S. Paulo, 30/5/2019, B11.

[10] “Macri enfrenta 5ª greve geral contra sua política econômica”. O Globo, 30/5/2019, p.26.

[11] “Greve geral contra governo Macri esvazia ruas de Buenos Aires”. Folha de S.Paulo, 30/5/2019, p.17

[12] Declaración conjunta de los presidentes Mauricio Macri y Jair Bolsonaro. Disponível em <https://www.casarosada.gob.ar/informacion/discursos/45580-declaracion-conjunta-de-los-presidentes-mauricio-macri-y-jair-bolsonaro> Acesso em 10 de junho.

[13] “O peso real de um delírio”. O Estado de S. Paulo, 8/6/2019, p.A3

[14] “Crise econômica põe em risco reeleição de Macri”. O Estado de S. Paulo, 9/6/2019, p. A18.

[15] “Mourão critica Macri um dia antes de visita de Bolsonaro”, Folha de S. Paulo, 6/6/2019, p. A18.

[16] “A moeda ‘peladona’”, O Globo, 8/6/2019, p. 2.

[17] “O insustentável peso real”. O Globo, 8/6/2019, p.18

Redação

2 Comentários

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  1. A divisão americana, entre norte e o sul a época da Guerra de Secessão ou Guerra Civil dos Estados Unidos, acabou com a vitória do grupo com maior capacidade de transformar aquele pais naquilo que se tornaram hoje – hoje fez 50 anos que eles mandaram homens a lua!
    Essa união no pós-guerra foi um feito e tanto, que gerou sinergia para todos os que herdaram suas consequências!
    A divisão aqui no Brasil, o ódio disseminado, o pendulo penderá para o lado que será o vencedor e se esse vencedor for o da ética, da real justiça – esse país poderá vir a ser uma das maiores nações, pois estará fora do jogo de guerra mundial nuclear e o melhor com grande capacidade em função de sua riqueza natural.
    Não é fácil derrotar o egoismo de uma parte da elite e grande mídia, da miséria intelectual do executivo, judiciário e forças armadas!
    Tudo ficará no passado, mas poderá ser de duas formas diferentes!
    Poderá ficar no passado como o esgotamento da miséria de seus gestores, com um brasil liquidado e sem rumo!
    Ou poderemos olhar para o passado com orgulho da luta enfrentada!
    Qualquer que seja o resultado, ele ficará para nossos filhos e netos…
    A gente ainda pode escolher, eles não!

    1. Concordo em parte com vc, mas a cultura americana prima pela educação do seu povo, os investimentos em saúde com pesquisas sobre novos medicamentos, cirurgias com tecnologia de ponta, no campo da segurança então nem se fala, FBI, CIA, com uma eficiência nas investigações internas e externas de 95% em todos os casos, as FF.AA em constante vigilancia no planeta. Por essas e por outras coisas estamos com meio século de atraso e as previsões não são das melhores.

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