É a hora de reconstruir o Brasil: entrevista com Lula, por Paolo Vittoria

O desafio parece enorme, mas não foi menor em 2002-2003, quando o Partido dos Trabalhadores conquistou o governo pela primeira vez

Ricardo Stuckert

É a hora de reconstruir o Brasil: entrevista com Lula

por Paolo Vittoria

Il Manifesto 16 fevereiro 2022

Em um Brasil desmoronado pelo fracasso do governo Bolsonaro, os motores para as eleições de outubro estão já acesos e Luiz Inácio Lula da Silva, que comprovou a própria inocência em todos os processos judiciais, pode concorrer – entre os candidatos à presidência – contra seu grande acusador, Sergio Moro. Quem conquistar o governo terá que lançar as bases para a reconstrução de um País em plena emergência econômica e sanitária, reconstruir um tecido de dialética democrática, regenerar os mecanismos de integração entre investimentos econômicos e justiça social, pacificar um povo profundamente polarizado. O desafio parece enorme, mas não foi menor em 2002-2003, quando o Partido dos Trabalhadores conquistou o governo pela primeira vez e levou o Brasil da recessão à sexta economia mundial. Os últimos anos deixaram marcas em um Brasil radicalmente transformado, atravessado por uma crise dilacerante e por contradições dentro da própria esquerda que trabalha para se reorganizar ao nível local e internacional e reconstruir aquele processo democrático-popular que na época a levou à vitória.

Presidente Lula, após os fracassos do governo Bolsonaro, a estratégia da extrema direita negacionista e populista ainda recebe apoio de uma parte do povo brasileiro: não só da elite, mas também dos setores populares que se beneficiaram das políticas do PT. Como se explica isso?

Dentro da normalidade democrática, Bolsonaro não teria ganho a eleição. Todas as pesquisas de opinião previam a vitória da minha candidatura com larga vantagem. Ele se elegeu graças às circunstâncias excepcionais criadas pelo golpe contra a Presidenta Dilma Rousseff, a demonização da política democrática, a perseguição ao PT e a minha prisão ilegal. Não podemos esquecer que os principais meios de comunicação foram decisivos nesse processo de ruptura da legalidade. Eles promoveram uma feroz campanha de aniquilamento contra nós e, ao mesmo tempo, forjaram uma falsa imagem de Bolsonaro como “salvador” do país. Inventaram um “mito” Bolsonaro que, naquele contexto, iludiu muita gente, inclusive segmentos das classes populares. Mas, hoje, a situação se inverteu completamente. A decepção com o atual governo é enorme, e com a pessoa de Bolsonaro é maior ainda, apesar do forte apoio midiático que ele ainda tem. O seu absurdo negacionismo já custou milhares de vidas. A miséria e a fome voltaram ao cotidiano de milhões de brasileiros, o país está mergulhado em uma profunda crise econômica, com o desemprego e a carestia atingindo níveis assustadores, sem falar no isolamento internacional do país, que se tornou um pária no mundo. Mas, felizmente, a maioria da população está consciente da responsabilidade de Bolsonaro nesse desastre e quer derrotá-lo nas eleições de outubro próximo. Hoje, o único setor em que ele prevalece é o de alta renda.

Essa minoria extremista representada por Bolsonaro, que perdeu a vergonha de dizer barbaridades e que existe em quase todos os países, já foi derrotada no Chile, nos Estados Unidos e será derrotada no Brasil também.

Em 2018, no meio da tempestade judiciaria e política, escreveu o livro “A verdade vencerá. O Povo sabe por que me condenam”, quando a verdade ainda não tinha vencido. Não fugiu da Justiça, acreditou nela. Venceu todas as batalhas judiciais. Hoje se sente mais forte? Podemos dizer que a verdade venceu ou outras verdades devem vencer ainda? Pois, o livro não é somente uma defesa judiciaria, mas uma defesa política.

O processo contra mim foi totalmente político. Sendo um processo político, ele não era algo pessoal contra o Lula. Era contra o povo brasileiro e a soberania nacional. Os prejuízos para o Brasil e para a maioria da nossa população são muito mais importantes do que qualquer dos meus sentimentos em relação a esta injustiça. Porque foram os brasileiros que viram a economia degringolar e perderam empregos por conta da destruição de empresas de ponta e setores inteiros da economia pela Lava Jato. E são os brasileiros que convivem hoje com a fome, a miséria e a retirada de direitos. Tudo isso era exatamente o que buscavam os que criaram mentiras para criminalizar a política e principalmente o PT e o Lula.

Mas eu nunca duvidei que iria provar minha inocência e que aqueles que me perseguiram teriam as suas manipulações e ilegalidades expostas. Foi esta a razão de eu nunca ter pensado em me exilar, por exemplo, para evitar a prisão. Foi assim que eu suportei cada um dos 580 dias em que estive preso. Esta certeza e a solidariedade das pessoas que estavam em vigília permanente por mim, e os atos de apoio ao redor do mundo, me deram forças para resistir.

Se Sergio Moro for mesmo candidato teme que a campanha eleitoral possa ser alterada pelas estratégias judiciais? Quer dizer, que as grandes questões como igualdade social, reforma agraria, combate a fome, direito a moradia, justiça climática, educação publica possam ser substituídas por uma disputa político-judiciaria?

Quem quiser ser candidato, que seja. A democracia pela qual tanto lutamos no Brasil permite isso. Moro terá o direito de ser candidato livremente, o que ele me negou em 2018. Se ele tiver um projeto para o país, que o apresente, dessa vez sem se esconder atrás de uma toga. Mas as pessoas não estão interessadas em promessas vazias, porque o que está vazio hoje é a geladeira e o prato do brasileiro. As pessoas estão passando fome, estão sem emprego, trabalhando de forma precária, morando nas ruas, vivendo com uma renda cada vez menor e vendo os preços dispararem. Não se pode brincar assim com o povo brasileiro.

Quanto ao poder judiciário, tudo indica que os seus setores mais sérios e democráticos não permitirão que se repita a partidarização de 2018. As ilegalidades de Moro e da Lava Jato desgastaram muito a imagem do judiciário. Na verdade, Moro usou o judiciário para se tornar superministro de Bolsonaro. E passou a agredir a própria Justiça. Temos que estar vigilantes, inclusive a opinião pública internacional, mas a Suprema Corte já deixou claro que não permitirá que as eleições sejam novamente manipuladas.

Hoje parece que os partidos tradicionais não são mais de “moda”. Siglas com escopo eleitoral satisfazem mais o marketing político de uso e consumo. Mesmo na esquerda, temos fenômenos deste. Como vê o PT, partido tradicional aliado aos movimentos sociais, na conjuntura atual internacional e como mudou o partido na experiência ao governo?

Olha, eu não sei se o PT é um partido tradicional. Sinceramente, no sentido usual do termo, acho que não. Temos a nossa trajetória de 42 anos que nos deu um forte enraizamento popular. Mas, ao mesmo tempo, o PT tem demonstrado grande capacidade de auto renovação, de dar respostas criativas e ousadas aos novos desafios nacionais e globais. Talvez por isso o PT continua sendo, em todas as pesquisas, para surpresa de muitos, o partido preferido da juventude brasileira. Acho que tudo isso tem a ver com a própria origem do PT. Já nascemos heterodoxos e plurais. Surgimos das lutas contra a ditadura militar e pela democratização do país. Desde o início, somamos movimentos, setores e culturas políticas bastante distintas: o novo sindicalismo do final dos anos 1970, as comunidades cristãs de base, os grandes intelectuais do socialismo democrático, os trabalhadores rurais e agricultura familiar, os movimentos negros, feministas, ecologistas, além de diversos grupos de esquerda que estavam saindo da clandestinidade. O que nos unifica não é um sistema de pensamento, uma ideologia, mas o espírito libertário e um projeto emancipador para o Brasil.

            Acho que na América Latina existem outros partidos mais antigos que também possuem grande capacidade de inovação, como é o caso, entre outros, da Frente Ampla do Uruguai. Você conhece um líder menos tradicional e mais inovador que Pepe Mujica? E há experiências partidárias mais recentes que já obtiveram um êxito extraordinário, como as de Lopes Obrador no México, de Xiomara Castro em Honduras e de Gabriel Boric no Chile. Estou convencido de que, juntando os mais antigos e os mais recentes, temos ótimas possibilidades de retomar o processo de integração e desenvolvimento compartilhado da América Latina.

            De qualquer forma, não acho que os partidos propriamente tradicionais da esquerda – sobretudo aqueles da centenária tradição socialdemocrata – estejam vivendo um momento negativo. Atravessaram, sim, um período difícil durante o auge da hegemonia neoliberal no mundo.  Houve até, naquela época, quem se deixasse seduzir pelo canto de sereia do neoliberalismo. Mas, hoje, está claro que o neoliberalismo é um modelo econômico e social fracassado. A própria luta contra a pandemia do corona vírus mostrou que é preciso resgatar o papel indutor e coordenador do Estado Democrático. A crise econômica de 2008 já havia revelado a insensatez da economia desregulada, o tremendo risco de um capital financeiro entregue de modo irresponsável unicamente à busca do lucro fácil. Vejo que a Europa, apesar do crescimento da extrema direita, está voltando a valorizar o Estado de Bem-estar Social. Acho que isso é que explica o SPD governando a Alemanha em aliança com os Verdes, que são uma força importante de renovação, o PSOE governando a Espanha junto com o Podemos e outros partidos progressistas e o PS governando Portugal, por exemplo.

            Penso que devemos unir as forças democráticas e progressistas para dar maior efetividade ao projeto de uma ordem internacional pacífica, equilibrada e justa, que deverá ser necessariamente multilateral e multipolar, em que todos os povos tenham verdadeira chance de prosperidade e justiça social.

Alguns analistas políticos consideram que o PT conquistou a hegemonia como um pacto popular-empresarial ou “pacificação de classe”. Isso tornou possível as grandes conquistas sociais mantendo o diálogo aberto com as economias e os investimentos. No documento “O povo feliz de novo” entre PT/PCdoB/PROS a ênfase é nos direitos sociais e na soberania popular. Mas, como aplicar este modelo no meio de uma crise pandêmica, a inflação, as novas pobrezas, o desemprego, a desvalorização do real? Como reerguer um País onde boa parte da população continua sendo confundida pelas fake news, cheia de ódio, raiva? Como fazer o Brasil feliz de novo?

Quem quer que venha a governar o Brasil, terá pela frente a missão de reconstruir o país. E não é possível pensar em reconstruir um país com milhões de pessoas passando fome. Garantir três refeições ao dia para todos é prioridade número um. A segunda prioridade, que não está separada da primeira, é gerar emprego e renda. Para isso, o país precisa ter estabilidade e credibilidade. O Estado precisa voltar a investir para garantir direitos às pessoas, construir hospital, fazer escola, ampliar universidade, tudo isso ajuda a movimentar a economia. Colocar dinheiro na infraestrutura e na logística, manter as fortes exportações e, ao mesmo tempo, recuperar e ampliar o mercado interno, fazendo a economia funcionar, e mostrando para as empresas que vale a pena investir no Brasil. Ou seja, não é muito diferente do que já fizemos, porque, quando nós assumimos o governo federal, a situação também era de crise econômica. E de país em crise chegamos a ser a 6ª economia do mundo, com um vasto processo de inclusão social e redução das desigualdades. E com um emocionante crescimento da autoestima do povo brasileiro. No Brasil, o “novo” será reconquistar aquilo que perdemos, que já apontava no rumo do futuro. Com muita democracia e diálogo.

Redação

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